quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Joseph Ratzinger e as tentativas de associar a concepção virginal de Cristo



Dentre os ataques que são desferidos contra a fé cristã por esses dias, o mais alardeado centra-se nas objeções ao nascimento virginal do Messias, cabendo-nos, com isso, tentar dar cabo dessa grande polêmica, favorecendo pelo conhecimento aqueles que tentam perpetuá-la e os que se perturbam com ela.     

O tema é complexo, portanto o texto que segue não pôde ser claro em todos os pontos. O artigo resulta de uma pesquisa em diversas fontes, deixando expostas algumas das contradições presentes entre os teóricos, pois o autor que vos fala não está em posição de inferir sem bases - cabe, então, ao leitor a capacidade de lidar com as lacunas e de perceber o quadro geral do trabalho. Objetivei com esse esforço, o oferecimento da resposta mais completa possível dentro das minhas limitações. Os textos fundamentais: A tradução utilizada é a Almeida Corrigida e Revisada Fiel.

Dos quatro Evangelhos, Mateus e Lucas dão evidência ao nascimento virginal, conforme segue:         "Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho, E chamá-lo-ão pelo nome de EMANUEL, Que traduzido é: Deus conosco." 
Mateus 1:23 "E disse Maria ao anjo: Como se fará isto, visto que não conheço homem algum? E, respondendo o anjo, disse-lhe: Descerá sobre ti o Espírito Santo, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; por isso também o Santo, que de ti há de nascer, será chamado Filho de Deus." Lucas 1:34-35.

O texto veterotestamentário fundamental para essa perspectiva neotestamentária se encontra em Isaías 7:14, explícita base do texto de Mateus: "Portanto o mesmo Senhor vos dará um sinal: Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho, e chamará o seu nome Emanuel." 

Alguns estranham a parca sustentação do nascimento virginal no Novo Testamento, já que só aparece em Mateus e Lucas, ausentando-se de Marcos e João e dos escritos de Paulo. Isso, contudo, não deve ser visto como um problema. É necessário, primeiramente, avaliar as intenções dos autores: Mateus (entre décadas de 50 e 60 d.C.) estava escrevendo para um público hebreu1, familiarizado com o profeta Isaías, tornando a indicação do cumprimento profético de Isaías 7:14 especialmente poderosa para esse público, que esperava algum sinal especial na concepção e no nascimento do Messias que pudesse servir de evidência para a sua messianidade. Ainda que a concepção virginal não fosse uma expectativa evidente, grandes heróis do povo hebreu vieram ao mundo de maneiras miraculosas, como Isaque (Gn 18:1-15; Gn 21:1-3), Jacó e Esaú (Gn 25:21), José e Benjamim (Gn 29:31 a 30:24), Sansão (Jz 13:2-24), Samuel (1 Sm 1) e João Batista (Lc 1:5-25).    

Lucas, por sua vez, realizou densa pesquisa histórica, como ele mesmo declara (Lc 1:1-4), tendo redigido os documentos a ele atribuídos até a primeira metade da década de 60 do Primeiro Século, já que Atos dos Apóstolos, continuidade do Evangelho de Lucas, termina com Paulo na prisão, esperando seu julgamento. Lucas conheceu o apóstolo Paulo em 35 d.C., com quem, juntamente com Pedro, passou duas semanas, como fica claro em Gálatas 1:18 - ele foi companheiro de viagem do apóstolo Paulo (At 16:10-16, 20:6-28; Cl 4:14; Fm 24; 2 Tm 4:11). O fato de o evangelista ter conhecido Pedro também se justifica por suas raízes em Antioquia, centro da primeira igreja gentílica, que foi visitada pelo discípulo do Mestre (Gálatas 2:11). O famoso historiador também conheceu Tiago, irmão de Jesus, o que indica a possibilidade de ele ter tido contato outros membros da Sagrada Família, inclusive porque viveu dois anos na Palestina ou nas circunvizinhanças.

Erwin E. Lutzer sugere que Lucas tenha entrado em contato com Maria, mãe de Jesus, com quem obteve informações de primeira-mão sobre a concepção e o nascimento de Cristo5 - essa possibilidade é real, uma vez que Maria estava sob os cuidados do apóstolo João (Jo 19:26), parte do círculo dos Doze, com quem Lucas teve contato, e o autor desenvolve textos da perspectiva de Maria. 

O Evangelho de Marcos, comumente tido como mais antigo que Mateus, Lucas e João, datado por volta dos anos 50 e 60 d.C.6, é mais sucinto do que os demais: seu público era romano, um povo que não estava familiarizado com os discursos judaicos e nem com a tradição profética dos hebreus - a ação caracterizava Roma, e a sua conquista do Mediterrâneo foi realizada, fundamentalmente, pela marcha das legiões. Não havia interesse entre os romanos por longos discursos semíticos - até porque a literatura semita não era valorizada em Roma -, fazendo do apelo à ação, com ênfase na Ressurreição, um recurso evangelístico eficaz. Disso se compreende a razão que levou Marcos a não abordar o nascimento virginal, inclusive porque, se o romano não estava familiarizado com a profecia veterotestamentária, poderia associar o nascimento virginal às tradições mitológico-pagãs, que sugerem a relação sexual entre deuses e mulheres, gerando, com isso, semideuses - como foi com Zeus e Diana, de quem nasceu Perseu. A ausência em Marcos, portanto, desqualifica a alegação de que o nascimento virginal foi copiado de mitos pagãos para dar sustentação ao cristianismo: se o fosse, o público romano deveria ser o primeiro a receber tal "informação". Apesar de Lucas ter em vista um público grego, também gentílico, seu leitor primeiro era Teófilo, reconhecido como homem de posto elevado, erudito interessado nas evidências da nova fé e, portanto, capacitado, pelo contato com Lucas, a discernir adequadamente a questão do nascimento de Cristo.  

Cabe ressaltar, ainda, que Marcos conhecia todos os Doze, pois acompanhou-os durante o ministério de Jesus, tendo sido testemunha ocular. Ele teve contato com Mateus e João, e, sugere-se, também conheceu Lucas. Além disso, João Marcos foi companheiro de Barnabé e do apóstolo Pedro, tendo confeccionado o seu evangelho essencialmente com base naquilo que ouvira das pregações petrinas9. Isso indica que João Marcos e Lucas compartilharam dos mesmos círculos e que os seus registros não apontam para contradições, mas para seleções de interesse - João Marcos, assim como os apóstolos Paulo e João, deveria conhecer os pormenores do nascimento virginal. Inclusive, está evidente que Mateus e Lucas tinham ciência da existência do Evangelho de Marcos, tendo-o utilizado como uma das fontes da redação dos seus evangelhos - a essência de 606 dos 661 versículos de Marcos aparece em Mateus e 380 em Lucas; dos 1068 versículos de Mateus, aproximadamente 500 possuem o mesmo conteúdo de Marcos; dos 1149 versículos de Lucas, cerca de 380 reforçam a leitura de Marcos; só 31 versículos de Marcos não são aludidos em Mateus e em Lucas. Mateus e Lucas, por sua vez, têm 250 versículos de material comum que não aparece em Marcos, mas há 300 versículos que só aparecem em Mateus e 520 exclusivos de Lucas, sugerindo o uso de mais fontes10. 
Há, portanto, um arcabouço comum de conhecimentos, juntamente com o uso de fontes orais e escritas exclusivas entre os Evangelhos, o que reforça a autenticidade do todo.     

O Evangelho de João, o mais tardio, concluído nos últimos anos do Século Primeiro, tinha como público original a própria Igreja, objetivando ser lido pelo corpo universal de Cristo. Como um escrito um pouco mais tardio, João estava consciente de que seus leitores cristãos já conheciam as minúcias da vida de Cristo e não precisava repetir exaustivamente questões pertinentes à credibilidade histórica e profética das ações do Mestre, enfocando, portanto, na teologia propriamente dita, com ênfase na sustentação da divindade do Filho- nessa altura, a Igreja carecia de maior solidez teológica, especialmente para confrontar as ideias gnósticas, que começavam a despontar.

Como presbítero de Éfeso, pode-se sugerir que João já tinha fornecido oralmente os conhecimentos fundamentais sobre a vida do Messias aos membros das igrejas da Ásia Menor, levando-o a não enfatizar alguns desses pontos em seu evangelho. O mesmo acontece com o apóstolo Paulo que, com exceção de Romanos, redige suas cartas para igrejas que já haviam sido visitadas pessoalmente por ele, de modo que ele não precisava repetir em texto tudo o que já lhes falara audivelmente.

Contudo, Paulo não deixa de fazer algumas alusões interessantes, como a de Gálatas 4:4 ("Deus enviou seu Filho, nascido de mulher"), que aponta para o proto-evangelho de Gênesis 3:15, e a de Romanos 1:3-4 ("nasceu da descendência de Davi segundo a carne, declarado Filho de Deus em poder, segundo o Espírito de santificação").            

É digno de nota, ainda, que questões pertinentes à concepção de Cristo não eram conhecimentos populares, mas, possivelmente, memórias íntimas preservadas dentro do círculo familiar do Mestre - apesar disso, relatos de difamações feitas com relação à paternidade de Jesus indicam que os locais sabiam que ela não tinha sido normal. Acrescenta-se a isso que não era necessário aos discípulos o apontamento do nascimento virginal do Messias para o convencimento de seu público leitor, uma vez que nem os rabinos esperavam que o Cristo nascesse de uma virgem - o entendimento de Isaías 7:14 sugeria uma jovem mulher que é virgem até a consumação do casamento, quando coabita com seu marido.      

O desconhecimento público do nascimento virginal até, possivelmente, a revelação escriturística de Mateus e Lucas, ajuda a entender as razões de tal tema não ter sido abordado em Paulo e Marcos, já que não havia uma elevada expectativa quanto à virgindade de Maria e nem quanto à confirmação de "boatos", levado-nos ao assimilação de que, se esses relatos foram apresentados, não tinham como motivação a necessidade de dar mais peso argumentativo ao cristianismo ou de responder às expectativas de um determinado público - o fundamento de sua exposição reside na sua historicidade. Não era vantajoso aos cristãos a invenção de tal história, uma vez que a mesma gerou uma série de embaraços a serem resolvidos com os próprios cristãos, com os judeus e com os gentios.    

Para sustentar essa posição, é importante verificar que a ideia de um nascimento virginal quase não existe na Palestina judaica do período ligeiramente próximo do Mestre - no judaísmo, não há paralelo ao nascimento de Cristo. O próprio texto de Isaías 7:14, ao falar da virgem que conceberá e dará à luz a um filho, não foi suficiente para formar um amplo imaginário palestino acerca da concepção virginal: esperava-se uma moça jovem, virgem até seu casamento - esse era o uso comum de "almah", a palavra hebraica para "moça", traduzida para o grego "parthenos", que significa "virgem". Nesse sentido, não havia urgência alguma de se inventar o advento da concepção virginal do Messias. 

Contudo, para Cousin, quando os rabinos que redigiram a Septuaginta no Séc. II a.C., usando de "parthenos" para traduzir "almah" em Isaías 7:14, deixaram em evidência que, ao menos uma parte dos judeus, especialmente os gregos, viam a concepção virginal como um indicativo de messianidade - disso, conclui-se que a ideia da concepção virginal, embora pouco provável no ambiente judaico da Palestina, aparece, em algum nível, entre os judeus helênicos, que, mesmo não a tendo por unanimidade, teriam uma facilidade maior de entender a opção interpretativa de Mateus15.

Fique claro, com isso, que Mateus não estava isolado ao ter o nascimento de Jesus como cumprimento de Isaías 7:14. A natureza do relato: Muitos alegam que a questão do nascimento virginal fora tomada de mitos pagãos. Zeus relacionou-se com mulheres e, delas, teve Perseu e Hércules. Diana engravidou de Zeus, por exemplo, por meio de uma chuva de ouro. Havia rumores de que Platão era filho do deus Apolo e sugeria-se que Alexandre, o Grande, tivera um nascimento extraordinário - o útero de sua mãe fora lacrado e, mesmo assim, ela concebeu, ou, conforme outra lenda, Olímpia engravidou após comer um romã. 

Joseph Ratzinger aponta para as tentativas de associar a concepção virginal de Cristo às alegações egípcias de que os faraós eram gerados pelo divino a às percepções de Filo de Alexandria (falecido depois de 40 d.C.). Segundo o papa emérito, contudo, não há semelhanças entre a perspectiva pagã e de Filo e a cristã: no caso dos faraós, há uma aproximação física entre a divindade e a mãe, servindo como via para legitimar a soberania política do governante, e a abordagem de Filo é essencialmente alegórica, impossibilitando a consideração de que os dois casos sejam paralelos ao de Cristo. Não há semideus no cristianismo: a distância entre a criatura e o Criador segue infinita, não há um ente intermediário resultante de uma associação entre Deus e a mulher. Jesus não é percebido como nada menos do que totalmente Deus, enquanto é totalmente homem, conforme o Credo da Calcedônia, 451 d.C., deixa explícito.      

Ratzinger também sustenta que os relatos de Mateus e de Lucas não são resultantes do desenvolvimento de mitos, mas se assentam na perspectiva inteiramente bíblica de Deus como Criador e Redentor, tendo sido guardada na tradição familiar - como memória íntima do seio da Sagrada Família, a concepção virginal conserva aquilo que realmente aconteceu. Para Bento XVI, a cristologia desenvolveu-se dessa percepção primeira da concepção virginal. Só depois da morte de Maria, sugere, é que esse mistério foi tornado público, fazendo-se objeto de reflexão, instigando profundos estudos para a sua correta compreensão.   

Na continuidade de seu raciocínio, Raztinger fala de Virgílio, romano que escreveu alguns versos em cerca de 40 a.C. falando de uma linhagem que desceria do céu, de um menino que iniciaria uma nova era ("Iam redit et virgo" - "Já retorna a virgem"), parecendo ir de encontro com Isaías 7:14, mas as pressuposições do autor pagão são bem diferentes: seu dizer se assenta na doutrina do ciclo das eras, no poder do destino, numa perspectiva de que logo haveria uma grande mudança das eras - nos tempos do Imperador Augusto, findando períodos de calamidades, eleva-se uma esperança messiânica de paz, de uma nova ordem mundial. A figura da virgem, que indica pureza, e do menino, o rebento divino, parecem propícias para ilustrar o que se estava esperando. Para o papa emérito, no entanto, há uma divergência muito grande entre esses alardes romanos e o texto bíblico: nem em Lucas e nem em Mateus os versos da concepção virginal acenam para uma guinada cósmica ou para o contato físico entre Deus e os homens - o relato, na verdade, é profundamente humilde. O desinteresse de João Marcos na divulgação desse evento aos romanos, se ele o conhecia, pode indicar, por conseguinte, que o autor não queria que ele fosse associado precocemente às expectativas messiânicas pagãs, com as quais não se relacionava.               

Com relação às supostas similaridades entre os mitos pagãos e a concepção virginal de Cristo, Lutzer acrescenta: os relatos sobre Hércules, Perseu, Platão e Alexandre se fundam no politeísmo pagão, com suas divindades luxuriosas, ciumentas e repletas de ódio, que interagiram sexualmente com mulheres num contexto de fertilidade - esses deuses, ao manter relações sexuais com humanas, o faziam também para obter prazeres. É loucura sugerir que os evangelistas tomariam de empréstimo histórias dessa natureza para sustentar a divindade e a perfeição de Cristo, indo em total desencontro com as prescrições morais e teológicas do Antigo Testamento e firmemente assentadas no imaginário dos judeus e dos cristãos - Jesus, para cumprir a Lei, não poderia ser fruto do Pecado, e Deus, conforme evidenciado nas páginas veterotestamentárias, diverge infinitamente do tipo de deus expressado pelo politeísmo. De nada caberia aos interesses cristãos fazer o Mestre ser visto como uma espécie de herói e semideus pagão. Quanto aos relatos sobre Platão e Alexandre, a associação com a divindade foi cogitada depois de os indivíduos já estarem famosos, enquanto, sobre Cristo, há profecias mais antigas. Acrescento aqui que nenhum herói da mitologia pagã é reconhecido como resultado de um nascimento virginal - de qualquer modo, para o judeu o Primeiro Século seria inconcebível construir uma história mitológica.     

"Mas há uma diferença enorme entre a atmosfera das histórias pagãs e a de Lucas 1-2; e um paralelo que seja adequado à história cristã pode ser alcançado apenas por certas reconstruções bastante especulativas e complexas de fontes antigas. Paralelos não são necessariamente fontes!"     

Há, ainda, alegações de que o relato da concepção virginal fora cogitado para proteger Maria de uma condenação por adultério ou, ainda, para fazer cumprir a profecia do Antigo Testamento. Todavia, Lucas era um historiador experiente, e perceberia se o testemunho da parte de Maria fosse mentiroso, assim como o perceberia José, se este também não tivesse recebido a visita do anjo, e outras muitas pessoas de Nazaré, além de Isabel, prima de Maria, e João Batista, filho de Isabel, se por Deus não tivessem sido visitados - de qualquer maneira, não era largamente disseminada a espera do Messias por vias virginais, como já foi dito. Os primeiros cristãos, especialmente os Doze, muitos deles martirizados, dificilmente teriam pregado tão apaixonadamente a fé cristã, e morrido por isso, conscientes de uma gritante mentira. Cabe, ainda, ressaltar a simplicidade e moderação dos versículos que falam da concepção virginal: não há chuva de ouro, não há floreios, não há a apresentação de complexas interpretações teológicas, há apenas a breve indicação de que Maria conceberia do Espírito Santo. Temos, com isso, relatos diretos do que aconteceu, escritos para serem lidos e entendidos literalmente, sem ambiguidades, sem mensagens secretas.

Problemas textuais: O problema fundamental quanto ao uso de Isaías 7:14 em Mateus 1:23 está na palavra "virgem": no hebraico de Isaías, "almah" significa "jovem", mas no grego da Septuaginta essa palavra foi traduzida por "parthenos", que significa "virgem". O texto grego de Mateus usa, portanto, "parthenos", designando Maria como virgem no advento da concepção, indicativo, segundo alguns, de um entendimento errado do original de Isaías. Cabe-nos, com isso, dedicar o espaço que for necessário para a resolução dessa questão.           

No Dicionário Strong do Antigo Testamento, "almah" significa, além de "jovem" - "moça", "donzela" -, "virgem". Essa palavra geralmente é utilizada, no AT, para moças que estão "em idade para casar" (Gn 24:43), subentendendo sua virgindade - e foi assim que Mateus leu o versículo de Isaías 7. No Dicionário Strong do Novo Testamento, "parthenos" se aproxima de "almah", indicando uma moça jovem, uma donzela, uma filha não casada e, portanto, virgem.  

"Almah", conforme o hebraico de Isaías 7, aparece também em Gênesis 24:43, Êxodo 2:8, Salmos 68:25, Provérbios 30:19 e Cântico dos Cânticos 1:3 e 6:8, mirando, em todas essas passagens, uma moça solteira e casta - são 9 usos no AT, tendo sido traduzida por "parthenos" em dois lugares da Septuaginta, Gn 24:43 e Is 7:14. De fato, "almah" era usada no AT como indicativo de virgindade - é notável que "almah" se aplica apenas antes de a moça consumar seu casamento, coabitando com seu marido. Do uso comum da palavra, dentre as possibilidades de significação, fica evidente que Isaías 7 falava de uma virgem e que, portanto, Mateus não cometeu um erro de interpretação, sendo "parthenos" uma palavra adequada para traduzir "almah". Os tradutores responsáveis pela Septuaginta tiveram "almah" por "parthenos" justamente porque "almah" é propícia para falar de virgindade26 - não foi algo que eles tiraram do nada e não havia razão alguma para, no contexto de 2 a.C., fazer a profecia de Isaías 7:14 significar outra coisa.  

Os judeus costumam levantar objeções quanto ao uso de "almah" em Isaías 7, que subentende "virgem". Segundo eles, a palavra que melhor combinaria com a proposta de Isaías seria "b'atulah", indicativo de "mulher virgem", que aparece 51 vezes no Antigo Testamento hebraico (Gn 24:16; Lv 21:13; Dt 22:14, 23 e 28; Jz 11:37; 1 Rs 1:2) e é traduzida 44 vezes por "parthenos" na Septuaginta. Contudo, "b'tulah" se aplica à mulher casada, não solteira (Jl 1:8). Em oposição a isso, porém, W. E. Vine afirma que o termo "b'tulah" tem significação pouco exata: não é possível saber se ele indica uma mulher de fato virgem, uma mulher desposada ou uma mulher que já perdeu a virgindade. Disso, Vine conclui que "almah" é a palavra mais correta para falar de uma mulher que não está casada - tanto que, enquanto Rebeca é chamada de "b'tulah" em Gênesis 24:43, é chamada de "almah" em Gênesis 24:16. Disso entendemos a razão de Isaías não ter feito uso de "b'tulah": era necessário ao contexto tratar de uma moça que, além de virgem, fosse jovem, em idade para casar. A tradução da Septuaginta sugere que os rabinos entendiam Isaías 7 como "virgem", uma vez que era essa a significação de "almah" naquela época, e só depois do advento do cristianismo é que tentaram procurar alternativas. Assim, nos textos rabínicos gregos, "parthenos" passou a ser substituído por "neanís", que significa "jovem". O uso cristão de "parthenos" não foi inovação cristã, mas brotou do próprio entendimento judaico.     

É interessante notar o uso de "parthenos" no Novo Testamento como uma via de entendimento para Mateus 1:23 e Lucas 1:27: Mt 25:1, 7 e 11; At 21:9; 1 Co 7:25, 28 e 33; 2 Co 11:2. Temos em "parthenos", sem dúvida, a ideia de uma virgem, jovem, em idade para estar casada, estando esposada ou não. Para McDowell, esta é uma evidência que os redatores da Septuaginta esperavam o Messias de uma virgem.  

Para os que entendem que o Antigo Testamento não fornece luz suficiente para o real significado de "virgem", cabe-nos apontar para o estudo de Gerard Van Groningen, que cita cinco autoridades no assunto, observando o uso da palavra ugarítica "galmatu", encontrada em Rã Shamra. H. Wolf, uma dessas autoridades, alega que nos três lugares onde "galmatu" ocorre, o equivalente exato de "almah" é usado com referência a uma jovem que procura se casar, concluindo que, tanto em ugarítico quanto em hebraico, "almah" significa "virgem".

 A antiguidade da doutrina: Há alegações de que o entendimento de Mateus 1:18 e Lucas 1:26-38 sobre a virgindade de Maria não passa de um embuste cristão tardio, visando reforçar os dogmas cristológicos. A análise cuidadosa dos textos em questão, contudo, anula essa possibilidade: a teologia e a linguagem dos capítulos neotestamentários que contém as passagens sobre a concepção virginal se assemelham mais ao AT do que ao NT. Como já dito anteriormente, o nascimento virginal não era uma prerrogativa popular de messianidade do imaginário e das expectativas judaicas do período de Cristo - Isaías 7:14 não era considerada uma passagem messiânica -, e o seu apontamento, portanto, não tinha como razões primeiras a sustentação de uma cristologia já desenvolvida: para respaldar o caráter messiânico de Jesus, ele foi entendido como o Messias do AT, o filho de Davi. Além disso, nem Lucas e nem Mateus redigem alguma inferência a respeito da divindade de Cristo com base no nascimento virginal, que apresentam como um fato histórico e, no caso de Mateus, como o cumprimento de Isaías 7. 

É digno de nota, ainda, que a questão da concepção virginal não fazia parte da pregação de Jesus, não fazia parte dos discursos dos apóstolos e não fazia parte da mensagem da Igreja Primitiva - não se tratava de um assunto controvertido, que merecesse ser debatido naquele período. Essa realidade se altera no Século II d.C., período fértil de material trabalhando as nuances dessa temática.       

O fato de ser uma ideia disseminada na Igreja já no início Séc. II é notável, pois indica a antiguidade de sua aceitação nos círculos mais amplos - Inácio, por exemplo, defende essa doutrina contra os docéticos. O nascimento virginal só era negado pelos docéticos gnósticos e pelos ebionitas.30                
Nos relatos de Lucas e Mateus, devemos conceber a intenção de se atestar a concepção virginal como vias de confirmação profética e de descrição histórica dos eventos ligados ao nascimento de Cristo - apenas posteriormente a cristologia incorporou a ideia, bastante lógica, por sinal, de que um Salvador sem Pecado só poderia ser gerado de Deus, sem ter herdado a Maldição Adâmica. Cabe ressaltar que a comunidade cristã do Primeiro Século, provavelmente em respeito à privacidade da família de Jesus, especialmente para preservar Maria, tratava desse assunto com reservas. Isso faz sentido quando se percebe que a messianidade de Cristo poderia ser defendida sem se observar a concepção virginal e que a sua exposição pública daria margem para acusações sobre a ilegitimidade de Jesus - e tais acusações realmente foram desferidas. Não havia necessidade de inventar esse milagre, pois existiam outros meios de fundamentar a ideia da divindade do Messias - meios menos arriscados. 

O problema com "parthenos": Há uma antiga acusação pagã contra o cristianismo que afirma que Maria engravidou de um soldado romano chamado "Pantera" - quem disse isso pela primeira vez foi Celso, no final do Século II d.C. A literatura rabínica repetiu essa afirmação posteriormente. Mais recentemente, o arqueólogo James Tabor citou a inscrição encontrada num túmulo de soldado romano encontrado em 1859, na Alemanha, como evidência da declaração de Celso: "Tuberius Julius Abdes Pantera, de Sidom, 62 anos de idade, soldado em serviço há 40 anos, da primeira coorte de arqueiros, jaz aqui." 

Tabor argumenta que "Abdes" é uma variação de "ebed", que significa "servo" em hebraico. O arqueólogo também percebe Sidom, razoavelmente perto da Galileia, como evidência de esse Pantera ter sido um legionário romano atuante nas vizinhanças da cidade de Maria. Fica em questão, porém, se esse soldado pôde ter tido contato com Maria na data certa, entre 5 e 6 a.C. - ele precisaria ter a idade certa, estar no lugar certo e no momento certo.    
            
É evidente que a acusação de Celso foi digna de ser trabalhada por cristãos dos primeiros séculos. Epifânio (315-403 d.C.) sugere que Jacó Pantera fosse o pai de José, e temos Celso preservado por apologetas como Orígenes, em meados do Século III d.C. Gente como Epifânio, porém, não estava sustentando uma tradição vigente nos círculos cristãos, mas apenas procurando meios de desqualificar a sugestão maldosa de Celso. Refutações do Século IV d.C. em diante não oferecem nenhuma evidência de que o "Pantera" de Celso tivesse existido antes de Celso o citar.   

A melhor resposta às propostas de Celso e Tabor está na própria palavra "parthenos": "Pantera", segundo Craig Evans, seria uma alteração maldosa do grego "parthenos". Não seria nada surpreendente que pagãos e judeus opositores do cristianismo daquele período sugerissem e disseminassem esse tipo de calúnia33. F. F. Bruce corrobora Craig Evans: "Ben Panthera" é indicativo, não de um soldado romano chamado "Pantheras", mas da concepção virginal de Cristo, sendo "pantera" uma corrupção do grego "parthenos". O nascimento virginal contradiz outros textos bíblicos?              

Os textos sobre a concepção virginal entram em conflito com aqueles que falam de José como pai de Jesus (Jo 1:45 e 6:42; Lc 2:27, 33, 42, 43 e 48; Mt 13:55)? Perceba como Mateus e Lucas, que falam do nascimento virginal, também falam da paternidade de José - e eles não tinham a intenção de negar nenhuma das duas verdades. Aos que alegam acréscimos posteriores ao texto original, fica a ausência de evidências: não há nada que indique que os relatos da Natividade foram acrescentados aos autógrafos. Além disso, no contexto judaico, a paternidade, além de biológica, podia ser legal: se o pai aceitasse o filho, ele era legalmente tido como seu descendente, herdeiro - assim, as indicações de José como pai de Jesus estão postas nos termos da lei, não da genética. O fato de ter sido José quem deu o nome ao menino Jesus (Mt 1:21) fundamenta a aceitação do Messias como filho, adotando-O formalmente e, com isso, O tornando descendente de Davi. Ao que parece, o povo de Nazaré reconheceu José como pai legítimo. Como Maria pertence a uma linhagem levita, é possível que a sua genealogia também estivesse associada a de Davi.     

"A filiação era garantida pelo pai legal e, uma vez que um homem se apresentava, servia para lembrar de quem a criança era filha do ponto de vista legal." 

Christiane Rancé Notas sobre as genealogias de Mateus e de Lucas: A genealogia de Mateus aparece em Mt 1:1-17 e a de Lucas está descrita em Lc 3:23-38. A primeira objetiva a herança legal dos direitos reais ao Messias, enquanto a segunda O liga biologicamente às figuras de destaque da história de Israel. De Abraão até Davi as duas genealogias se combinam, desse ponto em diante, porém, Lucas segue a linhagem sacerdotal, pois descreve a linhagem de Maria - Mateus, por sua vez, fala da linhagem real de José. É interessante notar que as famílias real e sacerdotal se fundiram diversas vezes por meio de casamentos - Arão uniu-se à realeza ao casar com Eliseba (Êx 6:23), cujo irmão, Naassom, era de linhagem real (Mt 1:4); Bate-Seba, esposa de Davi, também pertencia a uma família sacerdotal; José, por fim, de família real, uniu-se a Maria, de família sacerdotal, descendente de Arão (Lc 1:5 e 36). Disso podemos sugerir que Maria também poderia ter alguma ligação com Davi.

Outra observação importante sobre a genealogia de Mateus, é que o termo "gerou", em grego "egennesen", indica ancestralidade, e não paternidade real.        

A genealogia de Mateus, que enfatiza a linhagem de José, termina afirmando que José foi marido de Maria, "da qual nasceu Jesus". Nesse texto, fica em evidência o entendimento do autor de que Cristo tinha nascido apenas de Maria, não de José, o que ia de desencontro com as genealogias correntes: geralmente se ligava o filho ao pai, não à mãe - no caso de Jesus, porém, o pai não teve envolvimento na concepção, não podendo ser genitor biológico, apenas pai adotivo. Essa singularidade do texto de Mateus é evidência clara de sua consciência da concepção virginal.    

A origem incomum de Jesus: É relevante perceber que João Marcos, no texto que equivale a Mt 13:55 (Mc 6:3), retira qualquer referência a José, pondo a maternidade de Maria em total evidência - "filho de Maria" -, o que é um modo bastante incomum de falar da ascendência na cultura judaica, indicando, segundo alguns, que Marcos tinha conhecimento da concepção virginal e, ainda, que o público tinha noção de alguma anormalidade no que se referia às origens de Jesus. Em Jo 8:41 os oponentes de Cristo deixam explícito esse conhecimento, acusando-O de ilegítimo, o que foi feito até mesmo durante o Séc. II. Evidentemente, tal ofensa não foi proposta pelos cristãos, assim como dificilmente teria sido inventada pelos não-cristãos: ela precisava encontrar raízes em fatos primeiros acerca dos eventos incomuns relacionados à Natividade.    

José era noivo de Maria no advento da concepção de Cristo. Naquele período, o noivado judaico tinha bases legais firmadas, só podendo ser rompido mediante divórcio, e os noivos não mantinham relações sexuais. Ao receber a visita do anjo, em Lucas, Maria deixa claro que é virgem (Lc 1:34). Apesar de estarem legalmente unidos, era possível, nessa etapa pré-nupcial, que o noivo, José, revogasse o noivado com uma carta de rejeição, se tivesse suspeitado de traição e adultério. 

José, homem justo, contudo, não o fez, confiando em Maria e na visão que também tivera. A profecia de Isaías 7:14: É necessário, ainda, que analisemos com alguma atenção os pormenores da profecia de Isaías, para entendermos corretamente o seu uso em Mateus. Num primeiro momento, a promessa do "filho da jovem virgem" se referia ao contexto imediato de Israel nos tempos do profeta Isaías, que redigiu seu livro entre 740 e 680 a.C. Nesse período, a Síria e Efraim (o Reino do Norte de Israel) se rebelaram contra o rei da Assíria e se colocaram a forçar Judá a se aliar a eles, mesmo que isso custasse a retirada de Acaz do trono. Por volta de 735 a.C., Acaz confrontou os exércitos de Rezim, rei da Síria, e Peca, rei de Israel, que avançaram sobre Jerusalém para castigá-lo, uma vez que ele negou as propostas de aliança contra o assírio Tiglate-Pileser III. O contexto imediato da profecia de Isaías, portanto, é de temor e ansiedade nas terras de Acaz. 

A profecia foi proferida pelo profeta ao rei de Judá como uma forma de incentivá-lo a crer antes em Deus do que na Assíria, uma vez que o Criador já havia decretado o fim dos reinos que o atormentavam. 65 anos depois, Esar-Hadom (681-668 a.C.) cumpriu cabalmente a profecia, tomando a Síria e Israel e assentando estrangeiros em suas terras. Como sinal de Deus para confirmar a mensagem profética, uma virgem (do harém de Acaz ou a mulher com quem Isaías casou-se e teve um filho) iria conceber um filho que teria entre 12 e 14 anos, idade suficiente para a realização de escolhas morais, quando a Síria e Israel fossem inicialmente capturados pela Assíria, o que começou a acontecer em 732 a.C.42.

Há, contudo, algumas complicações nessa passagem. Segundo a Bíblia de Estudo Defesa da Fé, nos comentários de Gary Smith, a ideia da vinda desse "Emanuel", que significa "Deus Conosco", não se aplica ao rei Acaz, pois seu bom filho Ezequias já era nascido na época da profecia, e nem ao profeta Isaías, que já tinha filhos e, portanto, sua esposa não era mais virgem. Com base nisso, muitos entendem que o texto faz referência apenas ao futuro nascimento do Messias, o verdadeiro "Deus Conosco"43. Charles C. Ryrie, por sua vez, fala de Isaías tendo um filho com sua segunda esposa - ele se casou com uma profetiza (Is 8:3) depois dessa profecia, tendo com ela o filho Maher-Shalal-Hash-Baz. A primeira esposa de Isaías, supõe-se, morreu depois de ter Sear-Jasube, o filho que acompanhou o profeta diante do rei Acaz. No espaço de doze anos após desferida a profecia, Damasco foi capturada pela Assíria (732 a.C.) e Israel caiu (722 a.C.)

Merril F. Unger observa, porém, que a profecia de Isaías 7:14 evidencia um contexto muito mais abrangente do que o do mero nascimento de uma criança, indicando a aplicação do sinal para além da casa de Acaz, ligando-o a toda a casa de Davi - o uso de "vos", plural, sugere isso. F. Derek Kidner, no Comentário Bíblico Vida Nova, deixa claro que, enquanto Acaz pretendia participar dos jogos políticos humanos, Deus providenciaria Seu próprio sinal, mas para um público maior do que o círculo próximo do presente rei, abarcando toda a dinastia davídica. Esse "Emanuel", que é Deus gerando uma criança enquanto o rei busca um exército, tem a sua identidade esclarecida posteriormente, em Isaías 9:6-7 e 11:1-5. 

O fato de a vinda de Cristo ter acontecido muito tarde para a profecia ter aplicação completa no tempo de Acaz, não implica em erro profético, uma vez que ela referia-se a toda a casa de Davi, isso num período na qual ela estava ameaçada - considere que os tempos verbais hebraicos para "conceberá" e "dará à luz" são indeterminados, não havendo distinção entre presente e futuro, podendo, portanto, aplicar-se à casa de Davi de uma maneira atemporal, servindo para o tempo de Isaías e para o tempo de Jesus, por meio de José. Apesar disso, é possível que Isaías 7 tenha tido um cumprimento imediato: a cronologia da concepção até a idade da consciência moral, 12-14 anos, carregava forte simbolismo, Emanuel pode ter sido o nome que alguma criança daquele tempo realmente recebera, ou, em termos hierárquicos, se enraizou na esperança associada ao nascimento de uma criança da casa real, ainda que Ezequias não estivesse ligado a esse sinal.     

Diante desse quadro, percebemos que a profecia de Isaías 7 possui duplo cumprimento: foi pensada para se consolidar de alguma maneira já nos dias de Acaz, mas também para apontar para o Messias que estava por vir, Aquele que restauraria a casa de Davi - a Aliança Davídica, descrita em 2 Sm 7:8-16, afirma que a dinastia de Davi duraria para sempre, liderando um Reino sem fim. Esse Messias seria, de fato, o "Deus Conosco", o Deus Encarnado. A ligação da profecia de Isaías 7:14 com outras do mesmo livro, reconhecidamente messiânicas, aponta com maior precisão para Jesus Cristo: Isaías 9:1-6 está falando explicitamente que o menino será o próprio Deus, como fica claro no versículo 5 - "Porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado, ele recebeu o poder sobre os seus ombros, e lhe foi dado este nome: Conselheiro-Maravilhoso, Deus-forte, Pai-para-sempre, Príncipe-da-paz" (Bíblia de Jerusalém) -, e Isaías 11:1-9, historicamente entendido como indicativo de que o Messias seria descendente de Jessé, pai de Davi. Considero relevante atentar para a natureza messiânica de outras passagens de Isaías: o capítulo 61, que Jesus começa a ler em Lucas 4:18-19, era entendido, no período próximo do nascimento de Cristo, como messiânico, , "Jesus Afirmou ser o Messias? Declarou ser Deus?", e o capítulo 53, referente ao Servo Sofredor e historicamente ligado a Cristo, também era tido como uma profecia referente ao Messias, "Isaías 53 Fala de Cristo?"           

J. M. Frame ajuda a sustentar a perspectiva do duplo cumprimento de Isaías 7:14: segundo ele, para Mateus a ideia de "cumprimento profético" poderia assumir dimensões estéticas, indo além do relacionamento claro entre "predição" e "evento predito", conforme se evidencia no uso de Zc 9:9 em Mt 21:1-4 - nesse sentido, o "cumprimento" chama a atenção do leitor à profecia de uma maneira surpreendente ou estranha, possivelmente fora do que o próprio profeta sabia acerca de sua predição. Acontece, então, de o nascimento virginal espantosamente se acomodar como um segundo cumprimento ao que proferiu Isaías47. De todo modo, se juntarmos as exigências de textos como Isaías 7:14, 6:1-9, 11:1-9, 61:1-3 e 53, não podemos pensar em ninguém contemporâneo ao profeta - e só podemos olhar para o Filho de Deus. 

Perceba, leitor, como Mateus não teria dificuldades de associar imediatamente o que ouvira sobre o nascimento virginal de Cristo ao texto de Isaías 7:14. Essa passagem só não havia se tornado base para uma expectativa messiânica numa perspectiva de nascimento virginal, pois tal ideia quase não estava presente no judaísmo palestino e não era unânime entre os judeus helênicos, mas não haveria nenhuma complicação, avaliando o contexto geral do livro de Isaías, para um judeu instruído remeter-se ao versículo 14 do capítulo 7 ao ouvir falar da concepção e do nascimento virginal do Mestre. Evidentemente, nenhum judeu estaria disposto a se entregar a boatos infundados: o que se dizia acerca dos milagrosos eventos associados ao nascimento de Cristo só teria valor como sinal de messianidade se viesse como complemento a outros eventos e ações messiânicas de conhecimento público, como a ligação com o rei Davi, os reconhecidos milagres, a profunda sabedoria e autoridade, a exposição de uma Nova Aliança, a Crucificação e, especialmente, a Ressurreição e a Ascensão aos céus - esses eventos últimos estão registrados no mais antigo credo cristão de que temos conhecimento, formulado entre os primeiros meses e anos após o término do ministério de Jesus, "Quão Antigas Podem Ser as Tradições Cristãs?". Está claro que ninguém acreditaria que uma pessoa irrelevante teria nascido sobrenaturalmente - acreditaram no singular nascimento do Mestre porque Ele levou uma vida extraordinária. 

Conclusão:            

Não há razões bíblicas para duvidar da concepção e do nascimento virginal de Cristo. Não há erro de tradução ou de interpretação, não há um embuste tardio da parte dos cristãos, não há razões para os cristãos terem inventado a ideia de que Maria era virgem quando concebeu - a simplicidade e literalidade do texto não deixam dúvidas sobre a sua autenticidade. A ideia não veio de mitos pagãos, também não brotou de interesses de proteger Maria de um suposto adultério, tampouco nasceu de uma relação de Maria com um legionário romano. O que temos é uma história familiar, que ficou restrita ao círculo mais próximo da Sagrada Família até a morte da mãe de Jesus, vindo a desenvolver a cristologia quando exposta publicamente e difundido-se largamente entre a absoluta maioria dos cristãos já no Séc. II. Ninguém pode levantar contestações substanciais em termos históricos e bíblicos contra a doutrina do nascimento virginal - o que podem fazer é partir da pressuposição de que milagres não acontecem e, disso, formular argumentos.       
          
Considere, leitor, que acusações baseadas em pressuposições e preconceitos, como a impossibilidade de que a normalidade da natureza possa ser burlada por um elemento externo, sobrenatural, não se justificam. Nesse assunto, o opositor do cristianismo é obrigado a pensar a partir da pressuposição, enquanto nós, cristãos, somos levados a refletir partindo de elementos sólidos, firmemente enraizados na coerência histórica e textual.     

C. S. Lewis magistralmente nos informa que os primeiros cristãos creram no milagre do nascimento virginal não por serem ignorantes acerca de como uma mulher engravida, mas justamente por terem consciência de como uma gravidez normalmente começa e se desenvolve - a crença no milagre pressupõe o entendimento da normalidade da natureza, pois só se pode atribuir extraordinariedade a algo se conhecermos o seu funcionamento ordinário. Ninguém se maravilharia com o nascimento virginal se não conhece o básico sobre a concepção e a gravidez natural. 


Se os primeiros cristãos se maravilharam, por qual razão não devemos nós, no Séc. XXI, nutrir igual espanto diante do inquestionável toque do Eterno na realidade humana? Não estamos falando de um mito deslocado do tempo, estamos falando da figura história de Jesus de Nazaré! Estamos falando do Deus Conosco, do Redentor, do Deus que se fez carne, dAquele que nasceu sem Pecado para que pudesse pagar o preço de sangue pelas nossas faltas, cobrindo com Seus méritos todos quantos ouvirem Seu chamado ao arrependimento, dando fim à Maldição Adâmica. Ele é o Perfeito que, feito homem, pode nos levar ao Pai, ao Perfeito! E é esse o significado da Encarnação, é esse o significado do Natal!


Seriam os Romanos os escritores do Novo Testamento?



É comum ouvirmos dos críticos afirmando que o texto neotestamentário foi escrito tardiamente e pelos romanos para persuadir e apaziguar os judeus. Será que essa informação procede?
 Para responder ao questionamento, busquei vários livros e preparei uma argumentação dividida em 10 pontos. Tenha uma ótima leitura - e tire as suas próprias conclusões!

Para entrar no espírito do texto, comecemos com Josh McDowell, que é categórico em sua primeira frase sobre o assunto no livro "Evidências da Fé Cristã", compilado por Bill Wilson: "A ambientação de todos os quatro Evangelhos é evidentemente a do primeiro século hebraico."

Índice: 1 - Aspectos culturais singulares; 2 - O relato do julgamento de Jesus não é antissemita; 3 - As profecias e a história do Antigo Testamento; 4 - Documentos palestinos e o hebraico e aramaico nos Evangelhos; 5 - Evidências do testemunho ocular; 6 - A antiguidade do Novo Testamento e o testemunho da História; 7 - O ódio dos romanos para com os judeus; 8 - O ódio dos romanos contra os cristãos; 9 - As divergências entre os Evangelhos; 10 - Textos embaraçosos para os judeus e para os romanos; Conclusão. 

1 - Aspectos culturais singulares: Muitos aspectos particulares da cultura judaica aparecem com naturalidade e sem explicações nos relatos neotestamentários. Os romanos compreendiam muito pouco desses costumes. Vejamos alguns exemplos: 

- Em Lucas 7:38 temos o relato da mulher que se prostrou aos pés de Jesus e lavou-os com suas lágrimas. Acontece que o choro era uma parte importante da cultura judaica - carpideiras profissionais eram contratadas para os funerais e um considerável número de judeus tinha vasos de lágrimas, onde guardavam as lágrimas de suas aflições. É possível que a mulher que chorou aos pés de Jesus tenha derramado todo o conteúdo de seu vaso de lágrimas sobre eles. 

- Lucas 2:24 relata a oferta deita por José e Maria, em obediência à exigência de Levítico 12:2, 6 e 8, pelo bebê recém-nascido - duas pombas ou rolinhas, indicando sua posição social.

- Os costumes do casamento hebraico também explicam o que aparenta ser uma contradição em Mateus 1:18-19: no versículo 18 Maria aparece como noiva de José e no 19 ela o chama de "marido".

A verdade, segundo James Freeman, é que o noivado na antiga Israel era levado mais a sério do que em nossa cultura atual, sendo considerado o próprio começo do casamento - o compromisso legal era tão sério quando no casamento consumado e não poderia ser rompido, senão por uma declaração de divórcio. 

- O confronto ente Jesus e os saduceus, Marcos 12, está em conformidade com o que se sabe sobre a percepção dos saduceus com relação ao levirato. No Talmude palestino, os saduceus empregam o levirato para zombar dos fariseus, propondo o hipotético problema do sobrevivente dentre 13 irmãos que é ordenado a se casar com as viúvas dos 12 irmãos falecidos.

- O relato da mulher hemorrágica (Mateus 9:20-22; Marcos 5:25-34; Lucas 8:43-48), adquire profundo significado quando entendido o seu contexto israelita. Por doze anos essa mulher permaneceu impura e, ao tocar as vestes de Cristo, ela o teria contaminado - é por isso que ela se amedrontou quando notou que Jesus percebera seu toque. A compaixão do Messias nessa situação demonstra com mais nitidez a Nova Aliança. 

- Nos Evangelhos sinóticos há o relato das purificações que Jesus realizou no Templo de Jerusalém, expulsando os mercadores. Só podemos entender o que realmente aconteceu quando verificamos o evento nos moldes dos costumes judaicos: Jesus não era contrário ao câmbio monetário. A maioria do povo carregava moedas romanas com a imagem de César, que eram proibidas de entrar no Templo, conforme a Lei mosaica. 

Outro tipo de moeda circulava nas repartições do Templo - dinheiro judaico contendo apenas flores, ornamentos geométricos ou cerimoniais. Foi contra esse processo de câmbio que o Mestre se opôs: há fontes israelitas que sugerem que algumas famílias sacerdotais obtinham lucros ilícitos nesse procedimento. A corrupção e o tumulto irritaram o Mestre, que queria ver puro o local que representava a majestade de Deus. 

- Outro aspecto interessante dos Evangelhos é que eles apresentam Jesus se dirigindo quase que exclusivamente às cidades judias para realizar Suas obras. Apenas duas cidades que não eram judaicas ortodoxas foram visitadas por Cristo: Sidom e Sicar. Sidom era pagã e Sicar era samaritana. Não havendo nenhum registro de milagre em Sidom, não sabemos de nenhuma maravilha promovida pelo Messias entre os pagãos. Jesus aparece indo para Betsaida, mas não Júlia, cem metros distante; entra na pequena Nazaré, mas evita Séforis, cinco quilômetros distante; Ele se dirige para a região de Decápolis, Cesareia de Filipe e Tiro, mas não entra em nenhuma cidade pagã - o relato inteiro é judaico ortodoxo. 

- A imagem do Mestre colorida nos Evangelhos O apresenta como pró-semita, com comentários que podem parecer antigentios. Vide Mateus 10:5; 15:26; Marcos 7:27 e João 4:22. 2 - O relato do julgamento de Jesus não é antissemita: Antes de observar se uma determinada declaração é antissemita, é importante observar se a pessoa que fala é judia ou não. Durante suas aulas de Novo Testamento, o professor Felming sempre começa dizendo o seguinte: "Eu não sei por que alguns judeus são tão sensíveis ao suposto antissemitismo do Novo Testamento. Como poderia alguém que diz 'eu o vomitarei para fora da terra', ser antissemita? Como poderia alguém que diz 'suas orações são um fedor às narinas de Deus', ser antissemita? E é claro que todos eles ficam transtornados. 'Como se poderia dizer que isso não é antissemita?' Então eu os lembro de que estou citando Isaías e Jeremias." Se houvesse interesse da parte dos evangelistas de encobrir os romanos, por qual motivo colocariam Pôncio Pilatos açoitando Jesus? Poderiam ter feito de Pilatos um herói que assume a responsabilidade e, na sua autoridade, põe fim na situação. João, considerado o mais "antissemita" dos Evangelhos, afirma que Jesus disse que "a salvação vem dos judeus" (João 4:22). Lucas, por sua vez, apresenta Jesus pedindo, na cruz, perdão pelos pecados dos Seus juízes, declarando que "eles não sabem o que fazem" (Lucas 23:34), coisa estranha se a ideia era imputar a culpa nos judeus.

Até quando os Evangelhos desferem críticas sobre os líderes judeus, nada estão dizendo que já não tivesse sido falado pelos judeus anteriormente. Arqueólogos encontraram em Jerusalém pratos com a inscrição "Kathros", nome desenterrado também em Baraita, revelando o caráter das famílias sacerdotais dos tempos de Jesus: "Ai de mim por causa da casa de Hannan [Anás] por causa dos seus segredos! Ai de mim por causa da casa de Kathros, por causa de suas penas [provável referência à falsificação de documentos ilegais]. [...] Porque eles são sumo sacerdotes e os seus filhos são tesoureiros, e os seus genros [Caifás era genro de Anás] são os inspetores, e os seus criados batem nas pessoas com varas." Se declarações assim são encontradas, por qual motivo pensar que os Evangelhos são antissemitas? 

Na verdade, verificando a inscrição anterior, a preocupação dos evangelistas com as autoridades parece bem justificada. No período herodiano os membros do Sinédrio eram nomeadas por interesses políticos. Quando os evangelistas usam o termo "os judeus", não estão imputando culpa alguma à comunidade judaica - trata-se, na verdade, de um termo geral aplicado a um grupo de israelitas, geralmente da classe dos líderes, envolvidos em determinada situação. Por exemplo: não foram todos os judeus que pediram pela crucificação de Jesus, começando pelo fato de os discípulos de Cristo serem judeus, apenas a multidão presente diante de Pilatos é que clamou pela severa condenação - o Templo tinha cerca de vinte mil servidores e dezoito mil trabalhadores pagos, tornando fácil que os dirigentes do local mobilizassem um grande grupo de pessoas para exigir a morte de Jesus. O fato é que os Evangelhos nunca declararam que foram os judeus aqueles que mataram Jesus, referindo-se à multidão apenas por "eles". 

Lucas, em Atos, registra que a Igreja Primitiva não viu os judeus como "os assassinos de Cristo" - a oração de Pedro e João em Atos 4:24-28 ajuda a perceber isso. Fonte: Evidências da Fé Cristã, Josh McDowell, compilado por Bill Wilson, Hagnos, 2006, pgs 94-98. 3 - As profecias e a história do Antigo Testamento: Existe uma conexão profética extremamente forte entre o Antigo e o Novo Testamento, e apenas um judeu dos dias de Cristo, profundamente familiarizado com as esperanças proféticas, a leitura e a história do seu povo, poderia discernir a vastidão delas. Uma obra romana conseguiria acertar nalguns pontos, mas jamais daria interpretações corretas para o cumprimento de tantas profecias e estaria tão imersa em toda a tradição profética milenar de Israel. Segundo Werner Gitt, no livro "Perguntas que Sempre São Feitas", Actual, 2005, pg 33, há 6.408 versículos com indicações proféticas, das quais 3.268 já se cumpriram. A Bíblia de Estudo das Profecias, John C. Hagee, Atos, 2005, pg 987, nos informa que há cerca de 300 profecias veterotestamentárias que se cumpriram em Jesus Cristo no Novo Testamento. A profecia é um traço típico da literatura judaica e a sua presença nos escritos neotestamentários ajuda a reconhecer a sua procedência - além disso, a necessidade nítida dos autores do Novo Testamento de evidenciar o cumprimento de profecias em Cristo está em concordância com os anseios proféticos que eletrizavam a Palestina no Século Primeiro, resultantes de uma esperança judaica secular. 

Um resumo da profecia messiânica no Antigo Testamento você pode encontrar no seguinte artigo do EMEAB: Cristo e as Profecias do Antigo Testamento. 4 - Documentos palestinos e o hebraico e aramaico nos Evangelhos: Um dos maiores achados arqueológicos de todos os tempos, os Manuscritos do Mar Morto, de Qumran, pinta um pano de fundo histórico bastante colorido sobre os anos que antecederam Cristo e sobre o Primeiro Século na Palestina. Muitos pontos dos Evangelhos que outrora foram questionados mostraram-se coerentes com o pensamento corrente na primeira metade do Século Primeiro, como a afirmação bíblica de que Cristo é o "Filho de Deus", antes explicada como influência romana, mas posteriormente, com base no 4Q246 de Qumran, tida como palestina. A declaração de Jesus em Mateus 11:4-6, quando se apresenta como Messias, está dentro dos moldes da esperança messiânica do período, registrada no 4Q521, também de Qumran. 

Além da mensagem falada pelo Mestre ser apresentada dentro de uma matriz judaica, algumas de Suas parábolas encontram eco em histórias morais palestinas, com ênfase nas ilustrações utilizando os vinhedos. Jesus também não era o único a desferir palavras proféticas, embora as profecias dEle tenham se cumprido cabalmente. Mais um aspecto do ministério de Jesus que encontra paralelos reside na realização de milagres - diversos taumaturgos perambulavam na região da Palestina, embora apenas Cristo tenha realizado as mais incríveis maravilhas sem o uso de nenhum objeto ou ritual. Sua fama como realizador de milagres rendeu o uso de Seu nome até por pagãos, que O tiveram como autoridade curativa em suas operações durante várias décadas depois da Sua ascensão. 

Outra singularidade palestina que aparece nos Evangelhos é a esperança messiânica - não era incomum que alguém aparecesse afirmando ser o Messias esperado, como Cristo fez. É claro que Jesus teve todo o suporte de centenas de profecias cumpridas, realizou as mais extraordinárias maravilhas, afirmou ser Deus e ressuscitou dos mortos. Até mesmo a zombaria que os romanos despejaram sobre o Salvador durante Seu julgamento é corroborada por outras ocorrências da época. Tudo isso indica que os Evangelhos formam um livro plenamente judaico. Fonte: O Jesus Fabricado, Craig Evans, Cultura Cristã, 2009, pgs 41-44; 120-124; 136, 138, 140 e 160-161; Manual Bíblico Unger, Merril Frederick Unger, Vida Nova, 2006, pgs 437-439. Segundo se pode extrair de Papias, bispo de Hierápolis, que escreveu por volta de 130 d.C., Mateus redigiu seu Evangelho primeiramente em hebraico - ou "no estilo judaico". Jerônimo, o responsável pela Vulgata Latina por volta de 380 d.C., afirmou ter tido contato com o original hebraico de Mateus. 

Esse Evangelho, cujo público leitor era o hebreu, apresenta uma familiaridade ímpar com o pensamento judaico e transmite informações proféticas e culturais com grande naturalidade e de modo muito específico, reconhecendo que os primeiros a terem contato com a sua mensagem não demandavam maiores explicações. O Evangelho de Marcos, mesmo que tenha sido escrito tendo o público romano em mente, apresenta uma matriz distintamente semita, evidenciando que o grego utilizado para a sua confecção era a segunda língua do autor. Também fica claro em sua leitura o uso de testemunho ocular, provavelmente Pedro (Marcos é também conhecido como "Memórias Petrinas") - o que se torna claro quando reconhecemos que a estrutura desse Evangelho segue o esquema geral das pregações do apóstolo Pedro em Atos. Sabe-se que o público-alvo de Marcos são os romanos pelo fato de o documento, entre outros motivos, não insistir nos costumes judaicos e na Lei mosaica - e quando alude alguma singularidade dos judeus, desfere explicações mais profundas do que os demais Evangelhos. Isso indica que Marcos não pode ter sido uma obra romana para apaziguar os judeus - o próprio público era romano. 

O Evangelho de Lucas é singular pelo fato de ter sido o único dos quatro a ser escrito, provavelmente, por um gentio - Lucas deve ter se convertido, no máximo, 15 anos após da ressurreição de Cristo. Ele deixa clara a sua origem gentílica ao chamar os habitantes de Malta de "bárbaros". Essa obra apresenta o melhor grego das Escrituras e, segundo afirmado pelo próprio autor, está totalmente embasada em testemunho ocular coletado em diversas fontes - as melhores que Lucas encontrou em sua acurada busca. 

Dos Evangelhos, o mais questionado é o de João. Muitos críticos insistem que ele é tardio e que não foi escrito por um cristão judeu, mas grego, com tendências gnósticas. Nada disso é verdadeiro quando considerados os aspectos do seu texto: a leitura do material nos mostra um autor judeu acostumado a pensar em aramaico, mesmo que tenha escrito em grego, pois seu público leitor dependia disso - há muitas palavras hebraicas e aramaicas inseridas no material, indicações da expectativa messiânica do povo judeu (1:19-28), conhecimento sobre a relação entre os judeus e os samaritanos (4:9) e a posição exclusivista do judaísmo (4:20), além de ele demonstrar familiaridade com as festividades judaicas. Trata-se, sem dúvida, de um judeu palestino - há descrições muito precisas de Jerusalém e dos arredores (5:2; 9:7; 11:18; 18:1), isso de antes da Queda, em 70 d.C., e familiaridade com as cidades da Galiléia (1:44; 2:1) e com o território de Samaria (4:5, 6 e 21); o autor foi testemunha ocular dos eventos descritos - 1:14 e 19:35; ele observou detalhes, colorindo a narrativa como apenas uma testemunha muito observadora poderia fazer - Jesus sentando no parapeito do poço (4:6), o número e o tamanho das talhas nas bodas de Caná (2:6), o peso e o valor do perfume que Maria derrubou sobre os pés de Jesus (12:3-5) e os pormenores do julgamento de Cristo (caps 18-19). 

As descobertas de Qumran confirmaram a autenticidade do contexto e do padrão de raciocínio judaicos observados no livro. Material consultado: A Bíblia de Estudo Anotada Expandida, Charles C. Ryrie, Mundo Cristão, 2007, introduções dos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João; Bíblia de Estudo Defesa da Fé, CPAD, 2012, introduções dos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João; Bíblia de Estudo Arqueológica, Vida, 2013, introduções dos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João; Manual Bíblico Unger, Merrill Frederick Unger, Vida Nova, 2006, introduções dos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João; O Novo Testamento, Sua Origem e Análise, Merrill C. Tenney, SHEDD Publicações, 2011, sobre Mateus, Marcos, Lucas e João. A questão é: como um livro escrito pelos romanos seria tão inteiramente judaico? E por qual motivo os romanos escreveriam algo para apaziguar os judeus, mas tendo eles mesmos como público leitor, como é o caso de Marcos? Ou de Lucas e João, que objetivaram atingir primeiramente os gregos? 5 - Evidências do testemunho ocular: Os Evangelhos demonstram claramente que são fruto, basicamente, do testemunho ocular. Há muitas evidências arqueológicas, além de pistas na construção dos textos, que apontam para isso.

É interessante notar que é justamente no Evangelho de João, aquele que os críticos consideram mais tardio, que os testemunhos oculares mais evidentes aparecem, conforme as citações que seguem: "Em termos gerias, a evidência interna indica que o autor [do Evangelho de João] foi testemunha ocular dos eventos que descreve. Sobre isso, é interessante citar o veredito de Dorothy Sayers, que focalizou o assunto na perspectiva do artista criativo: 'Convém ter-se em mente que, dos quatro evangelhos, é João o único a apresentar-se como um relato direto de uma testemunha ocular. E para quem quer que esteja acostumado com o tratamento construtivo de documentos, a evidência interna confirma esse pressuposto.' (...) o falecido professor de história oriental antiga, na Universidade de Chicago, A. T. Olmstead, acredita que a história da ressurreição de Lázaro, que aparece no capítulo 11, exibe 'toda a minúcia circunstancial da testemunha ocular convicta', enquanto a narrativa do sepulcro vazio no capítulo 20 é 'narrada incontestavelmente por uma testemunha ocular - plena de vida e destituída de qualquer detalhe a que possa o cética usar para fazer uma objeção justificável'." Fonte: Merece Confiança o Novo Testamento?, F. F. Bruce, Vida Nova, 2010, pg 64. O livro "Não Tenho Fé Suficiente Para Ser Ateu", Norman Geisler e Frank Turek, Vida, 2012, pgs 261-275, apresenta 84 evidências para o testemunho ocular em Lucas e 59 para o testemunho ocular em João, unindo aspectos do texto e achados arqueológicos. Se houver interesse, leia as seguintes postagem do EOMEAB sobre o assunto: A Precisão do Relato de Lucas; O Testemunho Ocular do Evangelho de João. Sobre a precisão de Lucas, é interessante compartilhar as reflexões de Sir. William Ramsay, que explorou o Mundo Mediterrâneo pelas terras registradas pelo evangelistas, constatando: "Comecei tendo um pensamento desfavorável a ele [o livro de Atos] [...]. Eu não tinha o propósito de investigar o assunto em detalhes. Contudo, mais recentemente, vi-me muitas vezes sendo levado a ter contato com o livro de Atos vendo-o como uma autoridade em topografia, antiguidade e sociedade da Ásia Menor. 

Fui gradualmente percebendo que, em vários detalhes, a narrativa mostrava verdades maravilhosas." "A história de Lucas é insuperável no que diz respeito à sua fidedignidade." "Lucas é um historiador de primeira grandeza; não apenas suas afirmações são de fato fidedignas; revela-se possuído de verdadeiro senso histórico; fixa a mente na ideia e no plano que regem a evolução da história e regulam a escala de sua consideração à importância de cada fato. Focaliza nos eventos importantes e críticos e lhes ressalta a verdadeira natureza em maior extensão, enquanto que apenas considera ligeiramente ou omite inteiramente muito do que não se reveste de valor para seu propósito. Em síntese, este autor deveria ser colocado entre os maiores historiadores." Fontes: Não Tenho Fé Suficiente Para Ser Ateu, Norman Geisler e Frank Turek, Vida, 2012, 266; Merece Confiança o Novo Testamento?, F. F. Bruce, Vida Nova, 2010, pgs 118-119. Se os Evangelhos formassem um livro romano, não poderiam apresentar testemunhos oculares tão claros e equilibrados. Também não descreveriam a geografia e os costumes culturais dos judeus palestinos de forma tão precisa, somente possível para aquele que está familiarizado com a região e o seu povo. 6 - A antiguidade do Novo Testamento e o testemunho da História: Os mais antigos testemunhos que temos apontam para a autoria judaica - ou sob forte influência dos judeus - do texto neotestamentário. Não há nenhuma razão, tomando como base os registros históricos, para negar isso. O processo é justamente o contrário do proposto por alguns críticos: tratam-se de escritos formulados, em todos os aspectos, sob a pena judaica para influenciar os hebreus e os gentios. 

O mais antigo dos testemunhos que temos para a autoria dos Evangelhos está em Papias, que escreveu por volta de 130 d.C. e foi preservado por Eusébio, no século IV d.C. Segundo Papias, citado por Eusébio, "Mateus organizou as palavras de Jesus em hebraico e aramaico e as interpretou da melhor forma que pôde", ou "Mateus colecionou os oráculos [logia] no idioma hebraico [hebraidi dialekto]" (Eusébio, História da Igreja III, 39, 16). Irineu de Lyon, por volta de 180 d.C., reforça Papias afirmando que "Mateus publicou também um evangelho entre os hebreus em seu próprio dialeto, enquanto Pedro e Paulo pregavam em Roma e punham os fundamentos da Igreja". No início do Século II já aparece a designação "O Evangelho Segundo São Mateus" (Adv. Haereses II, 1,1). A atribuição "Segundo São Marcos", aparece no Século III, mas Papias também formula declarações nesse sentido: "Marcos, intérprete de Pedro, escreveu com exatidão, mas sem ordem, tudo aquilo que recordava das palavras e ações do Senhor; não tinha nem ouvido nem seguido o Senhor (....). Ora, como Pedro ensinava, adaptando-se às várias necessidades dos ouvintes, sem se preocupar em oferecer composição ordenada das sentenças do Senhor, Marcos não nos enganou escrevendo conforme recordava; tinha somente esta preocupação, nada negligencias do que tinha ouvido, e nada dizer de falso." (Eusébio, História da Igreja, III, 39, 15). 

Quanto ao Evangelho de Lucas, há um prólogo do Século II: "Lucas foi sírio de Antioquia, de profissão médica, discípulo dos apóstolos, mais tarde seguiu Paulo até a confissão (martírio) deste, servindo irrepreensivelmente o Senhor. Nunca teve esposa nem filhos; com oitenta e quatro anos morreu na Bitínia, cheio do Espírito Santo. Já tendo sido escritos os evangelhos de Mateus, na Bitínia, e de Marcos, na Itália, impelido pelo Espírito Santo, redigiu este Evangelho nas regiões da Acaia, dando a saber logo no início que os outros Evangelhos já haviam sido escritos." Sobre o Evangelho de João, temos um precioso trecho de Irineu, falecido em 202 d.C., citando Papias: "Enfim, João, o discípulo do Senhor, o mesmo que reclinou sobre o seu peito, publicou também o Evangelho quando de sua estadia em Éfeso." Fonte: Ciência e Fé em Harmonia, Prof. Felipe Aquino, Cléofas, 2012, pgs 154-162. 

Além de declarações antigas de cristãos, há evidências arqueológicas do próprio Novo Testamento que atestam para a sua antiguidade: - O Papiro Rylands: apresenta partes do Evangelho de João e pode ser datado do ano 125 d.C. - Fragmento de Marcos: sugere-se que um dos fragmentos da Caverna 7 de Qumran seja do Evangelho de Marcos, datando-o, segundo o estilo de escrita, da década de 50 d.C., no máximo, Tal proposta é bastante contraditória. - O Evangelho de Marcos em múmia: recentemente foi divulgado o achado do Evangelho de Marcos numa máscara de múmia egípcia do Século Primeiro. O manuscrito foi datado como pertencente aos anos 80 ou 90 d.C. - Outros manuscritos muito antigos, abrangendo os Evangelhos, Atos, as epístolas gerais e/ou as epístolas de Paulo, são: os papiros I, II e III, de Chester Beatty, datados entre os séculos II e III; e os papiros II, VII, VIII, XIV e XV, de Bodmer, datados entre os séculos II e IV. Há considerável fartura de folhas nalguns desses manuscritos, chegando a ter 102. Foram catalogados, até o momento, 96 papiros. - Possuímos entre 10 e 15 manuscritos dos cem primeiros anos após a conclusão do Novo Testamento. Fontes: Ciência e Fé em Harmonia, Prof. Felipe Aquino, Cléofas, 2012, pgs 154-162; Crítica Textual do Novo Testamento, Wilson Paroschi, Vida Nova, 2008, pgs 44-46; Origem, Confiabilidade e Significado da Bíblia, organizado por Wayne Grudem, C. John Collins e Thomas R. Schreiner, Vida Nova, 2013, Capítulo 12 por Daniel B. Wallace, pg 113; A Evidência Definitiva do Evangelho no Primeiro Século, Entreomalhoeabigorna.blogspot.com.br, 23/01/2015. 

A antiguidade do Novo Testamento ajuda a destruir a proposta de que o texto neotestamentário é fruto da pena romana, pois desbanca as duas teorias principais: a de que o Novo Testamento foi criado e imposto depois do Concílio Niceno, no Século IV, e a de que o Novo Testamento foi forjado e empurrado para os judeus depois de 70 d.C. Como o Novo Testamento foi forjado em meados do Primeiro Século para enganar pessoas que estiveram na Palestina nos dias de Cristo? Como fazê-las acreditar que aconteceram coisas extraordinárias que nenhuma delas viu, mesmo que no quintal de suas casas? A proximidade dos eventos e dos manuscritos impossibilita tal golpe! A história de Cristo é real - e pessoas que O viram também leram documentos que estamos atualmente desenterrando. 7 - O ódio dos romanos para com os judeus: É sabido que os romanos nutriam grande desprezo pelos judeus, que habitavam os confins do Império. Por diversas vezes ao longo de séculos os semitas de Israel se rebelaram contra o Império, exigindo o deslocamento de legiões inteiras repetidas vezes - algumas dessas rebeliões se estenderam por anos. A região era um barril de pólvora sempre prestes a explodir. Isso levou o Império a adotar medidas cada vez mais severas para preservar seu domínio. Ainda assim, o povo hebreu permaneceu fechado às honras e bagatelas que os povos conquistados pelos romanos geralmente aceitavam como produto da Pax Romana. É extremamente complexa a história política de Israel no período de dominação romana, mas o fato é que, segundo Christiane Rancé, "Roma nutria um desgosto profundo pela Palestina irredutível, pelos judeus que não se deixavam assimilar, por seu culto incompreensível, e alimentava o desejo secreto de eliminar o local da face do império." Fonte: Jesus, Christiane Rancé, L&PMPocket, 2012, pg 48. Esse "desejo secreto" consolidou-se entre 66 e 70 d.C., quando as legões do Império mataram mais de um milhão de judeus e destruíram completamente o Templo de Jerusalém. Mas não era só a situação política de Israel que produzia o desprezo dos romanos: o povo judeu não era apreciado também por ser considerado bárbaro e relativamente primitivo. 

Muitos eruditos romanos viam nos escritos judaicos cópias de mitos pagãos, como o Dilúvio de Noé, e tinham-nos como mal escritos, em comparação com as obras de seus grandes escritores. Fonte: Uma História Politicamente Incorreta do Cristianismo, Robert J. Hutchinson, Agir, 2012, pg 13. Os que alegam que os romanos criaram o Novo Testamento, inventando o cristianismo para apaziguar os judeus, precisam considerar o seu desprezo pela cultura judaica: diversas declarações romanas demonstram que eles ignoravam tanto os costumes judaicos, que não conseguiam discernir as suas práticas religiosas e culturais mais comuns. Esse desconforto pela cultura judaica seria uma forte barreira contra uma imersão nela objetivando a formulação de uma nova religião. O desgosto de Roma para com os judeus, que consideravam indignos e inferiores, não propiciaria um movimento tão complexo de redefinição religiosa - a primeira opção era sempre a legião e a guerra. 8 - O ódio dos romanos contra os cristãos: Os cristãos, à princípio, eram tidos apenas como uma seita judaica e, por isso, desde o começo foram tratados com o mesmo desprezo que os judeus. Mas, conforme os romanos foram discernindo o movimento cristão, o tiveram como algo pior que o próprio judaísmo: uma seita bizarra e supersticiosa, fundada por um judeu fanático, provocador e problemático, coerentemente condenado à morte - e uma morte em desonra. Os romanos também acusavam os cristão de, em suas reuniões secretas, comerem carne e beberem sangue humanos - uma interpretação equivocada da Santa Ceia - e promoverem orgias incestuosas, já que chamavam uns aos outros de "irmão" e "irmã". Para Roma, essa seita era muito menos interessante do que a religião tradicional e as religiões de mistério, com os elevados cultos mitraicos, estoicos e a Ísis. Além de estranharem o comportamento dos cristãos, os romanos repudiavam os seus Escritos. Para eles, tanto as Escrituras judaicas quanto cristãs eram, segundo Hutchinson, nada além de "uma coletânea ralé de lendas folclóricas, leis esquisitas, cartas mal escritas, biografias de mágicos milagrosos", entre outros. Sem dúvida os romanos preferiam, em todos os sentidos, os seus escritores clássicos, como Virgílio, Cícero, Ênio e Cato. 

Diante deles, apontavam que a Bíblia era imatura, repleta de erros de ortografia e gramática e provida de "tramas ridículas". É com isso em mente que Tertuliano, apologista cristão do século II d.C., afirma que "os homens estão tão longe de aceitar nossas escrituras que ninguém se aproxima delas a menos que o individuo em questão seja cristão." O próprio Santo Agostinho, maior teólogo do Primeiro Milênio, manteve-se longe do cristianismo por 12 anos por causa da Bíblia. Fonte: Uma História Politicamente Incorreta do Cristianismo, Robert J. Hutchinson, Agir, 2012, pgs 13-14. Os romanos se opuseram ao cristianismo de tal forma que lançaram diversas perseguições ferozes, resultando em milhares de martírios. O fato é que os cristãos, além de praticarem coisas que causavam estranheza e de terem um livro desprezado, ignoravam a religião oficial e o culto ao imperador, tinham uma tendência de negar o serviço militar e afastavam-se dos costumes romanos, sendo considerados como "inimigos da humanidade". Fonte: O Cristianismo Através dos Séculos, Earle E. Cairns, Vida Nova, 2008, pgs 75-77; Os Cristãos, Tim Dowley, Martins Fontes, 2009, pgs 15-18. Por fim, podemos evidenciar o desinteresse dos romanos para com a "seita dos cristãos" em diversas declarações pagãs contra o cristianismo, que deixam claro o quanto os seguidores de Cristo eram voluntariamente desconhecidos pelos romanos, sendo, por exemplo, confundidos com os judeus por Suetônio - 120 d.C. -, que justificou a expulsão dos judeus de Roma apontando os distúrbios frequentes causados por eles sob influência de "Cresto". 

O que de fato pode ter acontecido foi que os cristãos e os judeus de Roma entraram em discordância - Suetônio parece pensar que Cristo, ou "Cresto", estivesse pessoalmente na capital do império por aqueles dias. Foi por essa época, 111-113 d.C., que Plínio, o Moço, resolveu pesquisar sobre a singular "raça dos cristãos", objetivando deixar o Imperador Trajano consciente de como eles eram. Fonte: Merece Confiança o Novo Testamento?, F. F. Bruce, Vida Nova, 2010, pg 154; Bíblia de Estudo Arqueológica, Vida, 2013, pg 1751; Em Defesa de Cristo, Lee Strobel,Vida, 2011, pgs 108-109. Como o Novo Testamento poderia ser um livro romano se o mesmo era mal compreendido e explicitamente desprezado pelos latinos? Por qual motivo os romanos inventariam uma religião que discordasse tanto dos anseios imperiais? Gerando, inclusive, insubmissão ao culto ao Imperador? Por qual motivo eles criariam uma religião para, imediatamente após isso, iniciarem um forte movimento de desmantelamento através de perseguições literárias e armadas, arregimentando seus grandes eruditos e as suas legiões? Se o Novo Testamento fosse um livro romano escrito para controlar os judeus, certamente apresentaria passagens que facilitassem a submissão ao Império, e não o contrário - além disso, seria composto de forma mais romana, não gerando tanto estranhamento e repúdio da parte dos latinos. 9 - As divergências entre os Evangelhos: Se os Evangelhos fossem obra dos romanos para a persuasão dos judeus, sendo produzidos juntos e pela mesma mente, não apresentariam divergências. 

Mas elas existem no texto neotestamentário, mesmo que não comprometam a Mensagem. Essas divergências existentes entre os documentos são positivas, pois demonstram que cada Evangelho foi escrito por pessoas diferentes e em períodos e lugares distintos - não houve uma reunião dos evangelistas para a formulação de um texto uno. Isso indica que houve um único evento verdadeiro presenciado por várias pessoas e registrado isoladamente por cada uma delas, sendo as mais proeminentes os autores dos quatro Evangelhos. Essa verdade única é verificável pelo fato de, mesmo que os textos tenham brotado da pena de pessoas em momentos e locais diferentes, eles concordam em quase tudo - não há contradições doutrinárias e nenhuma divergência cronológica e histórica relevante. Na verdade, se consideramos os padrões da época, os Evangelhos são muito harmoniosos entre si - e as variações existentes, em sua maioria paráfrases, omissão ou seleção de fatos, abreviações ou acréscimos explicativos, que em nada alteram o significado. 

Sobre isso, Henri Daniel-Rops afirma: "Santo Irineu falou com muita precisão do evangelho tetramórfico, isto é, o evangelho existente sob quatro formas. E, a partir da metade do segundo século, com Clemente de Alexandria e o Cânon Muratoriano, era a prática - e a única prática correta - dizer: o Evangelho segundo São Mateus, segundo São Marcos, segundo São Lucas, segundo São João; deixando claro que aqui existe um corpo de verdade, substancialmente um e único, comunicado aos homens em diferentes formas." Para Hans Stier, da escola historiográfica clássica, a harmonia em dados básicos e a divergência nos detalhes são sinal de credibilidade, já que as narrativas fabricadas costumam ser integralmente consistentes e harmoniosas. Fontes: Evidências da Fé Cristã, Josh McDowell, compilado por Bill Wilson, Hagnos, 2006, pgs 81-82; Em Defesa de Cristo, Lee Strobel, Vida, 2011, pgs 58-60. 10 - Textos embaraçosos para os judeus e para os romanos: Uma mentira forjada para persuadir não incluiria detalhes que apenas serviriam para produzir desentendimento e dificultar a aceitação do trabalho. Mas os Evangelhos, por tratarem da verdade, não foram poupados desses inconvenientes. 

Tomemos alguns exemplos: as palavras duras de Cristo e Seus ensinamentos excessivamente éticos; o fato de que Cristo não pôde realizar milagres em Nazaré; o trecho no qual o Mestre afirma "não saber o dia e nem a hora" de Seu retorno; a falta de fé e a tripla negação de Pedro; o aparente abandono de Jesus na cruz; o evidente fato de que os discípulos quase sempre entendiam mal o que o Mestre dizia; o momento no qual Tiago e João pediram ao Messias os melhores lugares no Seu reino... Além disso, quando os Evangelhos apresentam passagens desconfortáveis para os judeus, conforme relatado no segundo tópico, sugerem uma crítica judaica, não a tentativa romana de oferecer aos judeus uma mentira confortável e sedutora. Trata-se de uma crítica judaica, pois não há favorecimento dos gentios, como seria esperado de um texto romano para apaziguar os judeus e produzir neles mais submissão ao Imperador. Fonte: Evidências da Fé Cristã, Josh McDowell, compilado por Bill Wilson, Hagnos, 2006, pgs 94-98. 

Conclusão: 
Com base nos 10 pontos levantados, podemos entender que os Evangelhos não são obra dos romanos pelos seguintes motivos: apresentam detalhes culturais e políticos muito singulares de Israel; não elogiam nem judeus e nem romanos; estão ligados ao Antigo Testamento de forma muito profunda; entram em concordância com outros documentos palestinos do período; apresentam palavras e estilo judaico; evidenciam o testemunho ocular, consolidado pela arqueologia; são muito antigos e os mais remotos testemunhos sobre a sua autoria apontam para o contexto judaico; os romanos odiavam e não compreendiam os judeus e os cristãos; as divergências dos Evangelhos evidenciam sua escrita por pessoas em lugares e momentos diferentes, e todos apresentam passagens incômodas para os judeus e os romanos. Fica evidente, depois de tudo, que o que temos em mãos são documentos que formam um livro plenamente judaico.

Os métodos de interpretação da Bíblia

 
Neste estudo, serão apresentados os métodos de interpretação da Bíblia usados durante a história da Igreja (e ainda hoje), ressaltando os erros do método alegórico e dos métodos histórico-crítico e pós-moderno, e a coerência do método histórico-gramatical, que é a mais honesta abordagem das Escrituras, tendo sido usada pelos cristãos no início, resgatada após a Reforma e usada até aos dias de hoje por cristãos sinceros.

Falaremos também sobre as questões da inerrância e da infalibilidade das Sagradas Escrituras, e das traduções da Bíblia.

I – O método alegórico

A partir da Idade Média, o método cristão de interpretação da Bíblia sofreu alterações. Os exegetas medievais, seguindo Orígenes (185-253 d.C.), consideravam o sentido literal das Escrituras como pouco importante e pouco edificante. Eles diziam que o texto bíblico sempre tinha quatro níveis de sentidos: o sentido literal, o sentido anagógico, o sentido escatológico e o sentido moral. Eram inspirados na abordagem de Orígenes, que usava a figura do ser humano aplicada à interpretação da Bíblia, onde esses quatro pontos eram resumidos em uma tricotomia: (a) o corpo do texto – sentido literal (que Orígenes dizia ser apenas “casca e aparência”); (b) a alma do texto – sentido espiritual; e (c) o espírito do texto – sentido alegórico e cristológico. O texto sempre tinha, portanto, mais de um sentido, e o sentido literal era o menos importante.

Com base nessa hermenêutica, sempre e invariavelmente atribuíam a cada afirmação bíblica três sentidos ou níveis de significado além do literal, geralmente deixado de lado. Cada um desses sentidos levava a um sentido alegórico amplo, que consideravam “mais profundo” e, por isso, mais edificante, como julgavam.

Com o sentido moral, aprendiam as regras de conduta; com o propósito alegórico, procuravam ressaltar artigos de fé; e com o sentido anagógico, queriam aprender as realidades invisíveis do Céu. Por exemplo: todas as vezes que viam o termo “Jerusalém” nas Escrituras, sempre afirmavam que além de denotar literalmente uma cidade na Palestina, também se referia, no sentido moral, à sociedade civil; alegoricamente, à Igreja; e anagogicamente, ao Céu. Apenas esses três sentidos tinham valor para o estudo teológico dos exegetas medievais. O registro literal não tinha valor, apenas como um veículo de sentido figurativo.

Como bem define o teólogo britânico James I. Packer, “a exegese medieval foi, assim, exclusivamente mística. Fatos bíblicos se tornaram apenas uma base de salto para o terreno dos anseios teológicos; os fatos eram espiritualizados”.

II – O método histórico-gramatical


Com a Reforma Protestante no século 16, a importância do sentido literal do texto bíblico é resgatada e o “misticismo hermenêutico”, deixado de lado. Os reformadores protestaram contra o método alegórico e enfatizaram que o sentido literal, a intenção do autor, o sentido original de cada passagem das Escrituras, são o único guia seguro para entender a Palavra de Deus. Com isso, não estavam querendo dizer que esse “literalismo” não reconhecia as figuras de linguagem empregadas nas Escrituras, mas afirmava que deveria se fazer distinção clara entre o que era explicitamente figura de linguagem e o que não era.

Uma declaração exemplar da visão coerente dos reformadores é a de William Tyndale: “Tu deverás compreender, portanto, que as Escrituras têm apenas um sentido, que é o sentido literal; e esse sentido literal é a raiz e o fundamento de tudo, e a âncora que nunca falha, sem a qual errarás o caminho. E se te afastares um pouco do sentido literal, deverás ter cuidado para não saíres do caminho. As Escrituras usam provérbios, similitudes, alegorias, como todos os outros discursos usam, mas o significado do provérbio, similitude ou alegoria é sempre o sentido literal, que tu tens de buscar diligentemente”.
Outro detalhe é que embora os católicos, como os protestantes, entendam que a Bíblia é a Palavra de Deus, eles também consideram como fonte de revelação, com o mesmo peso da Bíblia Sagrada, o magistério eclesiástico católico preservado na tradição oral e os pronunciamentos do papa ex cátedra. Enquanto isso, os protestantes aceitam apenas a Bíblia como regra de fé e prática.

Ao reconhecerem a Bíblia como Palavra de Deus, os protestantes estão afirmando não que ela foi toda ditada por Deus (algumas passagens o foram, porém a maioria esmagadora não), mas, sim, que ela é totalmente inspirada por Deus e, por isso, infalível em sua mensagem e conteúdo. A Bíblia é, portanto, um livro divino, uma vez que dado por Deus, inspirado totalmente por Deus; mas também é um livro humano, uma vez que Deus respeitou a humanidade de seus autores – a linguagem, por exemplo. Por isso, para entendê-la, devemos orar, mas, ao mesmo tempo, estudá-la – e com isso estamos nos referindo ao estudo do seu contexto histórico e do aspecto gramatical.

Deve-se respeitar a intenção do autor – que só pode ser entendida pelo estudo do contexto histórico e o aspecto gramatical – e a evolução da revelação. O texto bíblico só pode ter um sentido, não quantos sentidos o leitor desejar. O sentido verdadeiro é o pretendido pelo autor quando foi inspirado pelo Espírito Santo.

III – O método histórico-crítico de interpretação


O método histórico-crítico de interpretação é um método de interpretação da Bíblia próprio do liberalismo teológico, que é a sua base ideológica. É também chamado de Alta Crítica. 

A gênese do método histórico-crítico está no Iluminismo, quando os homens passaram a achar que a própria razão, a análise crítica e racional, é o suficiente para o homem entender o mundo e resolver os seus problemas. A filosofia predominante era o racionalismo. Essa influência fez surgir o deísmo e, a partir daí, o liberalismo teológico. O liberalismo e o seu método histórico-crítico nasceram originalmente no deísmo, mas hoje é adotado até mesmo por teólogos agnósticos.

No método histórico-crítico, a interpretação da Bíblia deixou de ser uma tarefa para entender o que o autor queria dizer para ser uma tarefa de questionamento da produção do texto. O objetivo era tirar do cânon formal o cânon normativo. O teólogo alemão Johann Salomo Semler (1725-1791) dizia: “A raiz de todos os males (na teologia) é usar os termos ‘Palavra de Deus’ e ‘Escritura’ como se fossem idênticos”. Logo, segundo ele, era preciso distinguir e separar a “Palavra de Deus” da “Escritura”. O que Semler estava querendo dizer com isso é que a Escritura conteria erros e contradições ao lado de palavras que provêm de Deus. Estava implícita também nesta declaração a descrença na possibilidade do sobrenatural na história, devido à influência do racionalismo e do deísmo. Rejeitava-se a infalibilidade e a autoridade das Escrituras. Foi a partir desses pressupostos teológicos que o método histórico-crítico foi construído.

As etapas do método histórico-crítico são:

I – Crítica das Fontes – Partia do princípio de que os textos bíblicos eram edições feitas a partir de várias fontes diferentes, e usavam como pista qualquer aparente diferença de vocabulário ou estilo, repetições de histórias e digressões. A primeira hipótese desse tipo de crítica foi a Hipótese Documentária, que cria nas fontes Eloísta, Javista, Deuteronomista e do Quarto Documento no Antigo Testamento. Segundo os defensores dessa teoria, a Bíblia Hebraica teria sido editada para aglutinar quatro fontes. Tudo começou com um médico francês chamado Jean Astruc, que em 1753 levantou a tese de duas fontes – Eloísta e Javista – em Gênesis.

II – Crítica da Forma – Ainda mais radical. Já que poder-se-ia dizer ainda que as fontes se baseavam em tradição oral, então os liberais partiram para a crítica da forma do texto. Todos os textos tinham uma intenção política e eram manipulados. Bultmann chega a dizer que menos de 10% das falas de Jesus foram realmente proferidas por Ele. Tentam diferenciar o “Jesus da Fé” do “Jesus Histórico”.

III – Crítica da Redação – Objetivava identificar as “edições” na redação do texto bíblico e expurgá-las para extrair o que seria real e historicamente confiável segundo os liberais.

Nas últimas décadas, o método histórico-crítico começou a declinar. Por quê?

a) Caiu-se na real de que, na verdade, nunca fora um método neutro.

b) O subjetivismo inerente aos critérios utilizados para reconhecer a Palavra de Deus dentro do cânon fez com que os resultados fossem completamente diferentes, ao ponto de até hoje não existir um consenso do que seria a Palavra de Deus dentro do cânon reconhecido e aceito pelos próprios críticos.

c) O objetivo era impossível. Uma vez que desacreditava as Escrituras, elas perdiam todo o valor. Então, para que entender Deus pela Bíblia? Cada um passaria a ter uma teologia subjetiva agora. Daí o surgimento da Hermenêutica Pós-moderna

d) As igrejas aceitaram o liberalismo social e murcharam. As passagens contrárias à visão do liberalismo social foram vistas como “cânon formal” e não “cânon normativo”. As igrejas esfriaram, pois os pastores não pregavam mais a Bíblia e não oravam, apenas “meditavam”. As igrejas esvaziaram e morreram na Europa e em outras regiões.

Um detalhe importante é que, apesar de Karl Barth ter a sua importância, a Neo-ortodoxia também adotou o método histórico-crítico e é, em essência, mais relacionada ao liberalismo do que propriamente à ortodoxia.

IV – Hermenêutica pós-moderna

Os cristãos emergentes defendem que devemos aceitar interpretações diversificadas da Bíblia. Dizem que a Igreja é melhor enriquecida e abençoada quando há pluralidade de interpretações (cada uma atendendo a uma necessidade do momento). Eles desprezam conceitos básicos de Hermenêutica Bíblica, tais como a intenção dos autores bíblicos, o contexto cultural de cada livro e passagem (isto é, desprezam o princípio de que texto sem olhar o contexto é pretexto) e a homogeneidade da Bíblia (ou seja, desprezam o princípio de que a Bíblia se explica pela própria Bíblia). Assim, distorcem o significado de passagens da Bíblia a seu bel prazer para acomodá-las a seus pontos de vista. É o que se chama também de “Hermenêutica Pós-moderna” ou “Hermenêutica Generosa”. É desonestidade completa.

Jacques Derrida (1930-2004) pode ser considerado, involuntariamente, o pai da “Hermenêutica Pós-moderna”. De origem judaica, Derrida nasceu na Argélia, então colônia francesa, e sofreu muito em sua infância por causa do anti-semitismo. Já na juventude, tornou-se discípulo confesso dos escritos dos ateus Friedrich Nietzsche, Jean-Jacques Rousseau e Albert Camus. Inspirado nesses seus ídolos, Derrida fundou o desconstrutivismo, tese que propõe a indeterminação do sentido dos textos. Por descrer em verdade absoluta e ser defensor ferrenho do relativismo, Derrida ensinava que qualquer texto deve ser lido sem nos preocuparmos em achar qualquer intenção do autor por trás dele. Para o francês, devemos ser livres na interpretação de um texto, que pode ter quantos significados sejam necessários, independente do propósito do autor ao escrevê-lo. Caberia a cada leitor, portanto, dar aos textos o significado que ele mesmo acha que tenham.

Seguindo os pressupostos desconstrutivistas, os teólogos emergentes ensinam que a interpretação de um texto bíblico pode ter vários significados, não sendo possível determinar um sentido único que seja apresentado como o verdadeiro. O sentido do texto não estaria dentro do texto, mas fora do texto. Não seria intra-textual, mas extra-textual. O significado e a interpretação de todos os textos bíblicos seriam, portanto, relativos e caberia a cada um extrair dos textos bíblicos, sem preocupar-se com regras de hermenêutica, as lições que achar interessantes, conforme a necessidade do momento.
V – Uma visão honesta e correta das Escrituras

Jesus disse certa vez que os escribas e fariseus erravam por não examinarem as Escrituras e ignorarem o poder delas (Mt 22.29). Isso demonstra que desconhecer o propósito das Escrituras resulta em não experimentarmos o seu poder e eficácia em nossas vidas. A Bíblia é suficiente, mas ela só se torna eficiente em nossas vidas quando nós a aceitamos como Palavra de Deus, como regra de fé e prática para nossas vidas.

O apóstolo Paulo, escrevendo ao seu discípulo Timóteo, apresenta o propósito das Sagradas Escrituras. Afirma Paulo: “Toda a Escritura divinamente inspirada é proveitosa para ensinar, para redargüir, para corrigir, para instruir em justiça; para que o homem de Deus [1] seja perfeito e [2] perfeitamente instruído para toda a boa obra”.

O vocábulo grego traduzido por “perfeito” em 2 Timóteo 3.17 é artios, que só aparece nessa passagem em todo o Novo Testamento. O vocábulo significa “provido”, “completo”, “perfeito” ou “aperfeiçoado”. Quando Paulo fala que as Escrituras são, em primeiro lugar, para que o homem de Deus seja artios, ele está evocando o mesmo que afirma em Efésios 4.12-15.

Jesus afirmou que a Bíblia é infalível. Disse Ele que “a Escritura não pode falhar” (Jo 10.35). Logo, a infalibilidade das Escrituras não é uma invenção dos estudiosos da Bíblia, e as pessoas que tentam encontrar falhas na Bíblia e ao mesmo tempo dizem que crêem em Jesus estão sendo contraditórias, pois, para empreender essa busca, já têm que partir do princípio de que Jesus mentiu ou se equivocou ao dizer que a Escritura é infalível.

Outro detalhe sobre a infalibilidade das Escrituras é que os que tentam contestá-la são justamente aqueles que desprezam uma hermenêutica correta. Por exemplo, desprezam a necessidade de atentarmos para a intenção dos autores bíblicos para entendermos o significado do texto (mais à frente, ainda neste capítulo, vamos nos dedicar a esse assunto). Um exemplo: Será que quando Josué escreveu que o Sol e a Lua pararam (Js 10.12-15) ele tinha a intenção de afirmar necessariamente que o Sol e a Lua giram em torno da Terra ou será que estava apenas descrevendo, com suas próprias palavras e conhecimento limitado, um milagre que presenciou com seus próprios olhos após a sua oração? Como é que alguém, na época de Josué, descreveria o milagre de o dia ficar prolongado? Não diria que o Sol e a Lua ficaram estacionados em cantos opostos do horizonte? Inclusive, ainda hoje nós não dizemos que o Sol “nasce” e “se põe”? Qual era a intenção do autor ali? Se o texto de Josué fosse uma passagem bíblica em que a intenção do autor fosse apresentar ou descrever, com base na inspiração e na revelação divinas, uma verdade sobre o universo (como em Gênesis 1 e 2), aí seria diferente, mas não é o caso.

A Bíblia também é inerrante, posto que:

(a) O próprio Jesus asseverou que ela é fidedigna em seus mínimos detalhes (Mt 5.18);
(b) As Escrituras dizem que Deus, que a inspirou (2Tm 3.16), não pode errar (Hb 6.18; Tt 1.2);
(c) E Jesus afirma que a Palavra de Deus é a verdade (Jo 17.17).

Se a Bíblia foi dirigida pelo Deus da verdade, conforme ela mesma nos diz, então podemos confiar em sua inerrância. Isto é, todas as vezes que a Bíblia prescreve o conteúdo de nossa fé (doutrina) e o padrão de nossa vida (ética) ou registra eventos reais (história), ela não mente, não erra, mas fala a verdade. Há dificuldades em algumas passagens da Bíblia? Sim, só que essas dificuldades são logo dissipadas quando nos dedicamos a estudá-las sinceramente em busca de respostas, em vez de tomar a nossa primeira dificuldade em entendê-las como prova de que não podem ser entendidas. Quando agimos assim, as contradições se revelam aparentes. Muitos delas são, inclusive, contradições decorrentes de uma leitura isolada do texto sem olhar o seu contexto, que muitas vezes é toda a Escritura. Como lembra o teólogo escocês Bruce Milne, “quando uma passagem da Escritura é interpretada de acordo com a intenção do escritor e em harmonia com outras passagens bíblicas, sua verdade inerrante será percebida claramente” (Conheça a verdade, Bruce Milne, ABU Editora, 1987).

A Bíblia também é autoritativa e normativa, pois ela mesma se apresenta assim em suas páginas. O próprio termo “Escritura” para se referir à Bíblia hebraica e depois ao Novo Testamento (2Pe 3.15,16) era usado nos tempos bíblicos para descrever o texto sagrado como autoritativo e normativo. O próprio termo “Palavra de Deus”, que Jesus utilizou para se referir à Escritura em Marcos 7.7-13, era usado também para demonstrar que o texto do Antigo Testamento tem valor normativo e autoritativo. Aliás, nessa mesma passagem, Jesus afirma aos fariseus que a Bíblia está acima da tradição como referência normativa e chama a Palavra de Deus também de “mandamento de Deus”. Cristo ainda usou a autoridade das Escrituras para rebater o Maligno (Mt 4.4) e sempre invocou a Bíblia como normativa e autoritativa para várias questões (Mt 19.4; 10.34-36).

O Mestre também aceitou a ética do Antigo Testamento como normativa (Mt 5.17) e a Bíblia apresenta a lei moral de Deus como algo que devemos obedecer. O termo “lei” sugere autoridade e normatividade.

O Antigo Testamento, que é chamado de “Palavra de Deus” (como vimos, por exemplo, em Marcos 7.13), é também chamado de Escritura divinamente inspirada (que é justamente o significado de “Palavra de Deus”), que é a mesma categoria dada às Epístolas de Paulo (2Pe 3.16,17) que, por sua vez, compõem o Novo Testamento. Logo, se o Novo Testamento é Escritura divinamente inspirada como o Antigo Testamento, ambos são “Palavra de Deus”.

Quem lê a Bíblia apenas como uma obra literária excepcional com grandes lições morais, mas sem considerá-la a revelação de Deus aos homens e um livro que apresenta proposições para a fé, isto é, doutrinas, não está aceitando, de fato, a Bíblia como ela é. Ler a Bíblia apenas de forma literária é, simplesmente, não levar a Bíblia a sério. O apóstolo Paulo, escrevendo aos tessalonicenses, destacou a importância de recebermos a pregação do conteúdo bíblico como Palavra de Deus (1Ts 2.13). Devemos fazer o mesmo hoje e sempre.

VI – Quanto às traduções da Bíblia

A maioria das traduções que temos da Bíblia hoje em dia é bastante confiável. Claro que pode-se fazer críticas a algumas versões como Atualizada, NVI e Bíblia na Linguagem de Hoje, quanto à real fidelidade em algumas passagens muito específicas do texto bíblico, porém as diferenças são minimizadas por não envolverem nenhuma questão doutrinária essencial. Essas versões as quais mencionei não usam como base o Texto Recebido, usado pela Igreja do 16º ao 19º século, mas os exemplares de Texto Crítico de Westcott e Hort, de Eberhard Nestle e das Sociedades Bíblicas Unidas. Já a Revista e Corrigida, e principalmente a Corrigida Fiel, usam o Texto Recebido. A versão mais preocupante é a NIV (a em inglês), mas a NVI (em português) evitou muitos desses erros desde a sua primeira edição, que foi apenas inspirada na proposta original da NIV, não seguindo todas as suas sugestões de tradução.

Bem, mas de forma geral, sobre esse assunto de traduções, é preciso entender o seguinte:

A) Em primeiro lugar, é errada a teoria de que a inspiração da Bíblia só pode ser conservada na sua língua original ou numa versão em língua clássica ou erudita. Tal conceito seria o mesmo que defender a crença da língua sagrada, como o árabe no islamismo, o sânscrito no hinduísmo e o latim no catolicismo medieval. No próprio Novo testamento há inúmeras citações da Septuaginta, que é o Antigo Testamento em grego. Jesus fez uso dessa versão em seus ensinos e pregações (Is 7.14; 8.8,10; Mt 1.23; Is 42.4 e Mt 12.21) e fizeram o mesmo os apóstolos Paulo (Dt 27.26 e Gl 3.10), Pedro (Is 28.16 e 1Pd 2.6) e Tiago (Pv 3.34 e Tg 4.6). Os apóstolos não impuseram o hebraico às nações quando levaram o Evangelho para outros povos.

B) Em segundo lugar, a linguagem pode ser atualizada, mas a mensagem jamais pode ser alterada. Quando a mensagem é modificada, a versão deixa de ser inspirada, pois o texto foi corrompido e falsificado. Exemplo: A geração de judeus que retornou do cativeiro babilônico falava aramaico, que era a língua oficial do império. Eles não entendiam bem a leitura em hebraico da Lei e dos Profetas, que era comum nas sinagogas. Por isso, surgiu a necessidade de explicações orais em aramaico, como vemos em Neemias 8.8. Com o passar dos anos, essas explicações foram escritas, tornando-se os Targumim, traduções parafraseadas do Velho Testamento hebraico para o aramaico. O Targum de Ônquelos contém o Pentateuco e o de Jônatas, os Profetas. Curiosamente, o Targum de Ônquelos parafraseou a expressão “Eu Sou” de Êxodo 3.14 e Deuteronômio 32.29 da seguinte forma: “Aquele que é, e que era, e que há de vir”. Essa mesma expressão aparece 5 vezes em Apocalipse (Ap 1.4,8; 4.8; 11.17; 16.5). Isso mostra que as várias formas, estilos e construções gramaticais são válidas, contanto que o conteúdo do texto, seu sentido, não seja corrompido. 

C) Em terceiro lugar, no processo de tradução, a paráfrase pode ser usada, mas com muito cuidado. A paráfrase traduz explicando o texto. Na paráfrase, em vez de traduzir palavra por palavra, se traduz idéia por idéia. Esse recurso deve ser usado apenas quando uma tradução literal não ajuda o leitor a entender a passagem; é quando é necessário o uso de nossas expressões idiomáticas para que o texto fique mais claro. É perfeitamente possível manter a fidelidade ao texto original assim, mas esse recurso, repito, só pode ser usado em passagens em que realmente se faz necessário isso.

D) O Texto Recebido (Textus Receptus) é a última revisão do texto impresso do Novo Testamento grego, preparado originalmente por Erasmo de Roterdam e publicado em 1516. Foi o primeiro texto impresso do Novo Testamento grego a ser publicado após a invenção da imprensa. O de Francisco de Cisneros foi preprado antes, mas publicado só em 1520. Como Erasmo não dispunha de manuscritos completos do Novo Testamento, fez uso de apenas quatro manuscritos gregos cursivos: um do século 10, dois do século 12 (sendo que um deles contém apenas o Apocalipse com algumas lacunas supridas pela Vulgata) e um do século 13, que contém apenas Atos e as Epístolas. Na época, Erasmo não teve acesso aos principais manuscritos e os papiros antigos ainda não tinham sido descobertos. O texto de Erasmo foi revisado várias vezes até que os irmãos Bonaventure e Abraham Elzevir publicaram uma nova e definitiva edição desse texto de Erasmo em 1624, intitulando-a Textus Receptus. É a base das principais traduções do Novo Testamento, como, por exemplo, a tradução de João Ferreira de Almeida, a inglesa King James Version e a versão espanhola de Casiodoro de Reina.

Hoje, há mais de 5,7 mil manuscritos gregos no Novo Testamento. Com base nos novos manuscritos que foram descobertos, foram feitas revisões, o chamado Texto Crítico, mas tais revisões, para espanto dos tradutores, mostrou como o texto bíblico permanecia extremamente puro apesar dos séculos.

Como bem afirma o pastor e teólogo assembleiano Esequias Soares, em artigo publicado no jornal Mensageiro da Paz, “seria muita ingenuidade esperar que todas as cópias do NT produzidas à mão em três continentes durante mais de 13 séculos ficassem exatamente iguais, como as páginas impressas. Como era de se esperar, há algumas diferenças como ordem diferente de palavras, sinônimos, soletração, palavras, frases e versículos omissos, acrescidos ou deslocados”, mas nada que não pudesse ser claramente identificado para que se garantisse o texto puro. “A Crítica Textual, desde 1750, checou cada versículo em todos esses manuscritos” – frisa pastor Esequias, acrescentando ao final que, depois do intenso trabalho de investigação, “os críticos ficaram estupefatos com o grau de exatidão” do texto do Novo Testamento. A fidedignidade do conteúdo fora preservado.

Os 5,7 mil manuscritos foram submetidos à análise de críticos textuais os mais exigentes, que, em sua meticulosidade, descobriram cerca de 250 mil variações entre todos os manuscritos do Novo Testamento, só que, a maioria esmagadora dessas variações, quase que a totalidade, girando apenas em torno de ortografia e disposição de palavras, e não afetando em absolutamente nada o conteúdo doutrinário. Os poucos casos maiores envolvem interpolações ou erros de copistas (mas que são facilmente identificáveis), o que garante, no mínimo, uma pureza de 99,5% do texto bíblico que temos em mãos em relação aos seus autógrafos originais.

Só para se ter uma idéia, essas mais de 200 mil variações, se vertidas para a nossa língua, nem apareceriam! Não podem sequer ser traduzidas da língua grega para qualquer idioma. São nuances do grego e diferenças de ortografia sem alteração alguma no sentido da passagem. E dentre os 0,5% que são realmente substanciais, não há nada que comprometa a Teologia Cristã. Textos como alguns versículos de Marcos 16, João 8 1João 5, que são interpolações, são os casos maiores, e mesmo assim nenhum deles, se omitidos, mudaria qualquer doutrina bíblica. E ainda há o fato de que algumas dessas interpolações são altamente discutíveis se são ou não interpolações mesmos. Exemplo: Marcos 16.9-20.

Além de Marcos terminar de forma abrupta, no original o versículo 8 termina com uma conjunção (“gar”) e, como afirmam os especialistas, “na literatura grega, a conjunção ‘gar’ jamais é usada como conclusão de um texto”. O vocábulo “gar” significa “pois” ou “porque”. Outro detalhe importantíssimo é que apesar de as duas cópias mais antigas de Marcos não conterem os versículos de 8 a 20 (o Manuscrito Sinático, conhecido como Códice Alef, escrito em cerca de 340 d.C, e o Manuscrito do Vaticano, conhecido como Códice B, datado de 350 d.C), mas apenas o terceiro mais antigo (o Manuscrito Alexandrino, Códice A, do ano 450 d.C.) contém o texto e todas as demais 677 cópias restantes, os Pais da Igreja, bem antes dessas cópias mais antigas, mencionam muitos versículos de Marcos 16.9-20 em seus escritos teológicos. Exemplos são Irineu (125-202 d.C.); Hipólito (160-236 d.C.) e Taciano, um seguidor de Justino Mártir, que viveu no final do segundo século, todos atestando conhecer a existência da redação de Marcos após o versículo 8. Além do que, como já afirmamos, dos 5,7 mil manuscritos gregos do Novo Testamento, aproximadamente 680 deles contém o Evangelho de Marcos completo e apenas dois desses 680 manuscritos não incluem esses versículos; e as 8 mil versões do latim contém os versículos de 9-20, além das versões góticas, egípcias e armênias.

E) Finalmente, é importante frisar que há, atualmente, mais de 5,7 mil cópias de manuscritos gregos do Novo Testamento ou de porções neotestamentárias, indo do primeiro ao nono século, e a maioria é do terceiro, quarto e quinto séculos. Isso é impressionante, uma vez que nenhuma outra obra da literatura grega pode ostentar uma abundância tão grande de cópias.

“A Ilíada de Homero, a maior de todas as obras clássicas gregas, é subsistente em cerca de 650 manuscritos; e as tragédias de Eurípides existem em aproximadamente 330 manuscritos. O número de cópias de todas as outras obras da literatura grega é bem menor. Além disso, deve-se acrescentar que o espaço de tempo entre a composição original e o manuscrito subsistente mais próximo é muito menor para o Novo Testamento do que para qualquer obra da literatura grega. O lapso de tempo para a maioria das obras clássicas gregas fica entre oitocentos e mil anos, enquanto que o intervalo para muitos dos livros do Novo Testamento é de cerca de 100 anos”, destaca o teólogo norte-americano Philip Wesley Comfort.

Flávio Josefo, historiador judeu do primeiro século, fala da existência do Cânon Hebraico do Velho Testamento já estabelecido: “...e pelos quais temos tal respeito, que ninguém jamais foi tão atrevido para tentar tirar ou acrescentar, ou mesmo modificar-lhes a mínima coisa. Nós os consideramos como divinos” (História dos Hebreus, Contra Ápion, Livro 1, capítulo 21, CPAD). Essa recomendação de não alterar as Escrituras Sagradas aparece ao longo da Bíblia (Dt 4.2; 12.32; Pv 30.5-6 e Ap 22.18-19). Esse Cânon mencionado por Josefo parece ser o mesmo mencionado por Jesus (Lc 24.44), cuja tríplice parte está presente em Josefo e na Bíblia Hebraica ainda hoje.