quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Emmanuel Levinas sobre: À intolerância ao Talmud e a literatura rabínica


O judaísmo frente à intolerância: reflexões teóricas sobre a resistência na história

Tão antigo quanto a humanidade, o fenômeno da intolerância construiu inúmeras representações. Da literatura às manifestações artísticas, da propaganda política ao controle da memória social, dos mitos à religião, veremos ao longo da História, grupos sociais e minorias étnicas sendo submetidos, manipulados, segregados e exterminados a partir da proposital difusão de discursos de poder.

Podemos ainda considerar que a intolerância ao judaísmo e aos judeus, manifestada na formação de pensamentos depreciativos e atitudes sectárias e destrutivas sobre esse povo, representa um dos processos mais longos e ininterruptos da história da marginalidade social.

Com base em tal premissa, o objetivo deste ensaio é refletir acerca dos aspectos ideacionais e práticos da intolerância aos judeus, construídos com base no pensamento religioso de natureza teológica/eclesiástica. Da Idade Média à Modernidade, a intolerância religiosa será apresentada a partir das dimensões concretas que assumiu na História Mediterrânea, tomada em sua essência e perversidade, articulando processos de exclusão e eliminação do ser judaico.

Essas questões evidenciam que todo discurso intolerante possui um projeto de dominação que não indicaria, necessariamente, um golpe político, ou usurpações de poder. Tal artifício de legitimidade do pensamento intolerante baseia-se numa espécie de raciocínio de projeção. Projetam-se sobre os alvos sociais do discurso e práticas intolerantes os males construídos pela própria sociedade ou grupo dominante. No imaginário da intolerância, o oprimido torna-se sempre um opressor, que deve ser combatido.

Tanto em Estado como em sociedade, atitudes concretas são tomadas para comprovar “a razão” ou o “sentido” das violências instituídas: No mundo antigo, temos os estigmas da rebeldia judaica contra o Império Romano, que redundaram em milhares de crucificações por todo o território.

Na Idade Média, o mito do judeu deicida e errante, através da difusão de uma lógica punitiva eterna ao povo do “Antigo Israel”, acusados de haverem supostamente tramado, renegado e traído o Deus que a eles foi revelado. Segundo o pensamento eclesiástico, a verdade e a salvação universais deixaram de estar ao lado do povo judeu quando estes pecaram contra Deus.

Para Paulo de Tarso (Epístola aos Romanos), um novo Israel (Israel Espiritual) e um Novo Testamento surgiam através do cristianismo, sobrepondo-se e anulando a existência do que chamou de “antigo Israel e seu Antigo Testamento” (Israel Carnal). A expressão paulina Verus Israel – O verdadeiro Israel, em configuração cristã, ilustra a gênese do distanciamento histórico que passou a demarcar as tensas relações entre Cristianismo e Judaísmo, até os dias atuais.

Na realidade, em alguns textos dos Pais da Igreja (Patrística), localizamos a idéia de anterioridade do cristianismo em relação ao judaísmo, e de sobreposição religiosa. Em História Eclesiástica, datada de inícios do século IV d.C, o bispo Eusébio de Cesaréia reportara-se aos "testemunhos do Antigo Testamento" para que, em sua hermenêutica, ficasse comprovada a relação mística e religiosa entre Moisés e Jesus.

No livro I De História Eclesiástica, Eusébio discorre sobre a cristianização de Moisés, definindo o judaísmo como obsoleto já desde tempos bíblicos. Defendia que Abraão, Isaac e Jacob já seriam cristãos em seus atos e identidades, e Moisés, um líder que teria se colocado contra costumes a posteriori praticados pelo Judaísmo, como o descanso aos sábados (Shabat), as regras alimentares judaicas (Kashrut) e a circuncisão (Brit-Milá). Segundo Eusébio:

(...) É agora o momento adequado de mostrar que o próprio nome Jesus, como também o de Cristo, foram honrados pelos profetas consagrados de outrora. Primeiro, o próprio Moisés reconheceu como é supremamente augusto e ilustre o nome de Cristo quando transmitiu a tradição dos tipos e símbolos místicos de acordo com o oráculo (...). Assim, evidentemente, ele compreendeu que Cristo era um ser divino. O mesmo Moisés, sob o Espírito divino, antevendo também o título Jesus, igualmente dignifica com certo privilégio de distinção.(...) Mas eles obviamente conheciam o Cristo de Deus, conforme apareceu a Abraão, comungou com Isaac, falou com Jacó e conversou com Moisés e os profetas após ele, conforme já foi demonstrado. (EUSEBIUS, 1992, I; III e IV)

Além dos patriarcas e profetas bíblicos perderem sua definição hebraica, Jesus é entendido como um não judeu. Seria angustiante aos principais líderes eclesiásticos da Idade Média pensar que um Deus adorado pela cristandade pudesse ter sido guiado por princípios judaicos, em suas ações e pretensões com o próximo. O Deus cristão não poderia ser um judeu. Os Pais da Igreja erigiram uma literatura repleta de alegorias interpretativas não apenas de oposição, mas de anulação da cultura judaica, e das heranças judaicas inerentes à formação do Cristianismo.

Lembremos que o cristianismo surge historicamente como uma seita judaica, propagada no interior de sinagogas da Judéia romana. Entre aqueles que viam Jesus como Messias, não havia qualquer intenção de serem abolidos práticas e costumes judaicos cotidianos. Em sua imensa maioria, os cristãos dos primeiros séculos na Judéia eram, assim como Jesus (Yeshua ben Yossef), judeus praticantes das leis mosaicas e devotos à Tora.

Tertuliano, João Crisóstomo, Jerônimo, Eusébio de Cesaréia, Agostinho de Hipona, Gregório Magno, Ambrósio de Milão, intelectuais e autoridades eclesiásticas dos séculos III, IV e V, aprofundaram a lógica de substituição histórica das alianças divinas. Aos judeus, lhes foi rompida a aliança com Deus, uma vez merecedores de um trágico destino diaspórico, por suas crueldades. Para Agostinho de Hipona, o Israel Carnal, representado pelo povo judeu, seria historicamente substituído por um Israel Espiritual, cristão, sem máculas ou posturas traiçoeiras em relação ao próximo, e a Deus.

É importante ressaltar que as leituras alegóricas sobre a Bíblia Hebraica e os Evangelhos não se restringiram a uma doutrina anti-judaica de caráter discursivo. Constata-se que, no âmago do pensamento intolerante de setores do episcopado mediterrâneo, o discurso anti-judaico amadureceu rumo a uma práxis anti-semita, pontualmente localizada quando, em nome da “salvação das almas”, previu-se a destruição dos judeus, de suas práticas, produções textuais, e instituições.

A literatura episcopal fundamentada na Patrística clássica esteve metodologicamente ancorada em interpretações alegóricas e concepções soteriológicas sobre o homem e sua relação com o trascendental. Representou esta literatura, em nosso entendimento, um rearranjo circunstancial entre as novas significações atribuídas às múltiplas realidades mediterrâneas, e o forte legado agostiniano especialmente referente às ilações sobre os judeus e o Judaísmo.

Lembremos que com Agostinho, os judeus já desempenhavam função quase determinante no jogo mitológico-existencial da cristandade, ao terem suas existências pré-condicionadas por questões como o deicídio, a culpabilidade perene, as inextinguíveis condições carnal, errante e diaspórica, e a aproximação com a identidade herética. Agostinho apresentava ainda a necessidade de opressão, perseguição ou conversão obrigatória dos elementos sociais desviantes, práticas interpretadas como provas de um amor divino incondicional e piedoso às criaturas historicamente condenadas.

Seguindo a lógica de teóricos como Raoul Girardet, Maria Luiza Tucci Carneiro sustenta que o mito encontra-se na base das retóricas intolerantes

como a representação deturpada de fatos ou personagens reais que, repetida constantemente, induz o indivíduo a elaborar uma interpretação falsa de um momento histórico ou de um grupo. O mito induz a acreditar numa realidade que não é verdadeira e, desta situação, se valem os teóricos (...) a que interpretam os fatos reais de forma distorcida de acordo com os interesses do grupo a que servem. Tais idéias, no entanto, para se transformarem em práxis, necessitam de ter a sua disposição meios adequados de circulação: é quando a doutrina se manifesta como discurso.

Afirmamos assim que o discurso episcopal exacerbou tais pragmatismos agostinianos, repensando a questão judaica com base na mescla entre velhas e novas dicotomias, ambivalências e rótulos. Tais concepções sobre o real (Cristo-AntiCristo; bem-mal; céu-inferno; pureza-pecado; mundo sublime -mundo vil, saúde-doença, etc.) tornariam imóveis os papéis sociais então distribuídos, principalmente em relação ao problemas das conversões obrigatórias e suas prováveis resistências.

Nesse sentido, nos deparamos com um conjunto denso e complexo de alegorias, metáforas e falsos conceitos, que reforçam a hipótese do uso da linguagem como duplo instrumento de opressão, atuando em nível real e simbólico. Esse discurso de poder tornava o outro impotente perante as imagens construídas, pérfido em suas “invenções”, perdendo quaisquer possibilidades de aceitação ou de existência social / espiritual.

Sucessivos desterros, conversões forçadas, confisco de bens, punições físicas e assassinatos em massa; Aos cristãos/Cristandade, representados pelas Igrejas e Monarquias Européias, a teologia patrística articulada dos séculos IV ao VII legou a responsabilidade de expandir a verdade universal, salvando a humanidade de um mal supostamente presente e sempre ameaçador.

Nas epístolas de Agostinho redigidas aos heréticos do Norte da África (Donatistas, Pagãos e Judeus), os poderes benignos da Igreja, aliados às forças das leis imperiais, preocupados com o destino da humanidade, poderiam fazer uso da perseguição, textualmente definida como “prova de amor”.

No anseio de concretização do chamado “cristianismo militante”, converter ou exilar os elementos propagadores do mal seriam algumas das soluções vislumbradas. “Os filhos pagando eternamente pelos crimes de seus pais”: com esta expressão de Agostinho, a Igreja medieval encontrava legitimidade suficiente para desestruturar a existência judaica no mundo mediterrâneo.

Jean Delumeau, em seus estudos sobre o fenômeno do medo no Ocidente medieval, analisa também algumas das principais fontes do ódio ou da intolerância ao elemento judaico. Ao enfocarmos especificamente o mundo mediterrâneo da Alta Idade Média, esse ódio, que para o autor, seria um desdobramento do medo perante o desconhecido, manifestou-se, historicamente, em importantes componentes comportamentais.

Percebe-se a hostilidade da coletividade cristã – ou parte dela – frente a uma minoria tida como empreendedora, e considerada, acima de tudo, inassimilável. Conforme já destacara Carlo Ginzburg em alguns de seus trabalhos, o hibridismo e a diferença inerentes ao que denominamos como ethos judaico ultrapassariam, em nosso entendimento, aos limiares toleráveis de convivência cultural em sociedade.

As hostilidades supracitadas poderiam ser expressas, a exemplo, nas atitudes tomadas pelas instâncias formais e doutrinárias de poder. O medo aqui se manifestaria pela projeção da imagem do mal absoluto em sociedade sobre a figura do judeu empreendedor, resistente, e disseminador, via proselitismo, de uma fé já historicamente condenada. Esse mal, como será estudado a seguir, só poderia ser de fato extirpado caso frontalmente combatido.

Na literatura episcopal de origem hispano-visigoda, por exemplo, os recursos da invenção, da projeção e da generalização são amplamente utilizados para definir a marginalidade judaica do converso. Inseridos nas categorias de “povo deicida”, de “perfídia” e “mal absoluto”, os judeus batizados peninsulares – De Discretione Iudaeorum - tornavam-se efetivamente, uma questão a ser resolvida.

Lugares da resistência à intolerância: o Talmud e a literatura rabínica

Segundo Marc-Alain Ouaknin, “la question centrale du judaïsme est celle delínterpretation et le Talmud est le lieu du conflit des interpretation". Para todos os discursos intolerantes, encontramos expressões que se contrapõem aos esquemas de dominação instituídos. Assim, em meio aos aparentes silêncios dos sujeitos alvos da intolerância, é imperativo ao historiador contemporâneo conceder lugar para os chamados “discursos da resistência”.

A intolerância ao elemento judaico pode ser explicada, em muitos casos, como a não compreensão e oposição às visões de mundo produzidas pelo Judaísmo Rabínico (IV ao XVI), em sua expressão literária mais conhecida e difundida pelas comunidades judaicas em todo o mundo: o Talmud.

A historiografia medievalista até hoje permaneceu silenciosa quanto às inflexões da cultura rabínico-talmúdica sobre o universo social do judeus e dos conversos de origem judaica. Chegam sequer a apontar o Talmud como possibilidade para o estudo do anti-semitimo, latente entre os séculos VI e VII, ou antes, como fundamento filosófico e exegético da resistência dos judeus batizados.

Para Jacob Neusner, o Talmud marca a inserção de uma historicidade ocidental ao Judaísmo mishnaico, mais restrito ao mundo oriental da Palestina, sendo peça indispensável na análise da História do próprio Ocidente Medieval.

De difícil tipificação literária, o Talmud reúne 25 mil páginas de pensamento rabínico divididas entre 63 volumes temáticos, produzidos nos séculos IV e V d.C, por academias ao norte da Judéia e Babilônia. O Talmud pode ser compreendido como conjunto hermenêutico (Guemará), dialógico-reflexivo (Haggadah) e normativo (Halachá) de discussões sobre o real, o trascendental e o homem, enquanto código de éticas e lições de condutas judaicas em sociedade.

Sua polêmica heteroglossia, oposta a uma visão estritamente teológica de mundo, abriu espaço para uma subversão de ordens estabelecidas. Com seu teor interpretativo, podemos considerar que o Talmud ordenou e dinamizou simbolicamente as existências judaicas no medievo e na modernidade.

Podemos inclusive associar tais espaços de subversão, abertos pela literatura rabínica, à condição judaica de pária social, conforme propôs Anita Novinsky em ensaio sobre a censura e as minorias:

Durante milênios os judeus foram párias, animados por um sentimento do indeterminado, do heterodoxo. Eles formam um grupo que em potencial tinha todas as condições para se opor a uma ordem preestabelecida. Hannah Arendt reconheceu no judeu pária essa capacidade para recusar o mundo. Privados de seus direitos políticos, muitos judeus conseguiram libertar-se, mas apenas individualmente, como homens. Excluídos de toda participação política imediata, realizam essa integração por meio da arte e de sua própria criatividade, como artistas ou intelectuais rebeldes. O que é fundamental nessa tradição clandestina do judeu, sempre um ‘excluído’, é a força de sua posição crítica.” (NOVINSKY, 2002, p. 32)

A polissemia e a heteroglossia, adjetivações adequadas ao entendimento dos significados culturais do Talmud, também foram discutidas, em profundidade filosófica, por Emmanuel Levinas. O autor, em diversas leituras e interpretações de tratados do Talmud da Babilônia, buscou transmitir aos seus leitores que, longe do consenso esperado de textos ditos “moralizantes” ou “edificantes”, o Talmud constitui-se como conflito de interpretações sobre o real humano e a incomensurabilidade do transcendental, do divino.

O poder simbólico e heterodoxo inscrito nos comentários talmúdicos evidencia um sentido de “contra-revelação” ao propósito da teologia cristã, em textos que apresentavam diversas escolas filosóficas de pensamento, representadas pelos Rabis, dialogando sobre problemas de ordem ontológica, espiritual ou exegética, sem que necessariamente se alcançasse um resultado normativo.

No Talmud, como em toda a literatura rabínica circundante (Midrashim), o ato de discutir, manifestar o intelecto, suplantavam integralmente a tendência ao autoritarismo ideológico ou teológico. Esta dinâmica talmúdica veio então reforçar a autoridade dos Rabinos na diáspora judaica. As discussões enunciavam sempre a manutenção do locus central de irradiação do imaginário rabínico – a sinagoga. Contra essa instituição e suas práticas congregacionais, versaram algumas das principais homilias do bispo de Antioquia João Crisóstomo que, em 387 d.C, relacionou a Sinagoga à condição pecaminosa de promiscuidade sexual, corrupção e lascívia, estigmas sempre recorrentes no imaginário anti-semita europeu:

Muitos, eu sei, respeitam os judeus e pensam que seu atual modo de vida é digno de louvor. É por isso que desejo por ao chão tal opinião mortal. Eu disse que a sinagoga não era melhor do que um teatro (...); Lupanar e teatro, a sinagoga é também antro de salteadores e covil de bestas. (...) Vivendo para o ventre, a boca sempre escancarada, os judeus não se conduzem melhor que os porcos e os bodes, na sua lúbrica grosseria e no excesso de sua glutoneria. Só sabem fazer uma coisa: empanturrar-se e embriagar-se. (...) Porém, sob inúmeras circunstâncias, os judeus dizem que eles, da mesma maneira, respeitam a Deus. Deus proiba-me de dizer isso, nenhum judeu adora a Deus ! Quem o afirmou? O filho de Deus o afirmou! Por ter dito: ‘Se vocês quisessem conhecer meu Pai, deveriam conhecer a mim. Mas vocês não conhecem nem a mim, nem a meu Pai.’ Poderia eu citar um testemunho mais verídico do que o Filho de Deus? (MIGNE,1857, V. 48 E 49)

Emmanuel Levinas encontrou diversas alusões ao ímpeto libertário judaico tão temido por eclesiásticos medievais como João Crisóstomo. O Talmud alerta que o poder rabínico, como quaisquer outras formas de poder (políticos ou não) criadas pelos homens, poderia ser questionado, enfrentado, ou mesmo negado pela própria comunidade.

Importante textos talmúdicos abordam, em parábolas, a questão das relações sociais de produção à luz de princípios éticos que deveriam ordenar uma espécie de “convivência conciliatória” entre trabalhadores e senhores, estando esses últimos obrigados a reconhecer os direitos e a insubmissão do outro à lógica do mesmo. Em audaciosas passagens, Rabinos aconselham suas comunidades a nutrirem ódio e cautela pelo poder em sua natureza, e não se aproximarem jamais das autoridades políticas, consideradas evasivas e indiferentes aos problemas reais da população. Nos tratados Avot, Shabat e Pessachim, encontramos ainda a obrigatoriedade de contestação às ordenações de governos que por ventura, obrigassem seus súditos a cometer atos ilícitos, criminosos.

Nesse sentido, o Talmud referenda simbolicamente a possibilidade de um descontentamento social sobre uma ordem política considerada maléfica. Abre-se a possibilidade, no judaísmo rabínico, da recusa dessa ordem, ou antes, a recusa do poder do homem sobre o homem. Para o Talmud, aí residiria a raiz de todo o mal. Caso caracterizadas como opressoras ou corruptas, as autoridades poderiam ser renegadas, contestadas, ou mesmo substituídas por outras mais benéficas para a comunidade. Para a lógica talmúdica, se um líder fosse autoritariamente imposto, sem considerar o consenso da coletividade, estaria fadado ao fracasso.

O historiador Yehuda Bauer, em artigo intitulado “Anti-Semitism as an European and World Problem” entende que a consciência crítica de liberdade religiosa e política defendida pelos judeus da diáspora com base na literatura rabínica foi alvo, por séculos, de reações de incompreensão e rechaço. Para Bauer, a cultura judaica medieval erigiu três pilares éticos de base democrática, incompatíveis com as lógicas de poderes teocráticos, fundamentalistas, ou totalitários. Seriam eles:1) todos os homens são livres; 2) todos os homens são iguais, e as mesmas leis devem servir a todos; 3) todos os homens têm direito de reivindicar poder e criticar o soberano.

Para a relação entre Talmud, revolução e liberdade, Levinas, na mesma ótica de Bauer, afirma que a literatura rabínica, entre parábolas e alegorias, mostra-se intransigente em relação ao ócio e à paralisia social, tanto para aqueles que não saberiam recusar uma ordem política, ou mesmo sequer “questionar o ordem do Rei”.

Nesse sentido, por diversas vezes na História, o Talmud, foi considerado como literatura anti-cristã e diabólica. Sua leitura foi proibida, seus leitores banidos, e suas edições queimadas em praça pública, por imperadores, papas, monarcas europeus (medievais e modernos) e governos totalitários contemporâneos.

Sobre os judeus e o Talmud afirma Napoleão Bonaparte:

Os judeus são um povo vilão, poltrão e cruel. São lagartas, gafanhotos que devastam os campos. (...) O mal provém principalmente dessa compilação indigesta chamada Talmud, onde se encontra, ao lado de suas verdadeiras tradições bíblicas, a moral mais corrompida, a partir do momento em que se trata de suas relações com os cristãos. (...) Não pretendo subtrair à maldição com que foi fulminada essa raça que parece ter sido a única a ser excetuada da redenção, mas gostaria de deixá-la sem condições para propagar o mal (...). o bem é feito lentamente, e uma massa de sangue viciado só melhora com o tempo. (...) Quando entre cada três casamentos, houver um entre judeu e francês, o sangue dos judeus deixará de ter um caráter particular (...). (POLIAKOV, 1974, p. 196)

Sobre a censura à produção intelectual judaica, mesmo que religiosa, a reflexão da historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro fornece alguns esclarecimentos:

a repressão às idéias e aos intelectuais integrou projetos políticos articulados em diferentes momentos da nossa história. (...) o intelectual ativo - aquele que escrevia e divulgava suas idéias ‘revolucionárias’ – sempre foi tratado pelas instituições vigilantes como um ‘herege’, um ‘homem maldito’, um ‘bandido’. Por ultrapassar os limites do permitido, foi repreendido, julgado e punido. Os livros apreendidos como ‘armas do crime’, transformaram-se em prova material da trama articulada contra o regime e que, segundo os homens do poder, poderiam desequilibrar a ordem imposta. (CARNEIRO, 2002, p. 20-21)

A título de conclusão parcial ao tema, entendemos que a violência, originária de sectarismos religiosos, seria o similar a um estado de ódio socialmente instituído e quase incontrolável. Para pensadores como o escritor e acadêmico argelino Mohammed Arkoun, quando a intolerância é substituída pelo ódio não haveria mais volta, exatamente porque os discursos passariam a adotar três critérios que, somados, seriam fatais para o diálogo entre os homens: violência, sagrado e verdade.

Esse tripé elaborado pelo sectarismo religioso, faz a intolerância assumir o poder de um mito, e como todo mito, adquire feições perenes e deixa as sociedades que a construíram marcadas para sempre. É um quadro desalentador para todos nós, porque corrobora a hipótese de ser o anti-semitismo, um fenômeno historicamente renitente. Fenômeno que parece adquirir sempre novas roupagens, parece supostamente justificar-se com “novas causas”, mas na realidade, reacende velhos estigmas profundamente arraigados ao imaginário social, sem perspectivas de extinção.


quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Morton Smith e os Carpocracianos...Mc. 14:51.52 " Certo jovem o seguia...mas ele largando o lençol fugiu nu.


EVANGELHO SECRETO DE MARCOS

O secretismo de Marcos foi sempre considerado uma das características marcantes do estilo do seu evangelho. As razões deste secretismo tiveram tanto a ver com a estratégia messiânica de Jesus, por razões que outros evangelhos sugerem, como também por características pessoais de João Marcos que só uma abordagem psicanalítica poderia entender inteiramente. O fato e que a sua qualidade de jovem rico e sempre virgem, levita, presumível sumo-sacerdote destituído por falta de idade, e discípulo amado de Jesus o terão obrigado a ser assim, tímido, reservado e adepto do secretismo iniciático.

A carta de Clemente de Alexandria a Teodora. Tradução a partir da de Morton Smith:

Das cartas do mais santo Clemente, o autor do Stromateis, para Teodoro. Fizeste bem em silenciar os ensinos inqualificáveis dos Carpocracianos, pois estes são as "estrelas cadentes" referidas na profecia, que vagueiam da estrada estreita dos mandamentos para um abismo ilimitado de pecados completamente carnais. Pois, orgulhando-se eles de conhecimento, como eles dizem, "das coisas profundas de Satanás" não sabem que eles estão a lançar-se em "um mundo inferior da escuridão" de falsidade, e, ostentando que eles são livres, eles se tornaram os escravos de desejos servis. Tais homens devem ser postos completamente de parte e de todos os modos. Pois, até mesmo se eles disserem algo verdadeiro, quem ama a verdade não deve, mesmo assim, concordar com eles. Pois nem todas as coisas verdadeiras são a Verdade, nem a verdade que somente parece verdadeira, de acordo com opiniões humanas, deve ser preferida à verdadeira Verdade, de acordo com a fé.

Agora das coisas que eles têm dito acerca do divinamente inspirado Evangelho de acordo com Marcos, algumas são completas falsificações, e outras, mesmo se contiverem alguns elementos verdadeiros, ainda assim não devem ser verdadeiramente consideradas. Porque as verdadeiras coisas que estão misturadas com invenções estão falsificadas, de forma que, enquanto vão sendo ditas, até mesmo o sal perde o seu sabor.

Marcos, então, durante a estadia de Pedro em Roma escreveu um relato das ações do Senhor, porém, não as declarando todas, nem tão pouco indicando as secretas, mas seleccionando o que ele pensou mais útil para aumentar a fé dos que estavam para ser instruídos. Porém, quando Pedro morreu mártir, Marcos veio para Alexandria, trazendo tanto as próprias notas quanto as de Pedro, das quais ele transferiu para o seu primeiro livro as coisas mais satisfatórias para tudo o que pudesse trazer progresso ao conhecimento. Assim ele compôs um Evangelho mais espiritual para o uso desses que estavam sendo instruídos. Não obstante, ele não divulgou ainda as coisas que não eram para ser proferidas, nem subscreveu os ensinamentos hierofânticos do Senhor, mas, às histórias já escritas ele somou ainda outras e, além disso, trouxe certas declarações das quais conheceria a interpretação que, como um mestre de mistérios, conduzia os ouvintes até ao santuário mais íntimo da verdade escondida por detrás de sete véus.

Assim, em suma, ele preparou estes assuntos, não de forma presunçosa nem descuidada, em minha opinião, e, depois de morto, ele deixou a sua composição à igreja de Alexandria onde é ainda mais cuidadosamente guardada, sendo lida apenas pelos que estão a ser iniciados nos grandes mistérios.

Mas como os demônios sujos estão sempre a inventar a destruição da raça humana, os Carpocratas, instruídos por eles e usando artes enganosas, seduziram um certo presbítero da igreja de Alexandria para que ele obtivesse uma cópia do Evangelho secreto que eles interpretaram de acordo com a sua doutrina blasfema e carnal, e, além disso, o poluíram, misturando com as palavras imaculadas e santas mentiras completamente vergonhosas. Desta mistura foi despejado o ensino dos Carpocracianos.

Então, como eu disse acima, uma pessoa nunca lhes deve dar crédito; nem, quando eles avançaram com as suas falsificações, nem se deverá conceder que o Evangelho secreto é de Marcos, mas antes se deverá negar isto até mesmo em juramento. Pois, "Nem todas as verdadeiras coisas serão ditas a todos os homens". Por isto a Sabedoria de Deus, desde Salomão, aconselha, "Responde ao louco com a linguagem da sua loucura", ensinando que a luz da verdade deverá ser escondida dos que são mentalmente cegos. Novamente está dito, "Dele que não terá que ser deitado fora" e, "Deixemos o tolo andar na escuridão". Mas nós somos "as crianças de luz", tendo sido iluminados pela "fonte dos dias" do espírito do Senhor "do alto" e "Onde o Espírito do Deus está", se diz, "há ali liberdade", porque "Todas as coisas são puras para o puro".

A ti, então, eu não hesitarei em responder às perguntas que tu formulaste, enquanto refutando as falsificações pelas mesmas palavras do Evangelho. Por exemplo, depois de, "Eles estavam na estrada que sobe para Jerusalém," e o que se segue, até " Ele ressuscitará depois que três dias," o Evangelho secreto traz o seguinte material, palavra por palavra:

(Marcos 10: 32 Eles estavam a caminho de Jerusalém, e Jesus ia adiante deles, e os discípulos estavam surpresos enquanto os que o seguiam estavam atemorizados. Novamente ele levou os Doze aparte e lhes contou o que lhe ia acontecer. 33 "Nós estamos subindo para Jerusalém," disse ele "e o Filho de Homem será entregue aos sumo-sacerdotes e professores da lei. Eles o condenarão à morte e o entregarão aos Gentios 34 que o escarnecerão e cuspirão nele, o açoitarão e o hão-de matar. Três dias depois ele ressuscitará".)

E eles foram para Betânia onde estava uma mulher cujo irmão tinha morrido. E, aproximando-se, ela se prostrou diante de Jesus e lhe disse: "Filho de David, tem clemência de mim". Mas os discípulos afastaram-na.

Irritando-se, Jesus foi com ela para o jardim onde estava o túmulo. E imediatamente um grande som saiu do túmulo, e Jesus, enquanto ia ao seu encontro, rodou a pedra de fora da entrada do túmulo. E entrando imediatamente onde o jovem estava, ele esticou uma mão e o levantou, enquanto lhe segurava a mão. Então, o homem olhou para ele e o amou e ele começou a chama-lo para junto de si, porque ele queria estar com ele. E saindo do túmulo, eles foram para a casa do jovem, porque ele era rico. E depois de seis dias, Jesus o instruiu. E pela tarde, o jovem foi ter com Ele. Ele tinha posto uma faixa de linho fino em volta do seu corpo nu, (que retirou?) e, por aquela noite, ele permaneceu com ele (de homem nu para homem nu). Pois Jesus lhe ensinou o mistério do reino de Deus. Depois que ele saiu de lá, ele voltou à região do Jordão.

Depois destas palavras vem o texto seguinte: "E, aproximaram-se dele Tiago e João” e toda esta secção. Mas "homem nu para homem nu," e outras coisas sobre que escreveste não se encontraram ali. 35 E aproximaram-se dele Tiago e João, filhos de Zebedeu, dizendo: Mestre, queremos que nos faças o que pedirmos. 36 E ele lhes disse: Que quereis que vos faça? 37 E eles lhe disseram: Concede-nos que, na tua glória, nos assentemos, um à tua direita, e outro à tua esquerda. 38 Mas Jesus lhes disse: Não sabeis o que pedis; podeis vós beber o cálice que eu bebo e ser baptizados com o baptismo com que eu sou baptizado? 39 E eles lhe disseram: Podemos. Jesus, porém, disse-lhes: Em verdade vós bebereis o cálice que eu beber e sereis baptizados com o baptismo com que eu sou baptizado, 40 mas o assentar-se à minha direita ou à minha esquerda não me pertence a mim concedê-lo, mas isso é para aqueles a quem está reservado. 41 E os dez, tendo ouvido isso, começaram a indignar-se contra Tiago e João. 42 Mas Jesus, chamando-os a si, disse-lhes: Sabeis que os que julgam ser príncipes das gentes delas se assenhoreiam, e os seus grandes usam de autoridade sobre elas; 43 mas entre vós não será assim; antes, qualquer que, entre vós, quiser ser grande será vosso serviçal. {ou criado} 44 E qualquer que, dentre vós, quiser ser o primeiro será servo {ou escravo} de todos. 45 Porque o Filho do Homem também não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos. 46 Depois foram para Jericó.

E depois das palavras "De seguida, foram para Jericó" o evangelho secreto adianta apenas: E a irmã do jovem a quem Jesus amou estava lá, como também a mãe dele e Salomé. Mas Jesus não lhes deu as boas-vindas.

Mas, as muitas outras coisas sobre as quais escreveste ambos parecem ser e são falsificações. Assim, é esta a verdadeira explicação e a que mais concorda com a verdadeira filosofia...

[Aqui o texto para abruptamente a meio da página]

Claro que, nos tempos permissivos e libertários em que vivemos, não são as fantasia eróticas que podem exalar desta passagem o que mais pode por em causa as hierarquias das igrejas. A pedofilia persegue as Igrejas desde a sua fundação apenas na medida em que esta é apenas mais uma das heranças tão indesejadas quanto irrecusáveis da antiga tradição clássica senão mesmo um passo incontornável do amadurecimento da humanidade. Dito de outro modo teria sido impossível acender ao amor platônico do professor pelo discípulo, por projeção de transferência do amor familiar, sem ter incorrido na tentação dum amor físico entre idades diferentes construído à sombra paternalista da ausência da mulher, num contexto de paralelismo entre a fragilidade da idade e, a do eterno feminino, instituída como essencial!

A referida carta de Clemente de Alexandria poderá ser uma falsificação ainda mais fascinantes do que o "testamento de Constantino", mas a verdade é que, por se tratar do "Evangelho secreto de Marcos", a plausibilidade deste episódio torna-se de tal modo patente que só um falsário que estivesse, de forma explícita, a par da tese da identificação de Marcos com Lázaro poderia ter tido a ousadia de ter inventado todo este episódio tão estranho quanto misterioso.

Porém, uma mentira piedosa indemonstrável é tão fidedigna como qualquer um dos livros canônicos autenticados pela inspiração divina depois de sujeitos à censura prévia do martelo revisionista da comissão corretora de padres conciliares encarregados pelo imperador Constantino o Grande de apresentarem em Nicéia uma versão ortodoxa das escrituras cristãs retificada de toda a heterodoxia e sem mancha de gnosticismo herético.

De fato, Constantino que esperava utilizar o cristianismo para unir um império em decadência começava a ficar desanimado com o espetáculo de fragilidade doutrinária do cristianismo, à época dividida pela heresia ariana. A decadência política sustentada por uma vasta burocracia de rapina e defendida por um exército dividido por insucessos militares repetidos contra os godos e os partos, expressos na "tetrarquia” que retalhava o império em vários centros de poder, derivava duma longa recessão econômica larvar que decorria da profunda crise econômica dos latifúndios. Estes, até então sustentados por um regime de escravatura impiedoso, alimentados pela expansão inicial do império, começavam a dar sinais de improdutividade.

Precisamente à medida que abrandavam os sucessos militares nas fronteiras diminuía a fonte fresca de escravatura enérgica que até então tinha sido fundamentalmente a que resultava de prisioneiros de guerra. Entretanto generalizava-se a pax romana e melhoravam as condições de trabalho dos antigos escravos e se alterava, por natural humanização dos costumes, o estatuto dos escravos nascidos nos latifúndios.

A escravatura resultante do próprio crescimento reprodutivo da classe de escravos tendia a tornar-se envelhecida enquanto os filhos dos escravos aprendiam depressa as manhas da vida que lhe permitiam amaciar o jugo, alcançar a alforria migrando para as cidades e a corromperem os capatazes conseguindo trabalhar com menos afinco e com muito menos produtividade. No oriente a crise dos latifúndios daria origem ao inicio duma espécie de reforma agrária natural que começava pelo arrendamento de terras a servos livres dedicando-se o excedente de mão-de-obra ao artesanato e o comércio num sistema econômico relativamente equilibrado que iria fazer a fortuna, primeiro do império bizantino e depois do império árabe, onde a estes fatores se iria juntar uma certa estabilização da natalidade resultante do regime de poligamia por compra de esposa que, longe de aumentar a natalidade por família tendia a diminuir o número de filhos por mulher deixando muitos homens solteiros por falta de capacidade econômica.

No ocidente, a crise do latifúndio viria também a ser superada pelo recurso aos servos da gleba, mas sem o sucesso que este obteve a oriente na medida em que não foi complementado pelo crescimento das classes urbanas sendo uma das razões do feudalismo que se prolongou a acidente até ao surgimento das repúblicas italianas, verdadeiras cidades estados do começo do renascimento.

Em conclusão, a aparente unicidade canónica do cristianismo moderno é artificialidade pura resultante de Eusébio de Cesareia, o autor da história eclesiástica a quem Jacob Burckhardt chama "o primeiro historiador dos tempos antigos totalmente desonesto e injusto". Porém, esta imagem de marca da intolerância censória da ortodoxia e do catolicismo, servida mais tarde pelo tribunal do santo ofício e pela execrável inquisição, será por todo o sempre até aos tempos atuais o paradigma das polícias secretas de todos os totalitarismos e hegemonias políticas e ideológicas a que apenas o liberalismo, iniciado com a independência americana, iria por fim. No oriente islâmico o fanatismo e o fundamentalismo religioso surgirão também no rescaldo da crise econômica dos impérios islâmicos posteriores às descobertas marítimas dos povos ibéricos nos sec. XV e XVI.

A verdade é que o episódio da iniciação secreta de Lazaro / João Marcos (que deveria fazer parte do Evangelho original de Marcos porque dum mistério iniciático se tratava e, como tal só poderia fazer parte dum Evangelho secreto como parece ter sido o caso!) é menos explícito do que outras fontes gnósticas já conhecidas como é ocaso do Apocalipse de Jaime.

Porque como tu foste o primeiro a vestir-te também será o primeiro a despir-te e voltarás a ser como eras antes de te despires!

E ele me beijou na boca e me abraçou dizendo: -- Meu querido! Aqui te vou a revelar o que nem os céus sabiam nem os arcontes.

Aqui te vou revelar quilo que não conheceste, ou seja, aquele que se (projetou) noutro fora de mim. Não estou vivo? Visto ser um pai (não tenho) poder sobre todas as coisas? É aqui que te vou a revelar todas as coisas, meu querido! Conhece e compreende tudo para que saias tal como eu! É aqui que eu te revelarei o que está oculto. Pois, agora estende a mão e agora abraça-me! Imediatamente estendi as mãos e não o encontrei como eu o havia imaginado! Então eu o conheci e senti medo! E (logo) me alegrei com um enorme prazer! -- SEGUNDO APOCALIPSIS DE TIAGO, tradução do original de Jürgen Denker.

Assim, não é de estranhar a forma desastrada e inquisitória como as autoridades oficiais reagiram à descoberta deste manuscrito, mesmo depois de dois séculos de reincidência contumazes no fanatismo dogmático, na arrogância da infalibilidade papal, e na prepotência doutrinaria dum conservadorismo religioso contrário à própria mensagem essencial do cristianismo de amor à verdade, humildade espiritual, caridade e perdão. Tais atitudes intelectuais só reforçam as probabilidades de estarmos perante uma de entre outras provas de que os textos fundadores do cristianismo foram, enquanto isso foi técnica e epistemologicamente possível, sendo reformulados de modo a consegui manipular a história do cristianismo de acordo com os dogmas fundamentais das Igrejas. Para alguns pensadores de sublime ironia tais espetáculos retóricos degradantes só reforçam a beleza e magnitude da força da mensagem cristã essencial que, apesar de ter andado a ser desacreditada pelas hierarquias do poder clerical, tem conseguido resistir mantendo-se ainda hoje como um exemplo de radicalidade ética difícil de contornar, porque o que é nela perene não é letra, mas o espírito da "lei da procura da verdade da vida"!

Verdadeiramente, os inquisidores modernos mais não fazem do que manterem-se autênticos na sua fé cega no valor material dos mesmos princípios denegatórios das verdades incômodas, por sinal os mesmos referidos no texto do bispo Clemente de Alexandria.

Seguramente que esta filosofia de prudência institucional já existia antes dos cristãos justificar o secretismo dos mistérios gregos de que pouco ou nada sabemos, a não ser precisamente pelo que resultou das indiscrições dos primeiros apologetas cristãos.

O que verdadeiramente deixou estes saudosistas dos tempos da inquisição furiosos foi o serem confrontados com a exumação de cadáveres, que se supunham enterrados na cave das velharias medievais, da política da hierarquia religiosa que foi, pelo menos desde as primeiras cismas gnósticas, quase sempre maquiavélica e intelectualmente hipócrita em nome duma interpretação excessivamente liberal do princípio sensato de que nem toda a verdade seria para revelar a todos; para evitar o pecado de escandalizar as criancinhas, segundo o próprio Cristo (Mat 18, 6-12; Mar 10, 14-16); e os cristão mais fracos de espíritos, segundo S. Paulo, a propósito do consumo por cristãos de carnes imoladas aos ídolos (1 Cor, 8, 13). Enfim, a sensatez como pretexto para a insanidade mental das atitudes fanáticas sensoriais que revelam a intemperança cultural dos que usam o poder da razão apenas para aceder às mordomias decorrentes do exercício da autoridade doutrinária.

Por outro lado, os paradoxos da ressurreição iniciática teriam que acarretar algumas conseqüências quanto mais não fosse provocando equívocos semânticos e confusões a nível das crenças do senso-comum. Segundo o evangelho de Filipe, quem for ressuscitado pode alcançar morrer em paz e, libertar-se finalmente do Limbo onde pairam as "almas penadas", ou, segundo a mitologia oriental, do ciclo eterno e infernal das reencarnações.

Os que dizem que o Senhor morreu primeiro e (então) se levantou estão enganados, pois ele primeiro se levantou e (depois) morreu. Se alguém não alcança primeiro a ressurreição ele não morrerá. Assim como Deus vive, ele iria (..) - Evangelho de Filipe.

No entanto, a metafísica da ideologia gnóstica de Filipe deveria ser minoritária e contrária ao senso-comum, razão pela qual ela fazia parte de ritos secretos de iniciação. Dito de outro modo, a estranha metafísica de Filipe indicia que as crenças do senso-comum seriam precisamente aquelas que levariam a pensar que, como só se pode morrer uma vez, alguém que já foi ressuscitado não pode voltar a morrer tornando-se então num semideus ou num fantasmagórico morto vivo! Como Lázaro tinha sido ressuscitado há bem pouco tempo então os discípulos inferiam, pelo bom-senso das palavras de Jesus, habitualmente sibilinas, que este não morreria.

“Por isso vos disse noutro tempo: "Onde eu estiver, lá estarão também os meus dose discípulos", mas Maria Madalena e João o Virgem sobressairão sobre todos os meus discípulos e sobre todos os homens que receberem os mistérios do Inefável. E eles estarão a minha direita e à minha esquerda. E eu sou eles e eles serão eu! E eles serão como vós em todas as coisas excepto que vossos tronos sobressairão sobre os deles e o meu trono sobressairá sobre os vossos." Pistis Sophia, p193, cap. 96.

Evangelho De Bartolomeu: Terminada a oração, disse: - Sentemo-nos no chão e vem tu, Pedro, que és o chefe. Senta-te à minha direita e apoia com tua esquerda meu braço. Tu, André faz o mesmo do lado esquerdo. Tu, João, que és virgem, segura o meu peito. E tu, Bartolomeu, põe-te de joelhos atrás de mim e apoia as minhas costas para que, ao começar a falar, meus ossos não se desarticulem.

Notar que o Livro copta de Pitis Sofia, não tem nada do estilo helenista, metafísico e filosófico de Valentino (G.R.S. Mead) e tem todo o estilo dum texto tipicamente copta e alexandrino, uma mistura de cabala judia e hermetismo egípcio com todas as típicas especulações teológicas essênias. Por outro lado, para quem costuma encontrar nos textos coptas uma sistemática confusão dos nomes bíblicos encontra-se neste texto um tal clareza na identificação dos nomes dos discípulos regulares de Jesus que podemos inferir claramente neste texto que João, o Virgem, sempre colocado perto de Maria Madalena é perfeitamente distinto do outro João, tratado ao mesmo nível dos restantes dose apóstolos. Quer dizer que, se o Gnosticismo não tivesse sido eliminado pela "caça às bruxas" de Ireneu e seguintes, nunca se teria dado a confusão de identidade entre João o virgem, e João Boanerges.

O texto copta do Evangelho de Bartolomeu está cheio de anacronismos mas neles trespassa uma ingenuidade bastante para que seja impossível não aceitar neles um o fundo de verdade conservada por uma tênue ligação a uma tradição original e genuína. O seu estranho conteúdo reporta-nos para um evangelho de mistérios iniciáticos recomposto ao gosto iconográfico bizantino a que foram adicionados pastiches anacrônicos como o da referência à chefia de Pedro que há época não existia ainda.

No entanto o fundo verídico da cena reporta-nos para um realismo trágico dum Jesus ressurreto ainda combalido pelos rigores da paixão e da cruz. Por outro lado, o contraponto com a Pistis Sofia e o Evangelho de Evangelho de Bartolomeu permite-nos confirmar que este João Virgem era o "discípulo amado" que a tradição errônea e precipitadamente confundiu com João Zebedeu por não ter conseguido entender a verdade estranha de João Marcos poder ter a autoria de dois evangelhos canônicos tendo sido também co-autor do 4º evangelho.

A verdade é que o texto do "Evangelho secreto de Marcos" vem na continuação de outros indícios que apontavam já no mesmo sentido dum fenômeno da pederastia iniciática que segundo Bernad Sergent no seu livro "Homossexualité e iniciation chez lés peuples indo-européens" foi comum a todas as sociedades iniciáticas antigas e arcaicas.

Os ritos iniciáticos para os neófitos que queriam entrar no Reino de Deus correspondiam a uma forma de castração mística menos cruenta do que nos ritos de Cibel mas possivelmente mais eficaz por via da transferência psicanalítica e duma forma de homossexualidade platônica que fazia dos essênios seres angelicais vestidos de linho branco condenados a ter que adotar órfãos ou crianças abandonadas por terem renunciado ao casamento! E é então que a homossexualidade atravessa os bastidores da cena da última ceia travestida de crime nefando suficientemente assustador para os cristãos ao ponto de nem verem o óbvio: que o celibato católico deve ser encarado como uma forma de homossexualidade platônica herdada dos cultos de Cibel e do xamanismo arcaico! Mas a verdade é que o voto de castidade católico previsto nos evangelhos é uma manifestação explícita da sua relação com os sacerdotes eunucos dos cultos iniciáticos de Cibel.

Marcos 10: 10 E em casa tornaram os discípulos a interrogá-lo acerca disso mesmo. 11 E ele lhes disse: Qualquer que deixar a sua mulher e casar com outra adultera contra ela. 12 E, se a mulher deixar a seu marido e casar com outro, adultera. (Obviamente que, como nem todos podem receber esta palavra, mas só aqueles a quem foi concedido, Marcos foi um dos não pode receber o mistério dos eunucos que se castram a si mesmos" porque ainda não tinha sido iniciado e por isso Jesus terá evitado dizer isto de forma que Marcos ouvisse! Pelo contrário, Marcos ficou encantado por o reino de Deus ser recebido como uma criança que se toma nos braços porque ele era ainda uma criança, ou quase porque era um adolescente ainda não iniciado! 13 E traziam-lhe crianças para que lhes tocasse, mas os discípulos repreendiam aos que lhas traziam. 14 Jesus, porém, vendo isso, indignou-se e disse-lhes: Deixai vir a mim os pequeninos e não os impeçais, porque dos tais é o Reino de Deus. 15 Em verdade vos digo que qualquer que não receber o Reino de Deus como uma criança de maneira nenhuma entrará nele. 16 E, tomando-as nos seus braços e impondo-lhes as mãos, as abençoou. 17 E, pondo-se a caminho, correu para ele um homem, o qual se ajoelhou diante dele e lhe perguntou: Bom Mestre, que farei para herdar a vida eterna? Mateus, 19: 9 Eu vos digo, porém, que qualquer que repudiar sua mulher, não sendo por causa de prostituição, e casar com outra, comete adultério; e o que casar com a repudiada também comete adultério. 10 Disseram-lhe seus discípulos: Se assim é a condição do homem relativamente à mulher, não convém casar. 11 Ele, porém, lhes disse: Nem todos podem receber esta palavra, mas só aqueles a quem foi concedido. 12 Porque há eunucos que assim nasceram do ventre da mãe; e há eunucos que foram castrados pelos homens; e há eunucos que se castraram a si mesmos por causa do Reino dos céus. Quem pode receber isso, que o receba. 13 Trouxeram-lhe, então, algumas crianças, para que lhes impusesse as mãos e orasse; mas os discípulos os repreendiam. 14 Jesus, porém, disse: Deixai vir a mim os pequeninos e não os estorveis de, porque deles é o Reino dos céus. 15 E, tendo-lhes imposto as mãos, partiu dali. 16 E eis que, aproximando-se dele um jovem, disse-lhe: Bom Mestre, que bem farei, para conseguir a vida eterna?

Esta opinião de Jesus a respeito das causas para a existência de homens solteiros é apenas referido por Mateus. É referida dum modo tal que se suspeita que Cristo não faça parte dos eunucos sagrados por ser já casado com Maria Madalena.

A piedade cristã, posterior ao puritanismo estóico do baixo-império, pretende ver neta passagem uma fundamentação canônica para a consagração da virgindade e da castidade como virtude moral de referência e para a instituição do celibato católico como caso um particular desta. Em rigor, porém, Jesus apenas tentava explicar aos seus discípulos a razão de ser da tradição arcaica xamânica pela qual existiam homens santos, como os essênios, que não só se abstinham de relações com mulheres como chegavam mesmo a agir literalmente como eunucos ou quase mulheres, vestindo de branco e carregando das fontes bilhas de água à cabeças (Mar 14, 13).

Não terá sido por mero acaso que toda esta secreta revelação a respeito dos castrados sagrados, carregada de homossexualidade platônica, antecede a sagrada paixão à primeira vista entre Jesus e o "jovem rico" João Marcos que viria a ser, depois de rebaixado num rito de passagem iniciático individual ao papel dum Lázaro despojado da vida e de todos os bens terrenos antes de ser misticamente ressuscitado como "discípulo amado"!


terça-feira, 1 de novembro de 2011

A Bíblia e O sacrifício humano


O sacrifício humano é um tema mórbido e assustador para o homem moderno, posto que de difícil compreensão. Analisarei o pensamento dos povos antigos ao conceber a imolação de um ser humano num ritual religioso. Farei uma comparação entre Israel e Grécia. Analisarei o caso do sacrifício dos sete filhos do rei Saul, próximo ao final do reinado de seu sucessor, o rei Davi, em paralelo com os ritos catárticos gregos, especialmente o do mago Epimênides. Buscando, pelo método da história comparada, conceitos que ajudem a responder o difícil caso israelita: O único sacrifício humano recebido por YAWEH no Antigo Testamento. Analisando os conceitos gregos de míasma e fármakon, os quais serão úteis para entender este obscuro caso. Será interessante notar como tanto em Israel, como na Grécia, o sacrifício humano se inscreve numa tradição legal. Assim, estarei tratando de dois casos de sacrifício humano que seguem as leis antigas e não de casos marginais ou ilegais de sacrifício humano.

Os objetivos serão: 1) Estudar um pouco da extensa teoria geral do sacrifício, que seja útil ao nosso tema; 2) Compreender o sacrifício dos sete filhos de Saul de acordo com uma interpretação lógico-sistemática da Bíblia Sagrada; 3) Comparar o sacrifício humano em Israel e na Grécia; 4) Analisar os conceitos de míasma e fármakon, esboçando comparações; 5) Importar conceitos gregos de sacrifício para Israel, a fim de entender o pensamento dos antigos a respeito de sacrifício humano.

Embora a História envolva sempre um retorno ao passado como conseqüência lógica deste estudo, o tema tem relevância atual. Ouvimos falar de sacrifícios humanos em ritos satanistas, especialmente na África do Sul, a qual possui uma delegacia especializada para resolver tais assuntos. Tem-se conhecimento também de casos de auto-imolação no Islamismo com os homens bomba, conforme amplamente divulgado na mídia. Assim, justifica-se o tema pela sua relevância para compreensão de fenômenos atuais.

O problema que se levanta só pode ser entendido a partir do texto base, o qual passo a citar: 1- E houve, em dias de Davi, uma fome de três anos, de ano em ano; e Davi consultou ao Senhor, e o Senhor lhe disse: É por causa de Saul e da sua casa sanguinária, porque matou os gibeonitas. 2- Então, chamou o rei dos gibeonitas e lhes falou (ora os gibeonitas não eram dos filhos de Israel, mas do resto dos amorreus, e os filhos de Israel lhes tinham jurado, porém Saul procurou feri-los no seu zelo pelos filhos de Israel e de Judá). 3- Disse, pois, Davi aos gibeonitas: Que quereis que eu vos faça? E que satisfação vos darei, para que abençoeis a herança do Senhor? 4- Então, os gibeonitas lhe disseram: Não é por prata nem ouro que temos questão com Saul e com sua casa; nem tampouco pretendemos matar pessoa alguma em Israel. E disse ele: Que é, pois, que quereis que vos faça? 5- E disseram ao rei: Quanto ao homem que nos destruiu e procurou que fôssemos assolados, sem que pudéssemos subsistir em termo algum de Israel, 6- de seus filhos se nos dêem sete homens, para que os enforquemos ao Senhor, em Gibeá de Saul, o eleito do Senhor. E disse o rei: Eu os darei. 7- Porém o rei poupou a Mefibosete, filho de Jônatas, filho de Saul, por causa do juramento do Senhor, que entre eles houvera, entre Davi e Jônatas, filho de Saul. 8- Porém tomou o rei os dois filhos de Rispa, filha de Aiá, que tinha sido de Saul, a saber, a Armoni e a Mefibosete, como também os cinco filhos da irmã de Mical, filha de Saul, que tivera de Adriel, filho de Barzilai, meolatita. 9- E os entregou na mão dos gibeonitas, os quais os enforcaram no monte, perante o Senhor; e caíram estes sete juntamente; e foram mortos nos dias da sega, nos primeiros dias, no princípio da sega das cevadas. 10- Então, Rispa, filha de Aiá, tomou um pano de cilício, e estendeu-lho sobre uma penha, desde o princípio da sega, até que destilou a água sobre eles do céu, e não deixou que as aves do céu se aproximassem deles de dia, nem os animais do campo de noite. 11- E foi dito a Davi o que fizera Rispa, filha de Aiá, concubina de Saul. 12- Então, foi Davi e tomou os ossos de Saul, e os ossos de Jônatas, seu filho, dos moradores de Jabes-Gileade, os quais os furtaram da rua de Bete-Seã, onde os filisteus os tinham pendurado, quando os filisteus feriram a Saul em Gilboa. 13- E fez subir dali os ossos de Saul e os ossos de Jônatas, seu filho; e ajuntaram também os ossos dos enforcados. 14- Enterraram os ossos de Saul e de Jônatas, seu filho, na terra de Benjamim, em Zela, na sepultura de Quis, seu pai, e fizeram tudo o que o rei ordenara; e, depois disso, Deus se aplacou para com a terra. ”

Lanço aqui duas questões norteadoras para o trabalho, a fim de esclarecer o problema. Em primeiro lugar, deve-se questionar por que Deus aceitaria um sacrifício humano se na Sua Lei havia a proibição do sacrifício de crianças a Moloque: “E da tua semente não darás para a fazer passar pelo fogo perante Moloque; e não profanarás o nome de teu Deus. Eu sou o Senhor”.

Este era o terrível sacrifício de crianças imoladas nos braços aquecidos da estátua de bronze. Neles, a pele e as carnes das crianças se dissolviam no calor do metal, causando morte horrenda. Todo o culto a Moloque ou Moleque foi proscrito em Israel pelo seu caráter cruel. Tal deus também era conhecido como o “príncipe do vale das lágrimas”.

Além dessa primeira questão, devemos saber, em segundo lugar, por que o crime de Saul foi punido nos filhos, se havia na Lei o princípio jurídico da incontagibilidade da pena “Os pais não morrerão pelos filhos, nem os filhos, pelos pais, cada qual morrerá pelo seu pecado”.

Lembremos que a proibição de não sacrificar filhos estava inscrita na Lei Mosaica, localizada no capítulo concernente às uniões abomináveis, sendo parte do Direito de Família. Recordemo-nos de que o princípio jurídico da incontagibilidade da pena é próprio do Direito Penal. Temos de saber ainda, que os conceitos de crime e pecado só foram separados na Revolução Francesa. Neste período da História, devemos analisar a religião e o direito de forma conectada. Assim, o sacrifício humano passa a ser para nós um problema de direito e não somente de religião antiga.

Este é um texto realmente intrigante e profundo. Portanto, formulei quatro hipóteses ao trabalho, com as quais trabalharei: 1a) A passagem supracitada encontra-se em contradição com o restante do texto legal do Direito Mosaico; 2a) A passagem acima é uma exceção ao restante do Direito Mosaico; 3a) Esta é uma passagem bíblica onde houve um grave descumprimento da Lei ou; 4a) A passagem supramencionada não está em contradição com o restante do texto legal do Direito Mosaico, sendo parte da tradição normativa israelita, no momento em que se entende a natureza jurídica do sacrifício humano.

Se a primeira hipótese estiver correta, a conclusão é simples: O texto bíblico apresenta falhas de coerência lógico-sistemática. Se a segunda hipótese estiver correta, será necessário saber qual é a brecha legal que o texto mosaico possui, a fim de permitir um sacrifício tão violento. Se a terceira hipótese estiver correta, saberemos que a Lei foi descumprida ou pelo desespero da falta de chuvas, ou por simples vingança do rei Davi aos descendentes da antiga dinastia, aproveitando-se de evento calamitoso. Se a quarta hipótese estiver correta, deveremos compreender em que hipótese legal encaixar-se-ia um sacrifício humano na Lei Mosaica.

Meu embasamento teórico será a chamada Bíblia Sagrada e livros de historiadores que tratem da Grécia ou de Israel. O método será o histórico-comparativo como falei acima e o método dialético.

O tema é sobremodo profundo, porém como o espaço é pequeno, tecerei apenas breves comentários. Inicialmente cumpre dizer que Israel atravessava a maior seca até então registrada. Aproximadamente um século depois, haveria uma seca maior que esta no reinado de Acabe, a qual duraria três anos e meio (1 Rs 17:1; 1 Rs 18:1-2; Tg 5:17-18). Lembremos que muitos povos antigos sacrificaram seres humanos em épocas de crise, por conta do desespero.

A “consulta ao Senhor” feita para descobrir a causa do problema não fica clara no texto. No contexto israelita, poderia ser pelos sonhos, por Urim e Tumim ou por profetas (1 Sm 28:6). As consultas na Grécia eram feitas no oráculo de Delfos.

Por toda a Lei Mosaica havia penas de morte, as quais eram executadas, a fim de que a terra não fosse suja pela maldade; os cananeus foram vítimas de uma punição divina por causa de sua conduta, fazendo com que a terra os “vomitasse” como diz o texto bíblico (Lv 18:24-30). A terra pura atrairia chuvas e frutos (Lv 26:3-6). Na legislação grega, o homicídio deixou de ser uma questão de vingança privada, pelo medo da instalação do ciclo fatal de homicídios e vinganças, o qual destruiria a pólis. Tal crime era objeto de impureza para toda a comunidade e um ataque ao próprio grupo social. Por conseguinte, vemos o ordenamento jurídico grego tomando para si a responsabilidade e o dever de punir. Deste modo, a chamada “justiça mecânica” (popularmente conhecida como “justiça com as próprias mãos”) não seria realizada e a paz estaria assegurada. Havia também, no contexto helênico o pensamento que de tempos em tempos, deveria acontecer um sacrifício humano para limpar uma certa “sujeira espiritual”. Até o séc. V, a polis ateniense possuía um grupo de homens sustentados para tal fim.

É curioso notar como na Grécia havia todo um aparato estatal com vistas à purificação.

O conceito grego de “míasma” pode nos esclarecer este sacrifício humano em Israel. Na língua grega, míasma é uma mancha que provém do crime, indicando também para a própria pessoa criminosa ou um opróbrio. Esta mancha é algo metafísico que pode atrair a maldição dos deuses. Esta só poderia ser limpa por um sacrifício humano. O dionisismo, especialmente o orfismo, caracteriza-se pela instituição de processos purificatórios. Temos como exemplo grego, o mago Epimênides, o qual é convocado para expulsar o míasma de Atenas após o assassinato dos Cilonides. Sobre ele, nos fala Jean-Pierre Vernant: “Promotor de ritos catárticos, é também um adivinho inspirado cujo saber, diz-nos Aristóteles, descobre o passado, não o futuro: seu dom de dupla visão faz conhecer, com efeito, as falhas antigas; desvela os crimes ignorados cuja impureza engendra, nos indivíduos e nas cidades, um estado de perturbação e de enfermidade, o delírio frenético da mania, com seu cortejo de desordens, de violências e assassínios”.

As falhas antigas em Israel eram conhecidas pelo dom da palavra do conhecimento (1a Co 12:8). Fica então a pergunta: Será que o pensamento israelita via o crime como algo que poderia sujar a terra, tal qual o conceito grego de míasma? A resposta é sim. Por diversas passagens da Lei, há este pensamento sendo expresso. Desta forma, cito um desses textos como exemplo: “Com nenhuma destas coisas vos contaminareis, porque em todas estas coisas se contaminaram as gentes que eu lanço fora de diante da vossa face. Pelo que a terra está contaminada; e eu visitarei sobre ela a sua iniqüidade, e a terra vomitará os seus moradores. Porém vós guardareis os meus estatutos e os meus juízos, e nenhuma dessas abominações fareis nem o natural, nem o estrangeiro que peregrina entre vós; porque todas estas abominações fizeram os homens desta terra, que nela estavam antes de vós; e a terra foi contaminada. Para que a terra não vos vomite, havendo-a vós contaminado, como vomitou a gente que nela estava antes de vós. Porém qualquer que fizer dessas abominações, as almas que as fizerem serão extirpadas do seu povo. Portanto, guardareis o meu mandado, não fazendo nenhum dos estatutos abomináveis que se fizeram antes de vós, e não vos contamineis com eles. Eu sou o Senhor, vosso Deus”.

Assim, se as penas de morte em Israel forem entendidas como sacrifícios humanos para purificar a terra, como muitas vezes sugere o texto bíblico, respondemos uma das questões acima: As penas de morte eram sacrifícios humanos combinados na Lei Mosaica; esta era a sua natureza jurídica. Tanto no contexto grego como no israelita a ira de Deus ou dos deuses era aplacada com sangue. Portanto, não se trata de vingança dos gibeonitas, muito menos uma forma de ressarcir danos, mas a utilização do supremo sacrifício purificatório em épocas de crise.

Indubitavelmente devemos entender o pensamento dos israelitas quanto à importância de uma aliança, o que é de suma importância para o presente trabalho. Alianças assemelham-se a contratos, mas não são exatamente iguais. É provável que as alianças tivessem sido os precursores dos contratos atuais. Modernamente, podemos fazer contratos com pessoas físicas e/ou jurídicas e desfazê-los mediante uma rescisão contratual, ou mesmo através de Ação de Rescisão Contratual, quando buscamos a tutela jurisdicional do Estado. Será que uma aliança poderia ser desfeita com a mesma facilidade?

Para responder esta questão, devemos ter uma noção de teologia das alianças. Na Bíblia, Deus faz oito alianças com Seu povo, a saber: 1a) Aliança adâmica; 2a) Aliança noaica pré-diluviana; 3a) Aliança noaica pós-diluviana; 4a) Aliança abrâmica; 5a) Aliança mosaica; 6a) Aliança davídica; 7a) Aliança salomônica e; 8a) Aliança cristã. Da primeira à sétima, temos as sete alianças do Antigo Testamento, as quais são resumidas pelo Novo Testamento como a “Antiga Aliança”. A oitava aliança é a do Novo Testamento. De acordo com o pensamento judaico-cristão somente Deus poderia fazer uma aliança com os homens. Todas estas alianças foram seladas com sangue e toda quebra de alianças seladas com sangue no mundo antigo gerava mortes como punição.

Vemos exemplo disso no livro do profeta Jeremias, quando o povo quebra a chamada Antiga Aliança (Jr 31:31-32): “Porque assim diz o Senhor: Teu quebrantamento é mortal, e a tua chaga é dolorosa. Não há quem defenda a tua causa; para que possas ser curado, não tens remédios nem emplasto. Todos os teus amantes se esqueceram de ti e não perguntam por ti; porque te feri com ferida de inimigo e com castigo de cruel, pela grandeza de tua maldade e multidão de teus pecados. Por que gritas em razão do teu quebrantamento? Tua dor é mortal. Pela grandeza de tua maldade e pela multidão de teus pecados, eu fiz estas coisas”.

Os “amantes” são aqui vistos como outros deuses na dimensão religiosa, ou outras nações no nível político. A quebra da aliança consistia, neste caso, numa idolatria persistente e em alianças com outras nações, o que foi continuamente proibido na Lei Mosaica (Dt 20:1-20) e nos profetas (Is 30:1-8), pois alianças com outros povos indicavam para alianças com os deuses dessas nações. No entanto, os homens poderiam fazer alianças entre si, como parte do Direito Mosaico. O casamento é um bom exemplo de aliança entre os homens e o seu descumprimento gerava morte, como é o caso do adultério; onde haveria uma pena a ser suportada não só pela mulher adúltera, mas também pelo homem adúltero (Lv 20:10; Dt 22:22).

Não nos esqueçamos de que no passado Josué fez aliança com os Gibeonitas (Js 9:1-27). E, embora enganado pelo povo da terra de Canaã, com o qual estavam proibidos de fazer pacto, lembremos que o juramento não pôde ser descumprido, “porquanto os príncipes da congregação lhes juraram pelo Senhor, Deus de Israel...”(Js 9:18a). Como Deus é eterno, a aliança também seria. Assim, apesar das muitas reclamações advindas do clamor popular (Js 9:18b), os próprios líderes disseram: “Nós juramos-lhes pelo Senhor, Deus de Israel; pelo que não podemos tocar-lhes” (Js 9:19).

Interessante notar que a cidade de Gibeão foi, logo em seguida, sitiada por cinco reis cananeus de cidades confederadas que se sentiram traídos pelos gibeonitas; e o povo israelita foi obrigado a defendê-la, iniciando-se uma grande guerra (Js 10:1-43).

Se já vimos exemplos práticos de alianças, vejamos como estas eram constituídas no mundo antigo. Quando dois reis desejavam fazer uma aliança, eles cortavam animais ao meio e organizavam as metades dos animais frente a frente com sua respectiva metade cortada, de modo a formar um “caminho de sangue”.

Os reis passavam duas vezes pelo caminho de sangue, como que tacitamente declarando: “Eu serei fiel a ti nesta vida e depois dela”. Após isso, liam-se os termos da aliança, e, jurando, declaravam-se direitos e deveres. Uma maldição era imprecada para aquele que descumprisse os seus votos. Os dois selavam o acordo com um “corte da aliança”, no qual os representantes de ambos os povos cortavam os pulsos e os uniam, a fim de que o sangue dos aliançados se misturasse. Com tal corte haveria a lembrança do pacto de sangue por causa da cicatriz. Depois, faziam uma refeição a partir do sacrifício. Dali em diante, o nome dos aliançados seria misturado. Suas posses passariam a ser propriedade comum e deveriam ajudar o aliançado que passasse necessidade. Deveriam ser fiéis um ao outro e defender-se mutuamente em caso de guerra e até a morte se necessário. O inimigo de um tornar-se-ia inimigo do outro. A aliança de sangue era supostamente indissolúvel e só a morte poderia pôr fim aos votos. É importante notar que a expressão hebraica para fazer uma aliança (ou fazer um concerto) poderia ser literalmente traduzida por “cortar um concerto”. A idéia do sangue derramado é clara e patente aos nossos olhos.

A partir daqui, vemos que uma aliança (de sangue) havia sido quebrada por Saul. E, toda quebra de alianças seladas com sangue no mundo antigo gerava mortes como punição. Assim, estamos falando de uma pena de morte executada sobre um criminoso, a qual possuía o poder purificatório do sacrifício humano. Sobre este poder purificatório, é importante trazer um vocábulo da cultura grega, o fármakon. Fámakon significa veneno ou remédio e, embora pareça contraditório, a palavra possui os dois sentidos ao mesmo tempo.

A medicina já comprovou que a diferença entre o remédio e o veneno está apenas na quantidade. Desta maneira, sabemos que veneno de cobra em pequenas doses pode curar determinadas enfermidades, enquanto que grandes quantidades de remédio podem matar, se ministradas em excesso. Fármakon é a vítima sacrificial. Ele é o veneno que está matando a comunidade, mas também será o remédio que a curará, quando for sacrificado. Vemos aqui a proximidade da palavra míasma e fámakon, pois este significa veneno e aquele significa além de mancha, a própria pessoa criminosa. A pessoa culpada pela crise da comunidade traz novamente a paz para a mesma quando ritualmente sacrificada pelo farmakós (jarmaküs), o feiticeiro. Não é sem razão que a palavra feitiçaria (jarmakeßa - farmakéia) possui a mesma raiz de fármakon.

Cumpre agora resolver a segunda questão. Vale explicar que o termo “filhos” no hebraico também pode se referir aos netos, o que torna o trabalho interpretativo ainda mais difícil. Especialmente porque Davi poupa Mefibosete, neto de Saul, a fim de não quebrar um outro juramento (1 Sm 18:3-4; 20:8-43; 23:14-18), evitando incorrer em outra maldição. Isto demonstra a presença de netos de Saul no sacrifício implícita e explicitamente no texto. Saul é chamado de “eleito do Senhor”, enquanto na verdade é um eleito do povo e apenas ratificado pela divindade, como deixou claro o juíz-profeta Samuel, quando o povo pediu um rei para si (1 Sm 8:1-22): “E disse o Senhor a Samuel: Ouve a voz do povo em tudo quanto te disser, pois não te tem rejeitado a ti; antes, a mim me tem rejeitado, para eu não reinar sobre ele”.

Assim, vemos aqui o princípio da substituição sacrificial, de modo que toda a comunidade é substituída em sua culpa pela vítima sacrificial. Neste sentido vemos a substituição sacrificial no mito grego das bacantes, quando Penteu é sacrificado, mas é o substituto de toda uma comunidade culpada. Resta saber se ocorre neste caso uma dupla substituição sacrificial, ou seja, o pai sendo substituído pelos filhos, o que contrariaria a Lei Mosaica com seu princípio da incontagibilidade da pena (Dt 24:16). Na verdade, a resposta a esta questão é mais simples que a primeira, pois o próprio texto nos diz que a casa de Saul era “sanguinária”. Assim, estavam sendo punidos pelos seus próprios crimes. Vale lembrar que na Grécia o sacrifício humano não possuía exatamente a mesma natureza jurídica que em Israel. Entre os helenos, o sacrifício humano não era pena de morte, mas apenas ritual religioso. Desta forma, não se procurava o culpado, mas a substituição sacrificial operava diretamente. A natureza jurídica do rito sacrificial grego era apenas religiosa, no entanto, ainda ligada à esfera jurídica, pois ocorria em função dos crimes de sangue. Precisa-se questionar se não havia em Davi nenhum desejo de vingança sobre os seus inimigos, os descendentes de Saul. O rei parece tomar a mesma postura dos gibeonitas: Desejo de purificação. Isto é evidenciado pelo último ato de misericórdia do rei, a saber, o enterro dos cadáveres. Da mesma forma que Rispa, filha de Aiá, concubina de Saul; Davi promove o sepultamento dos imolados. Era motivo de grande vergonha ser devorado por animais após a morte, o que denotava a morte dos ímpios.

Na Grécia havia a mesma preocupação de enterro adequado, com o cumprimento dos ritos fúnebres, temendo os helenos o retorno do antepassado e um possível tormento espiritual. Mas a questão ainda não se resolve, pois a Lei Mosaica comina expressamente que os cadáveres dos sacrificados (condenados à pena de morte) deveriam ser enterrados com urgência.

Vejamos o texto da legal: “Quando também em alguém houver pecado, digno do juízo de morte, e haja de morrer, e o pendurares num madeiro, o seu cadáver não permanecerá no madeiro, mas certamente o enterrarás no mesmo dia, porquanto o pendurado é maldito de Deus; assim, não contaminarás a tua terra, que o Senhor, teu Deus, te dá em herança”.

Já que o ordenamento jurídico realmente estipulava que os cadáveres deveriam ser enterrados no mesmo dia, não podemos tomar isto por base para afirmar a inocência de Davi e o estrito cumprimento da Lei. No entanto, neste dia do enterro houve um detalhe que pode nos dar um esclarecimento: Ele enterrou os ossos de Jônatas e de seu pai, o rei Saul. O enterro de Jônatas já seria esperado, pois Davi e este eram aliados. Entretanto, o sepultamento de Saul não fazia parte das suas obrigações. Por conseguinte, concluímos que o rei não somente cumpriu as suas obrigações legais e contratuais da aliança com Jônatas, mas também teve um último ato de misericórdia com o seu inimigo, que tanto procurou a sua morte.

Lembremos que os filhos de Saul foram sacrificados “perante o Senhor; e caíram estes sete juntamente; e foram mortos nos dias da sega, nos primeiros dias, no princípio da sega das cevadas”.

Aqui está a conexão clara entre o sacrifício e as colheitas, evidenciando um suposto poder destes para gerar a prosperidade.

O mesmo pensamento está presente na cultura grega, onde o sangue era espalhado pelos campos, como se possuísse o poder de fertilizá-los. De acordo com o exposto, fica ainda uma última questão: Não poderiam os gibeonitas, ou mesmo Davi liberarem os filhos de Saul de tamanha violência através de um simples ato de perdão judicial ou anistia? A resposta é dada pela própria lei em Lv 17:11: “Porque a alma da carne está no sangue, pelo que vô-lo tenho dado sobre o altar, para fazer expiação pela vossa alma, porquanto é o sangue que fará expiação pela alma”.

A epístola aos Hebreus é ainda mais taxativa no capítulo 9, versículo 22: “E quase todas as coisas, segundo a lei, purificam-se com sangue; e sem derramamento de sangue não há remissão”.

Desta forma, vemos que a Lei exige sangue para ocorrer a expiação, ou seja, para que a ira da divindade seja desviada para a vítima sacrificial. No caso israelita, vemos que os sete criminosos foram enforcados, não havendo um explícito derramar de sangue, nem mesmo seu derramamento sobre as colheitas. Porém, o valor do sacrifício está no espasmo mortal.

Por mais derradeiro que possa expressar algumas conclusões. Em primeiro lugar, nota-se que a passagem supracitada não se encontra em contradição com o restante do texto legal do Direito Mosaico. Nem mesmo se pode cogitar que houve uma exceção ao restante do texto legal israelita. Pudemos claramente perceber que na passagem bíblica supracitada não houve nenhum grave descumprimento da Lei. Vemos ao contrário que a mesma foi cumprida integralmente, havendo ainda, um último ato de misericórdia de Davi para com Saul. Então podemos afirmar que a passagem supramencionada não está em contradição com o restante do texto legal do Direito Mosaico, sendo parte da tradição normativa israelita, no momento em que se entende a natureza jurídica do sacrifício humano como pena de morte.

Tais normas podem ainda soar como absurdas para o homem moderno, após tantos clamores pelos direitos humanos, a começar pelo Marquês de Beccaria em seu famoso livro “Dos delitos e das penas”, o qual revolucionou o Direito Penal. Também pode parecer estranho vermos conceitos jurídicos misturados com conceitos religiosos, especialmente depois do pensamento de Maquiavel, o qual concebeu a separação entre Igreja e Estado.

Entretanto, retornamos na linha do tempo para um período muito anterior ao nosso, quando o Direito e a religião se misturavam e toda abstração jurídica, tinha de surgir primeiro de uma abstração religiosa. Assim raciocinava o homem daquela época. Somente conseguiremos entender o pensamento antigo, quando nos despirmos de toda a nossa bagagem cultural, de todos os nossos esquemas de conhecimento. Não podemos negar os benefícios da humanização das penas no mundo moderno, mas tal raciocínio nos impede de entender o direito antigo e de pensar como se concebia a justiça no passado.

Após o enterro dos cadáveres vemos que “Deus se aplacou para com a terra”. Isto nos mostra claramente que o sacrifício foi recebido pela divindade. Se foi recebido pela divindade, a qual enviou chuvas, é porque foi realizado segundo suas prescrições e leis. Dura lex sed lex (15).