domingo, 24 de abril de 2011

Livros proféticos do Antigo Testamento

Os Livros Proféticos do Antigo Testamento subdividem em dois grupos na Bíblia cristã, o dos primeiros profetas (maiores) e o dos profetas menores.

Em graus diversos e sob formas variadas, as grandes religiões da antiguidade tiveram pessoas inspiradas que pretendiam falar em nome de seu deus. O sentido original da palavra profeta (nabî) em hebraico deriva de uma raiz que significa "Chamar, anunciar", portanto, o profeta seria aquele que é chamado ou que anuncia, um mensageiro e um intérprete da palavra divina, conforme se pode verificar em (Jr 1,9).

Pela sua coragem de questionar a situação presente e vislumbrar um futuro diferente para o seu povo, os profetas sempre exerceram atração fascinante. Muitos chegam até a confundir profeta com adivinhador do futuro. Outros chegam a pensar que eles ensinavam coisas absolutamente novas. O verdadeiro profeta, no entanto, é aquele que preserva a tradição autêntica do seu povo, perdida ou deformada em meio a tantas tradições criadas para defender interesses, legitimar poderes e sustentar sistemas.

O núcleo central da tradição autêntica é a lembrança da libertação contada no Livro do Êxodo, ou seja, o reencontro com o verdadeiro Deus revelado a Moisés: Eu sou Javé seu Deus, que fiz você sair da terra do Egito, da casa da escravidão (Ex 20,2; Dt 5,6). Portanto, profeta é aquele que se inspira na ação libertadora do Deus do Êxodo e, a partir daí, analisa a situação presente e mostra o projeto de Deus para o futuro do seu povo.

As atividades do profeta variam de acordo com seus ouvintes e com o momento histórico em que ele vive. Cada profeta tem o seu estilo próprio, e pronuncia anúncios e denúncias diante de situações bem determinadas. No entanto, podemos perceber duas grandes vertentes na atividade dos profetas:
● Exigência de conversão, para mudar o sistema social, a fim de que o julgamento de Deus não recaia sobre o povo. Esse tema é predominante nos profetas que exerceram sua atividade antes do exílio na Babilônia.
● Anúncio de esperança, para encorajar e estimular o povo, que tinha perdido sua terra e corria o perigo de perder a própria identidade. Esse anúncio fazia retomar a caminhada da reconstrução, recuperando a fé em Javé e os valores históricos alcançados em nome dessa mesma fé.

Os livros proféticos testemunham a vida e atividade de homens que possuem fé profunda e vigorosa; homens que procuram levar o povo a um relacionamento sempre renovado e responsável com o Deus que julga e salva.

A literatura profética pode ser dividida de várias maneiras. A mais tradicional e comum, entre os cristãos, é a divisão em profetas maiores e profetas menores. Não porque uns sejam mais importantes que outros, mas simplesmente pela extensão de seus escritos. Os profetas maiores são quatro: Isaías, Jeremias (que também teria escrito Lamentações), Ezequiel, Daniel.
Os menores são doze: Oséias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias, cabendo observar que o Livro de Baruc, que consta na Septuaginta e nas Bíblias adotadas pela Igreja Católica e pelas Igrejas Ortodoxas, próximo ao Livro de Jeremias, é Deuterocanônico, ou seja, não consta na Bíblia Hebraica e não é aceito pelas Igrejas que adotam a Bíblia proposta por Lutero.

Por sua vez, a Bíblia Hebraica agrupa os livros de Isaías, Jeremias, Ezequiel e os dos doze profetas sob o título de "Profetas Posteriores" e os coloca após os "Profetas Anteriores": (Josué, Juízes, I Samuel, II Samuel, I Reis, II Reis), enquanto que a Septuaginta (tradução do Antigo Testamento para o Grego Koiné, cuja a estrutura é utilizada por maior parte das Igrejas Cristãs) apresenta os livros proféticos depois dos Livros Históricos, destacando-se que a Bíblia Hebraica não incluí o Lamentações e Daniel entre os "Profetas Posteriores", mas entre os "Escritos" (Kethuvim) – (escritos).

NOTA: A consideração de um livro como apócrifo varia de acordo com a religião. Por exemplo, alguns livros considerados canônicos pelos católicos são considerados apócrifos pelos judeus e pelos evangélicos (protestantes). Alguns destes livros são os inclusos na Septuaginta por razões históricas ou religiosas. A terminologia teológica católica romana/ortodoxa para os mesmos é deuterocanônicos, isto é, os livros que foram reconhecidos como canônicos em um segundo momento (do grego, deutero significando "outro"). Destes fazem parte os livros de Tobias, Judite, I e II Macabeus, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico (também chamado Sirácide ou Ben Sirá), Baruc (ou Baruque) e também as adições em Ester e em Daniel - nomeadamente os episódios da História de Susana e de Bel e o dragão.

Cronologia dos Profetas de Israel

Profetas Narrativos: Elias (de 870 a 845) – reino do norte: Eliseu (de 850 a 800) – reino do norte

Profetas Pré-Exílicos (de 760 a 586)

Jonas ( 760 - provavelmente pós-exílico) – reino do norte

Amós (de 770 a 750) – reino do norte

Oséias (de 750 a 722) – reino do norte

Isaías (de 740 a 690) – reino do sul

Miquéias (de 740 a 685)- reino do sul

Sofonias (de 635 a 620) – reino do sul

Jeremias (de 626 a 586) – reino do sul

Habacuque (de 615 a 590) – reino do sul

Naum ( de 663 a 612 ) – reino do sul

Obadias (de 605 a 590) – reino do sul


Profetas Exílicos (586 a 538)

Ezequiel (de 593 a 571) – reino do sul

Daniel (século VI) – reino do sul


Profetas Pós-Exílicos (de 548 a 440)

Ageu (520) – reino do sul

Zacarias (de 520 a 518) – reino do sul

Malaquias ( de 450 a 400 ) – reino do sul

Joel ( ?) - reino do sul

1- Reino Dividido (933-587 AC)

O Reino de Israel, no tempo do rei Roboão, se divide, formando dois reinos: Israel, ao Norte, tendo como cidade principal Samaria, formado por 10 das 12 tribos; e forma-se ao sul o reino de Judá, tendo Jerusalém como centro político e religioso, formado pelas tribos de Judá/ Simeão e Benjamim. Após essa divisão ocorrem diversas investidas na região por parte do Egito, Assíria e Babilônia, que ao dominarem as regiões, tributavam-nas. As 10 tribos do Norte são tomadas pelos Assírios no séc. VIII a. C. e o reino do sul sofre com os egípcios tributando-os e no séc. VII e no séc. VI a. C. com os babilônicos.

Conseqüências da Queda:
a. Divisão causada pelo pecado de Salomão e pela dureza de Roboão, seu filho e herdeiro, na questão dos impostos.
b. Reino do Norte (Israel) começa com Jeroboão I (filho de Nebate) e todos os reis seguem seu exemplo de idolatria.
c. Reino do Sul (Judá) começa com Roboão, filho de Salomão (Roboão foi idólatra), mas o Reino do Sul teve alguns bons reis: Asa, Jeosafá, Joás, Jotão, Ezequias, Josias.

2- Dois Reinos: Norte e Sul (933-721 AC)

Livros sobre o período: I e II Reis, II Crônicas

Profetas do Reino do Norte: Elias, Eliseu, Jonas, Amós, Oséias

Profetas do Reino do Sul: Micaías, Joel, Isaías, Miquéias, Jeremias, Habacuque

3- IMPÉRIO ASSÍRIO – (880 a 612 a.C.)

Declínio E Queda Do Reinado

1. Queda do Reino do Norte e cativeiro israelita sob os assírios (722/721 AC) - ISRAEL

Profeta do período: Oséias

Livro sobre o período: II Reis

Cativos não mais voltam à sua terra.

Em 722 a.C. o RN é levado cativo pelos Assírios

2. Reino do Sul sozinho (721-587 AC) - JUDÁ

Profetas do período: Isaías, Miquéias, Jeremias, Sofonias, Habacuque

Livros sobre o perído: II Reis, II Crônicas

O Império Assírio durou até que Assur caiu em poder dos medos em 614 a.C. e Nínive foi destruída pelos medos e babilônicos em 612 a.C.

4. IMPÉRIO BABILÔNICO – (614 a.C. a 559/538 a.C.)

Queda e Cativeiro do Reino do Sul (606 AC em diante)

Profetas do período da Queda e Cativeiro: Jeremias, Habacuque, Daniel, Ezequiel, Obadias

Profetas em Babilônia, no cativeiro: Daniel, Ezequiel

Livros sobre o período: II Reis, II Crônicas, Daniel, Ezequiel
Reino do Sul (Judá) vencido pela Babilônia (Nabucodonosor): início do cativeiro de Judá (606 AC).

É nesse período que Nabucodonosor rei da Babilônia, por motivo de uma rebelião por parte dos judeus contra seu domínio tributário, em 605 a. C., leva cativo o rei de Judá e parte do povo da terra. Em uma segunda rebelião, Jerusalém é cercada por dois anos e num segundo cativeiro são levados mais de 10.000 habitantes. Uma terceira rebelião faz com que Jerusalém seja totalmente destruída, os muros são derrubados, o Templo destruído e seus tesouros roubados (que segundo relatos bíblicos eram muitos).

Jovens, donzelas, velhos, crianças são mortos pela fome dos cercos e tomadas da cidade. A tomada e a destruição de Jerusalém são detalhadamente contadas no final do segundo Livro dos Reis.[7]

5 - POR QUÊ O EXÍLIO? – PROPÓSITOS - 70 ANOS!

(Muito mais um Exílio que um cativeiro – foi um tempo de renovação e purificação do povo de Deus)Pela desobediência do povo. Moisés já havia advertido o povo sobre isto (Dt 28.15-68)

Cativeiro do Norte – Desobediência e idolatria (2 Re 17.6-20)

v.6-7 ARA No ano nono de Oséias, o rei da Assíria tomou a Samaria e transportou a Israel para a Assíria; e os fez habitar em Hala, junto a Habor e ao rio Gozã, e nas cidades dos medos. Tal sucedeu porque os filhos de Israel pecaram contra o SENHOR, seu Deus, que os fizera subir da terra do Egito, de debaixo da mão de Faraó, rei do Egito; e temeram a outros deuses.

Cativeiro do Sul – Desobediência e idolatria (Jr 25.7)

v. 7 ARA Todavia, não me destes ouvidos, diz o SENHOR, mas me provocastes à ira com as obras de vossas mãos, para o vosso próprio mal.(Ver também Ez 8-11)
Pelo não cumprimento da lei do sábado (Ano do Jubileu – Lv 25.2-7) Esta causa é narrada pelo cronista (2 Cr 36.21)
O povo precisava saber que só Yavé é Yavé (Ez 35.9,15; 38.23; 39.6).

Terra, Templo e Trono. Deus estava demonstrando que Ele não requeria a posse física da terra, o culto no templo de Jerusalém e um trono físico em Jerusalém. O exílio era, portanto, uma lição objetiva para a era do NT. A Terra, o Templo e o Trono, eram sombra de realidade que estavam por vir.

6 - Reis de Israel:
1- Jeroboão I (937 aC) 1Rs 11.282- Nadabe (915 aC) 1Rs 14.203- Baasa ( 914 aC) 1Rs 15.164- Elá (891 aC) 1Rs 16.85- Zinri (890 aC) 1Rs 16.156- Onri (890 aC) 1Rs 16.167- Acabe (876 aC) 1Rs 16.298- Acazias (856 aC) 1Rs 22.409- Jeorão ou Jorão (854 aC) 2Rs 1.1710- Jeú (842 aC) 1Rs 19.1611- Joacaz (814 aC) 2Rs 10.3512- Joás (797 aC) 2Rs 13.1013- Jeroboão II (781 aC) 2Rs 14.2314- Zacarias (741 aC) 2Rs 14.2915- Salum (741 aC) 2Rs 15.1016- Manaém (740 aC) 2Rs 15.1417- Pecalias (737 aC) 2Rs 15.2318- Peca (736 aC) 2Rs 15.2519- Oséias (730 aC) 2Rs 15.307 -
Reis de Judá:

1- Reoboão (937 aC) 1Rs 11.432- Abias (920 aC) 1Rs 14.313- Asa (917 aC) 1Rs 15.84- Josafá (878 aC) 1Rs 15.245- Jeorão (851 aC) 2Cr 21.16- Acazias (843 aC) 2Rs 8.257- Atalias (rainha) (842 aC) 2Rs 8.268- Joás (836 aC) 2Rs 11.29- Amazias (796 aC) 2Rs 14.110- Uzias ou Azarias (777 aC) 2Rs 14.2111- Jotão (750 aC) 2Rs 15.512- Acaz (734 aC) 2Rs 15.3813- Ezequias (727 aC) 2Rs 16.2014- Manasses (697 aC) 2Rs 21.115- Amon (642 aC) 2Rs 21.1916- Josias (640 aC) 1Rs 13.217- Joacaz ou Salum (608 aC) 2Rs 23.3018- Joaquim (608 aC) 2Rs 23.3419- Jeoaquim ou Jeconias (598 aC) 2Rs 24.620- Zedequias ou Matanias ( 598 aC) 2 Rs 24.17

●O Reino do Norte (Reino de Israel) foi levado cativo pela Assíria de 724 até 722 a.C. Houve 3 anos de cerco até o desfecho final. A duração do cativeiro foi de 150 anos. Seu último rei foi Oséias. Teve seus povos espalhados entre as nações e povos mistos passaram habitar Israel, daí, o surgimento da cisma contra os Samaritanos (povos misturados). Tiveram 9 dinastias e 19 reis, a duração do reino do Norte foi de 220 anos até o cativeiro. Sua capital política era Samaria e como capitais religiosas tinha Betel e Dã, assim como, dois templos com 2 bezerros para adoração construídos pelo rei Jeroboão.

●O Reino do Sul (Reino de Judá) foi levado cativo pela Babilônia em 586 a.c, foram deportados apenas os intelectuais, membros de família real, e deixados os pobres. Seu último rei foi Joaquim. A deportação para o cativeiro foi realizado em etapas. A duração do cativeiro foi de 70 anos. Tinha em Jerusalém sua capital religiosa e política. Teve apenas 1 dinastia (davídica) e 20 reis, a duração do reino do Sul foi de 350 anos, 130 anos a mais do que o reino do Norte.
PROFECIA PRÉ-CLÁSSICA

Podemos observar várias fases no desenvolvimento da instituição profética em Israel. No início da história israelita, os profetas, freqüentemente detinham a liderança. Moisés é o melhor exemplo disso; ele era qualificado para liderar o povo em virtude do ofício profético. Débora foi juíza em Israel por ter se destacado como profetisa. Depois de Moisés, o melhor exemplo de profeta anterior a monarquia é Samuel. O texto de 1 Samuel, capítulo 3 descreve o estabelecimento das credenciais proféticas de Samuel. Ele foi o grande líder na transição do período dos juízes para a monarquia.

A profecia pré-monárquica foi apenas um dos estágios da denominada profecia pré-clássica israelita. Quando Samuel ungiu Saul, o papel de profeta se tornou de conselheiro do rei. Esse tipo de profeta se assemelhava ao tipo predominante no Antigo Oriente Médio. Não existem livros que reúnam as profecias do período pré-clássico, mas oráculos dispersos surgem nos livros históricos. O serviço de Samuel para Saul é documentado no livro de 1Samuel, e o profeta Natã conselheiro oficial do rei Davi é evidente em 2Samuel. Embora não possamos considerar Elias um conselheiro do rei Acabe, ele serviu de porta-voz do Senhor no período desse rei.

Como o público do profeta pré-clássico era o rei, as mensagens eram adaptadas as circunstâncias da corte. Por isso as profecias consistiam na maioria dos casos em palavras de incentivo ou advertência ao rei.

O MINISTÉRIO PROFÉTICO DE ELIAS E ELISEU

Os relatos dos ministérios de Elias e Eliseu são importantes não só como biografias representantes do movimento profético pré-clássico, mas também como tratados de fé que celebram personagens centrais do drama religioso de Israel. Elias e Eliseu representam monumentos de fé inabalável em Javé como Deus dos israelitas. Eles serviram de testemunho vivo da fidelidade de Deus a Israel e a sua supremacia sobre o deus cananeu Baal.

O PROFETA ELIAS


Elias, o tesbita, era de Tisbe, na região de Gileade. O nome Elias significa “Jeová é meu Deus” e adaptava-se perfeitamente a ele. Foi o mais notável dos profetas.

Acabe, rei de Israel, casou com a princesa de Sidom, Jezabel. Seu reinado foi marcado pelas loucuras de sua esposa e pela adoração a Baal. Surgindo inesperadamente do deserto e pondo-se diante do rei corrupto, no esplendor de sua corte, o severo profeta falou-lhe ousadamente: “Tão certo como vive o Senhor, Deus de Israel em cuja presença estou, nem orvalho nem chuva haverá nestes anos, segundo a minha palavra” (1Rs 17.1). Fora-lhe dado por Deus poder para fechar os céus de tal modo que não chovesse durante três anos e meio. Ele também pediu que descesse fogo do céu diante dos profetas de Baal no monte Carmelo. Elias foi o grande evangelista do seu tempo, trazendo duras advertências aquele povo idólatra.

Segundo a pregação de Elias, apenas por intermédio de Deus viria a fertilidade da terra. Em tempos de seca e flagelos agrários, o povo era tentado a olhar para Baal, o deus da fertilidade cananita, e buscar socorro. Elias é veemente na sua mensagem contra essa crendice do povo, mostrando que só Deus pode socorrer.

Afora sua pregação principal, os textos conservados sobre Elias relatam uma batalha entre ele e os profetas de Baal (1Rs 18), a predição da seca (1Rs 17.1), as ações milagrosas de provisão e ressurreição (1Rs 17.2-24), sua fuga para a região de Berseba (1Rs 19). Também pregou contra a apropriação indevida de terras pelo rei Acabe (1Rs 21).
Elias foi arrebatado aos céus num redemoinho, diante de seu moço, Eliseu (2Rs 2.1-11).

O PROFETA ELISEU

Eliseu, filho de Safate. Era agricultor. O nome Eliseu significa "Deus é Salvação" ou "Deus salva". Ele foi o sucessor de Elias, seu ministério durou cinqüenta anos. Atou na política bem mais que seu mestre Elias. Foi Eliseu que ungiu Jeú, e mandou que ele exterminasse a família de Acabe. Eliseu, assim como, o seu mestre Elias mostrou-se zeloso pela adoração a Javé e foi contra o sincretismo religioso. Como Elias também realizou milagres, inclusive ressurreição (2Rs 4.32-36).
A maior parte de seus milagres foram atos de bondade e misericórdia. Teve grande influência sobre os reis de seus dias e, embora desaprovasse os atos deles, vinha sempre em seu socorro.

Eliseu apresentou acentuado contraste com Elias:
Elias foi profeta do julgamento, da lei, da severidade.
Eliseu foi profeta da graça, do amor, da ternura.

A PROFECIA CLÁSSICA

A fase mais conhecida da profecia israelita é denominada profecia clássica. Os livros proféticos da Bíblia são todos coleções de oráculos dos profetas clássicos. A profecia clássica começou no século VIII, durante a liderança de Jeroboão II, no Reino do Norte, Israel. Amós e Oséias foram os primeiros exemplos no Norte, e Miquéias e Isaías foram os primeiros profetas clássicos conhecidos no Reino do Sul, Judá. Apesar de muitos profetas clássicos continuarem a se dirigir ao rei e lhe transmitirem mensagens específicas, a maioria dos oráculos era dirigida ao povo. Os profetas pré-clássicos anunciaram o “programa divino” para o rei, os profetas clássicos anunciavam as intenções divinas para o povo. Os profetas clássicos tornaram-se críticos espirituais e sociais dos reis e povo da época, o que os profetas pré-clássicos jamais foram.
A mensagem ou discurso do profeta clássico iniciava sempre com a expressão: “Assim diz o Senhor” ou “Assim diz o Senhor dos Exércitos”.

OS PRINCIPAIS PROFETAS CLÁSSICOS

NO SÉCULO VIII


Os profetas do século VIII a.C. acompanharam os acontecimentos do Reino do Norte e os primeiros sinais de crise do Reino do Sul. Para eles era notório que tais fatos pudessem acontecer e ser explicados devido ao ressentimento de Deus com relação ao seu povo, que realizava práticas idólatras. A idéia de que Ele controlava a História colocava não só Israel, mas todo o Universo, submetido à sua vontade e autoridade. Esses profetas foram os primeiros a conceber tal conceito, que se tornou a base de sua religião.

Nesse período foram quatro os representantes proféticos, tendo dois atuado no Reino do Norte e dois no Reino do Sul.

AMÓS (760-750 a.C.) - sua ação se deu durante o reinado de Jeroboão II (783-743 a.C.). Suas palavras foram anunciadas contra o Reino de Israel devido ao desprezo pelo direito da justiça, ignorados pelos líderes, cujas atitudes atingiram diretamente a população mais fraca e mais frágil da sociedade. Além disso, o profeta denunciava as atitudes hipócritas de culto a Deus, não havendo mais tempo para uma remissão do povo, uma vez que a paciência de Deus se esgotara e o castigo breve viria.

OSÉIAS (750 a.C.) - seu trabalho profético também se deu durante o reinado de Jeroboão II, pouco depois de Amós. Sua missão desenvolveu-se a partir de ameaças e julgamentos seguidos de promessas. Criticou as influências dos cultos cananeus que interferiram no culto a Deus, levando o povo ao sincretismo religioso.

ISAÍAS (740-701 a.C.) - atuou no Reino do Sul e foi o terceiro a falar nesse século. Ele pregou o julgamento de Jerusalém, criticando a hipocrisia no culto, assim como Amós. Sob o reinado de Acaz, rei de Judá, o profeta se colocou contra a aliança feita por esse monarca com o rei da Assíria, Tiglate-Pileser, defendendo a crença incondicional em Deus. Por não ter sido ouvido ele se afastou da vida pública, tendo seu retiro terminado quando foi realizado durante o governo de Ezequias, uma coalizão patrocinada por Azoto, cidade filistéia, inspirada pelo Egito, cujo resultado foi a tomada da cidade e deportação de sua população. Sua posição contrária à política nacionalista ezequiana colocou-o em conflito com o governo. As críticas a política nacionalista continuaram, lembrando ao rei que Senaqueribe (704-681 a.C.), rei da Assíria, era um instrumento nas mãos de Deus para o exercício da vontade divina.

MIQUEIAS (740 a.C.) – foi outro profeta que atuou no Reino do Sul. Foi contemporâneo do profeta Isaías. Sua profecia condenava as atitudes sociais dos governantes contra o povo e anunciava o julgamento sobre Samaria e Jerusalém, capitais do Reino do Norte e do Sul, respectivamente. Semelhantemente a Amós, ele criticou a iniqüidade que estava instaurada no meio do povo e o fato de os governantes desprezarem a justiça, levando o país ao caos. Foram anunciadas medidas a serem tomadas por Jeová contra seu povo.

NO SÉCULO VII

Sobre os profetas do século VII a.C., eles viram a crise pelo qual passara o Reino do Sul, herdeiro legítimo do Reino do Norte, uma vez que este desaparecera. Dentre eles a figura mais importante foi a do profeta Jeremias. Além dele outros três profetas se destacaram: Naum, Sofonias e Habacuque.

NAUM (612 a.C.) - a atuação dele ocorreu durante o reinado de Manassés, rei de Judá. Seu texto se diferenciou dos outros profetas á medida que anunciava a felicidade de Judá. Segundo ele, uma vez que o reino pagava altos tributos à Assíria, seus pecados já estavam “pagos”, de tal modo que Deus não permitiria que seu povo passasse por mais humilhações. A Assíria era vista como instrumento de Deus, porém como teria passado dos limites quando de sua atuação com o Reino do Norte, essa nação deveria ser castigada. Sua missão foi marcada pela pouca fé do povo, uma vez que este estava sob o jugo assírio e assim não confiava em seu Deus, entregando-se à idolatria.

SOFONIAS (630 a.C.) - deve ter atuado durante o reinado de Josias. Suas palavras eram contra todas as práticas sincréticas, fornecendo provavelmente as bases para a reforma religiosa que viria a ocorrer. Essa reforma promovida por esse monarca não conseguiu extirpar a idolatria instaurada durante o reinado de Manassés, motivo pelos quais os profetas continuaram a anunciar o castigo divino. O profeta também atacou o domínio assírio, porém de modo mais tênue que Naum.
Uma de suas mensagens defendia a idéia de que como Deus morava em Jerusalém, apesar de todas as iniqüidades ela seria libertada do pecado. Uma parte da população de Judá sobreviveria e seria purificada. Sofonias também abriu a possibilidade para que outros povos do mundo tivessem felicidade futura, anunciando a vinda desse grupo para Sião.

HABACUQUE (605-601 a.C.) - foi o terceiro profeta desse período. Sua obra pode ser colocada no período do domínio babilônico em Judá. Foi composta por um conjunto de queixas para com seu Deus sobre as atitudes do seu povo, seguidas de respostas divinas. Em sua principal lamentação ele afirmou que Deus era puro demais e por essa razão não poderia ver o mal que havia em Judá. A resposta de Deus foi que Ele se utilizaria de uma nação para a realização de seus desígnios, fato já mencionado anteriormente pelo profeta Isaías, Outro oráculo anunciava um princípio onde o justo viveria por sua fidelidade a Deus. Assim, a visão do profeta mudou o que refletiu em seu cântico final, afirmando a fidelidade a Deus, mesmo sem compreendê-la.

JEREMIAS (626-586 a.C.) - sobre o profeta Jeremias, principal expoente da profecia desse século, suas primeiras pregações foram apelos para o retorno do povo do Reino do Norte para Jerusalém, à Casa de Davi, além de denunciar o pecado local e anunciar as condições necessárias para o estabelecimento de uma nova Aliança com Deus. Ocorreu então a reforma promovida por Josias.

O rei Jeoaquim teve o profeta Jeremias como opositor devido a sua política pró-Egito. Suas profecias passaram a ser ditadas a seu amanuense Baruque, incumbido de lê-las no templo, uma vez que a entrada de Jeremias havia sido proibida. O rei numa dessas leituras, tentou anular a Palavra de Deus, provocando a fuga de Jeremias e de Baruque que tiveram de se esconder.

A atuação de Jeremias ficou mais fácil quando subiu ao trono Zedequias, que confiava plenamente no profeta. Por volta de 594 a.C., revoltas da Babilônia eclodiram, além de um novo faraó no Egito, despertando a esperança de uma solução breve para o problema dos exilados de 597 a.C. O pseudo-profeta Hananias, de Gibeão, previu o retorno da população deportada dentro de dois anos (Jeremias 28.1-10), porém o profeta Jeremias se colocou contra tal discurso, afirmando que o retorno, apesar de ser uma vontade divina, não era para tão cedo e ordenou através de uma carta aos exilados, que se instalassem no país para onde foram enviados. Jeremias aconselhou Zedequias a ser submisso à Babilônia.

Porém, em 588 a.C. Nabucodonosor sitiou Jerusalém, que resistiu por um ano e meio. A cidade não suportou tal pressão e caiu em 586 a.C., e o profeta Jeremias foi protegido pelas autoridades babilônicas. A destruição foi anunciada por Jeremias, justificada pelas atitudes iníquas do povo, que não soube manter a aliança com o seu Deus. Nesse caso o profeta incluiu os homens que ocupavam desde os mais altos postos no Reino até o povo mais simples. Ninguém escapou. As maiores críticas foram aos que mais conhecimento possuíam, pois deveriam guiar o povo e não o fizeram. O exemplo retirado da destruição do Reino de Israel simbolizava um retorno ao caos, devido ao pecado cultivado no meio de toda a população.

NO SÉCULO VI
No século VI a.C. Daniel e Ezequiel foram os profetas da esperança. Daniel foi deportado muito jovem para a Babilônia, exatamente no ano 605 a.C., onde viveu mais de sessenta anos, servindo a seus governantes babilônios e dois persas. Ele e seus companheiros eram de linhagem real e pertenciam à nobreza de Judá. Já Ezequiel (593-571 a.C.) foi um mestre espiritual no exílio, e a partir dele uma nova concepção sobre as relações entre Israel e Deus se impuseram.
Não sabemos exatamente quando se iniciou seu chamado profético, entretanto sua voz se fez ouvir desde a Babilônia. O profeta anunciou o término do tempo da responsabilidade coletiva e de que cada um deveria responder por si a Deus.
A partir de todos esses acontecimentos o profeta Ezequiel os viu como provas de que o povo de Deus deveria viver isoladamente e marginalizado, pois como Ele é real e santo, deveria permanecer afastado de tudo comunicando-se apenas com algo que Ele tivesse santificado: o templo, Jerusalém, o território e o povo, sendo todo o restante considerado profano.

O privilégio do povo de Israel deveria ser manifestado através da obediência, uma vez que foi na ausência dela que o povo pecou e por isso foi castigado. Assim como muitos profetas anteriores, Ezequiel sempre relembrou os momentos de desobediência e as suas conseqüências.

CONCLUSÃO
Cada uma das mensagens tem relevância para o público do profeta e para nós, não tanto pela informação oferecida sobre o presente ou futuro, mas pela revelação a respeito de Deus. Devemos lembrar que a profecia fazia parte da auto-revelação divina. Encontra-se na mensagem do profeta, a proclamação do “programa” de Deus.

1. ADIVINHAÇÃO E PROFECIA
1.1. Os deuses e a adivinhação.
1.2. Adivinhação e magia.
1.3. As formas de adivinhação.

2. A COMPLEXA IMAGEM DO PROFETA
2.1. Diferenças entre os profetas.
2.2. Diversas imagens do profeta.
2.3. Os traços essenciais do profeta.

3. A PALAVRA PROFÉTICA
3.1. Força e fraqueza da palavra profética.
3.2. Os gêneros literários.

4. OS LIVROS PROFÉTICOS
4.1. Os livros proféticos.
4.2. A formação dos livros.
4.3. A palavra original do profeta.
4.4. A obra dos discípulos e seguidores.
4.5. As adições posteriores.

ADIVINHAÇÃO E PROFECIA - Há uma coisa que é comum aos jornais e revistas das ideologias mais díspares: o horóscopo. Em doze constelações e quatro segmentos (amor, trabalho, saúde, dinheiro) esboça-se o futuro imediato dos pobres mortais. Quase nada se acredita do horóscopo. Mas muitos o lêem. Porque aborda uma das coisas mais apaixonantes para o ser humano: seu futuro, esse futuro feito de sonhos e de incertezas, de planos grandiosos ou pequenas esperanças e projetos. Que é que nos reserva a complexa trama da vida? Quem conhece o nosso destino?

Também o presente às vezes nos angústia com a sua insegurança e com os problemas que nos apresenta. O que será o mais adequado no momento presente? Que devo fazer? Em uma época como a nossa se aceita a ignorância e a dúvida; ou, então se recorre, quando possível, a soluções lógicas e técnicas. Os generais romanos examinavam as vísceras das vítimas antes de iniciar uma batalha.

Para o desembarque na Normandia, os “adivinhos” da época foram os “meteorologistas”. Da informação deles dependia a escolha do momento. Saul foi eleito rei segundo uma tradição tirando-lhe a sorte. Atualmente elegem-se presidentes de governo depositando cédulas nas urnas. As terras de Israel foram distribuídas entre as tribos por sorteio.

Nosso mundo e nossa cultura têm mudado profundamente nos últimos séculos. Mas isto não deve impedir-nos de compreender a mentalidade do homem antigo, ainda bastante parecida à de alguns contemporâneos nossos. Muita gente não é capaz de encarar as incertezas da vida com atitude lógica e científica. Busca-se ajuda em um mundo diferente, o dos deuses, dos espíritos, dos astros, ou do destino. No mundo que cercava o Israel antigo, as religiões já estavam bem organizadas e difundidas naquela época, e, embora por vezes se recorra aos espíritos dos antepassados, acredita-se que são os deuses que podem transmitir a informação desejada. Todavia, estarão eles dispostos a revelar os seus conhecimentos?

1.1. Os deuses e a adivinhação – a maioria dos antigos endossaria as palavras que Heródoto coloca na boca de Ciro: “Os deuses velam por mim e me predizem tudo o que se trama contra mim”. Ou, como parece pensar o mesmo Heródoto: “Há que deduzir que, quando sobre uma cidade ou uma nação estão por abater grandes calamidades, a divindade costuma profetizá-las com antecedência”. No fundo está idéia nada difere do que o próprio Deus comenta antes de destruir Sodoma e Gomorra: “Posso ocultar a Abraão o que tenho em mente fazer? (Gn. 18,17). Ou o que se indica de passagem no livro de Amós: “O Senhor não fará nada sem revelar seu plano a seus servos os profetas” (Am 3,7). A vida pode apresentar-nos muitos sofrimentos e lágrimas, mas os deuses, sabem tudo, estão dispostos a evitar maiores males para nós se nos preocuparmos em consultá-los, sendo até possível que se adiantem em fazê-lo.

Inclusive em uma mentalidade como a grega, em que Zeus sempre tem ciúmes dos homens, haverá pelo menos outro deus disposto a conceder aos mortais o dom da adivinhação. Está é a idéia formulada genialmente por Ésquilo (Ésquilo foi um dramaturgo da Grécia Antiga. É reconhecido frequentemente como o pai da tragédia) em uma passagem do Prometeu acorrentado, ao qual constitui ao mesmo tempo uma curiosa enumeração das mais diversas práticas de adivinhação. Entre os dons que o deus se gloria de haver concedido aos homens, depois da medicina, se encontram: “Classifiquei as muitas formas de adivinhação e fui o primeiro a discernir a parte de cada sonho há de ocorrer na realidade. Dei-lhes a conhecer os sons que encerram presságios de difícil interpretação e os prognósticos contidos nos encontros pelos caminhos. Defini com exatidão o vôo das aves vorazes, quais são favoráveis por natureza e quais sinistros, que classe de vida cada uma tem, quais são os seus ódios, seus amores e companhias, a claridade das suas entranhas e que cor deve ter a bílis para ser agradável aos deuses, e a variegada beleza do glóbulo hepático. Encaminhei os mortais para uma arte na qual é difícil formular presságios, quando coloquei ao fogo os membros cobertos de gordura e o grande lombo. Fiz com que vissem com clareza os sinais que as chamas encerram, chamas essas que antes estavam sem luz para eles. Esta foi a minha obra”.

O que precede é formulação poética e mítica do dom divino da adivinhação. Há lugar para uma outra apresentação mais filosófica e cotidiana, talvez compartilhada por maior número de pessoas. Na Antiguidade, quem melhor formulou este ponto de vista foram os estóicos. O estoicismo é uma doutrina filosófica fundada por Zenão de Cítio, que afirma que todo o universo é corpóreo e governado por um Logos divino (noção que os estóicos tomam de Heráclito e desenvolvem). A alma está identificada com este princípio divino, como parte de um todo ao qual pertence. Este lógos (ou razão universal) ordena todas as coisas: tudo surge a partir dele e de acordo com ele, graças a ele o mundo é um kosmos (termo que em grego significa "harmonia"). Cícero expõe a mentalidade deles da seguinte maneira: “Se existem deuses e estes não dão a conhecer o futuro aos homens, ou não amam os homens, ou eles mesmos desconhecem o futuro, ou consideram que o conhecimento do futuro não nos interessa, ou pensam não ser próprio da majestade divina anunciar-nos as coisas que irão acontecer, ou, em último caso, os próprios deuses não podem comunicar-nos este conhecimento.

Mas nos amam, são benéficos e generosos conosco, não podem desconhecer o que está decretado segundo os seus próprios desígnios, sabem que nos interessa o futuro, e que a nossa prudência aumenta na proporção deste conhecimento, não podem considerar essas advertências impróprias da sua majestade, porque nada existe superior à benevolência, nem tampouco podem desconhecer o futuro. Se não existem deuses, não há sinais do futuro: mas existem deuses, portanto, nos instruem sobre o futuro”.

O próprio Cícero encarrega-se de refutar a teoria estóica. Para ele “é duvidoso e discutível” que os deuses se preocupem com os homens e sejam benévolos para com eles, por outro lado, muitas pessoas negam que os deuses imortais tenham estabelecido tudo e que possam modificá-lo segundo a convêniencia do homem.

Todavia, por mais que Cícero tenha razão, muita gente, na Antiguidade e desde tempos ancestrais, estava convencida de que os deuses ou os espíritos estão dispostos a revelar-nos o futuro ou resolver os nossos problemas presentes.

1.2. Adivinhação e magia – surge então uma das atividades mais antigas e misteriosas: a adivinhação, que no seu início estava intimamente ligada à magia. Efetivamente, o importante não era só conhecer o futuro, mas também modificá-lo em caso de necessidade. Quando o rei Ocozias de Israel, manda consultar o deus Belzebu de Ecron, não lhe interessa obter um simples diagnóstico médico, no fundo da consulta esconde-se o desejo de que o deus cananeu lhe conceda a saúde. Esta relação entre a adivinhação e magia é formulada muito bem por Luciano na petição que coloca na boca de Sexto, filho de Pompeu, quando vai consultar a necromante: “ Tu que podes desvendar aos povos os seus destinos e desviar do seu curso os acontecimentos do futuro...” O que ela possui não é só conhecimento do futuro, mas também poder de mudá-lo. Por isso, termina pedindo-lhe: “arranca à sorte o direito de abater-se sobre mim súbita e imprevisivelmente”. Episódios como estes, dos quais há numerosos paralelos, demonstram a estreita relação entre adivinhação e magia. O mago e o adivinho, eram um mesmo personagem na Antiguidade. Mesmo em tempos posteriores, o profeta hebreu revelará às vezes características mágicas evidentes.

1.3. As formas de adivinhação – a palavra latina “divinatio” (adivinhação) faz referência ao mundo sublime do “divino”. O termo equivalente grego, “mantiké”, é mais neutro. Há pouco mais de vinte séculos, Cícero distinguia duas fórmulas de adivinhação, a artificial e a natural. No final do século passado, passou-se a usar uma terminologia diferente, distinguindo entre a adivinhação indutiva ou técnica e a intuitiva ou natural.

A Adivinhação Indutiva: Ela utiliza uma grande variedade de recursos, que podemos catalogar da seguinte maneira:

A) A partir da observação da natureza: A observação dos corpos celestes (astrologia) e dos fenômenos atmosféricos (aeromancia) figura entre os procedimentos mais conhecidos em todas as culturas para adivinhar o futuro. Baseia-se na estreita relação que imagina existir entre o céu e a terra, o que acontece na terra é pressagiado no céu. Mt. 16:1 Então chegaram a ele os fariseus e os saduceus e, para o experimentarem, pediram-lhe que lhes mostrasse algum sinal do céu. 16:2 Mas ele respondeu, e disse-lhes: Ao cair da tarde, dizeis: Haverá bom tempo, porque o céu está rubro. 16:3 E pela manhã: Hoje haverá tempestade, porque o céu está de um vermelho sombrio. Ora, sabeis discernir o aspecto do céu, e não podeis discernir os sinais dos tempos?

Entre os corpos celestes, o que mais atrai a atenção é a lua, entre outras coisas, por ser mais fácil de examinar. O Antigo Testamento fala desses astrólogos babilônicos. Em Is 47,13, quando o poeta anuncia a grande catástrofe que se aproxima sobre a Babilônia, diz-lhe com ironia: “...que se levantem e te salvem os que estudam o céu, os que observam as estrelas, os que cada mês prognosticam o que vai suceder”.

Existe outra forma menos conhecida de investigar o futuro através da natureza. Refiro-me ao murmúrio na copa das árvores. Em 2Sm 5,24 encontramos essa curiosa tradição. Davi, antes de uma das suas batalhas com os filisteus, consulta a Deus, que lhe responde: “Não ataques. Cerca-os por trás, e logo os atacarás em frente às amoreiras. Quando ouvires ruído de passos na copa das amoreiras, lança-te para o ataque, pois então o Senhor sairá à tua frente para derrotar o exército filisteu.

Não fica claro se ouve um ruído, gritos, passos ou alguém que se aproxima. O importante é que algo se revela na copa das árvores, e é possível conhecê-lo ouvindo o seu ruído.

B) A partir da observação dos animais: o comportamento ou os movimentos dos animais também são usados com freqüencia para adivinhar. Em 1 Sm 6 narra-se um episódio curioso neste sentido. Depois de se terem apoderado da arca, os filisteus não sabem o que fazer com ela. Ela não cessa de provocar-lhes desgraças e epidemias. Os sacerdotes e adivinhos suspeitam que o culpado de tudo é Jave, o deus dos hebreus, a quem pretence a arca. Mas, não têm certeza. E aconselham o seguinte: “Fazei um carro novo, tomai duas vacas com cria, sobre as quais ainda não tenha sido posta canga, atrelai as vacas ao carro, e mandai os bezerros de volta ao estábulo. Depois tomai a arca de Deus e colocai-a no carro. Observai bem: se tomar o caminho da sua terra por Bet-Sames, foi este Deus que nos causou essa terrível calamidade, em caso contrário, saberemos que não foi a mão dele que nos feriu, senão que foi um acidente”.

Dentro dessa adivinhação do futuro através da observação dos animais, ocupa lugar especial o estudo dos pássaros (ornitomancia). O vôo deles, o aparecimento deles pela direita ou pela esquerda, os gritos que lançam, são considerados meios adequados de revelação. Na Mesopotâmia encontramos a seguinte oração: “Samas, senhor do juízo, Acad, senhor da adivinhação...para que N.N., filho de N.N., possa realizar com êxito o seu propósito, fazei com que este pássaro ou aquele outro voe do meu lado direito e (passe) para o meu lado esquerdo”.
Dentro do Antigo Testamento, houve quem quisesse relacionar com esta técnica o que se conta de Abraão no momento em que está oferecendo um sacrifício: “As aves de rapina desciam sobre os cadáveres e Abraão as espantava” (Gn 15,11). A fuga dos pássaros seria um indício de que Deus aceita a oferta dele e estabelacerá aliança com ele. Mas é preciso muita imaginação para ver no gesto do personagem um ato de adivinhação.

C) A partir dos sacrifícios: muito relacionada com o item anterior está a observação dos animais sacrificados. Alguns histioriadores acreditam que a função originária do sacerdote não era oferecer sacrifícios, mas observar e interpretar os possíveis sinais divinos através desses sacrifícios.

A forma principal de adivinhação nesta linha é o estudo das vísceras da vítima (aruspicação). Segundo a mentalidade popular, os deuses escreviam nelas a sua mensagem. Um hino ao deus Samas afirma: “Nas vísceras do cordeiro tu escreves o oráculo”. E diz, uma inscrição de Nabônides: “Fiz um ato de adivinhação, e Samas e Adad me respnderam com um “sim” seguro, colocando sobre as vísceras do meu cordeiro um sinal favorável a propósito da fundação deste templo de Eulmas”.

Nesta linha, a técnica mais desenvolvida e valorizada era a observação do fígado (hepatoscopia). Segundo Platão, é como um espelho no qual se refletem os pensamentos dos deuses. A hepatoscopia só se menciona na Bíblia como costume babilônico. em Ez 21,21.

Mas os sacrifícios prestam-se também para observar a chama, a forma como sobe a fumaça, a sua cor, (capnomancia). Ás vezes oferece-se incenso exclusivamente com esta intenção (libanomancia). É uma prática sobre a qual possuímos poucos dados. Dentro do Antigo Testamento, indica-se como exemplo Jz 13,19-23, pensando que a mãe de Sansão deduz, da forma como sobe a fumaça do sacrifício, que Deus será benévolo com eles e não morrerão. Mas esta interpretação parece rebuscada e desnecesária.

D) A partir da observação de alguns líquidos: em quase todos os povos antigos considera-se a água como elemento gerador e revelador. É possível que da simples observação das ondas formadas por uma pedra atirada a um lago ou ao mar certos adivinhos tentassem obter informação sobre o futuro. Esta técnica se desenvolverá em múltiplas possibilidades.

A mais simples consiste no uso de um só líquido, a água (hidromancia), em um recipiente ou um alguidar com água jogam-se pedrinhas, pedaços de metal ou de madeira, a fim de observar os círculos que se formam, ou os ruídos que tais objetos produzem. No Antigo Testamento, é possível que se relacione com ela o que se narra a propósito de José (Gn 44,5), e que vamos considerar no item que segue.

Uma técnica mais refinada consiste no uso de diversos líquidos, geralmente água e azeite (lecanomancia). Na Mesopotâmia costumava-se derramar umas gotas de água em azeite, ou uma gotas de azeite em água. Partindo dos círculos que se formam, do lugar do recipiente ou da taça em que se concentram etc., os adivinhos (barû) pretendem obter uma informação dos deuses. A técnica era usada em assuntos do Estado, nas consultas do rei e dos altos personagens, e também nos assuntos privados dos cidadãos.

E) Mediante diversos instrumentos: Taça (Gn 44,5); Flechas (Ez 21,26); (2Rs 13,14-19); Bastão (Os 4,12); Dados (Js 7,17-18); (1 Sm 10,19-21); (Js 14,2; 18,1 – 21,40).

A Adivinhação Intuitiva: três são as formas principais: a interpretação dos sonhos (oniromancia), a consulta aos mortos (necromancia) e a comunicação divina através de oráculos (cresmologia). Das três, a mais importante do ponto de vista bíblico é a terceira. Por outro lado, a Grécia contribui com um material bem abundante que ajuda a compreender algumas reações humanas diante das profecias. Por isso, a parte dos oráculos será muito mais desenvoldida do que as anteriores.

A) Oniromancia: “Tu fostes o primeiro a dar valor ao sinal divino encerrado em meu sonho”, diz a rainha ao Coro em Os Persas de Ésquilo. Efetivamente, desde tempos antigos se considerou que os sonhos encerram um sinal dos deuses.

No poema de Gilgamesh, uma das criações literárias mais poderosas e antigas da humanidade, é através de um sonho que Enkidu fica sabendo da sua morte iminente. Falando com Gilgamesh, diz-lhe:
“Ouve, amigo meu, o sonho que vi esta noite.
Os céus rugiam e a terra lhe respondia.
No meio estava eu, aí.
Havia um homem de rosto sombrio (...).
Pegou-me pela ponta dos cabelos, dominou-me.
Eu tentava golpeá-lo, mas ele pulava como uma corda(...).
Pegou-me e arrastou-me para a casa das trevas,
a morada de Irkalla, para a casa de se entrar e não sair,
para o caminho de ir e não voltar,
para a casa cujo os moradores estão privados da luz,
onde se alimentam de pó,
e o único alimento deles é o barro...

Dentro do Antigo Testamento o material é abundantíssimo, começando pelo Gênesis. Curiosamente, o primeiro caso que se registra não é de um sonho patriarca e sim o de Abimelec, o rei de Gerara, ao qual Deus avisa em sonho que deixe Sara (Gn 20,3). Um sonho levará Jacó, segundo a tradição, a fundar o santuário de Betel (Gn 28,11-16). E os sonhos de vários personagens ponteiam a história de José: os dele mesmo, que profetizam a superioridade dele sobre os irmãos (Gn 37), os do copeiro e do padeiro (Gn 40) e do Faraó (Gn 41).

Ver ainda, os casos de (Jz7,10); (Dn 2 e 4 e 7). Dentro do Antigo Testamento, o caso mais claro seria o de Salomão no começo do seu reinado. Quando este acode à ermida de Gabaão para oferecer sacrifícios, o Senhor aparece-lhe naquela noite em sonhos (1Rs 3,5).

B) Necromancia: A consulta aos mortos para obter deles a informação desejada é um fenômeno bastante difundido no mundo antigo. Segundo o testemunho da Bíblia, ela encontra-se entre os cananeus (1Sm 28,3-25; 2Rs 21,8; Is 8,19; 65,4). Encontra-se também entre os babilônicos, persas, gregos, romanos, e outros povos. Talvez essa prática se deva à crença popular de que os mortos não somente sobrevivem depois de mortos, senão que, também têm poderes sobrenaturais de conhecimento. Um dos exemplos mais célebres é o da consulta de Saul à pitonisa de Endor, para que evoque o espírito de Samuel. A batalha com os filisteus é iminente. Saul consultou a Deus por meio de sonhos, do Urim e de profetas. Nenhum dos três procedimentos serviu para obter resposta. Como último recurso, acode à necromancia, embora ele mesmo tivesse proibido essa prática anteriormente (1Sm 28,3).

C) Oráculos: Embora na Mesopotâmia se recorra habitualmente à adivinhação indutiva, que é de longe a mais estimada, em Israel e na Grécia as formas mais frequentes e dignas de conhecer a vontade divina é consultar o oráculo, onde sinais e portentos são substituídos pela palavra, sem dúvida às vezes enigmática, mas afinal de contas palavra, como a dos homens. Eis, algumas circunstâncias onde se consultava o oráculo:

●A eleição do chefe ou do monarca: Quando o povo de Israel deseja instaurar a monarquia, acode ao profeta Samuel para que escolha, em nome de Deus, a pessoa adequada, que será Saul.

●A guerra: Naturalmente, não em tempos de Moisés, de Josué e dos Juízes, pois estes tinham linha direta com Deus e não precisavam consultar ninguém. Mas os reis pertencem a uma época diferente, mais profana, de segunda categoria. Antes da batalha é preciso saber se Deus o permite. “Posso atacar os filisteus? Tu mos entregarás? (2Sm 5,19).

●Saúde e doença: Um rei de Israel, Ocozias, manda consultar Baal Zebub, deus pagão de Ecron (2Rs 1). E um pagão, o rei Benadad da Síria, manda consultar Javé através de Eliseu (2Rs 8,7).

●Outras desgraças: Muito relacionado com o tema da doença está o das outras desgraças que podem abater-se sobre os indivíduos ou sobre o povo. A mentalidade oficial é que elas se devem a alguma falta cometida. O problema é saber de que falta se trata, e como ela pode ser reparada. É aqui que intervém o oráculo. Na Bíblia nos deparamos com este caso. No reinado de Davi houve três anos de fome consecutivos. Isto não era raro naqueles tempos, por causa das típicas secas mediterrâneas. Mas este é o nosso ponto de vista moderno. Davi pensa que a causa pode ser algum pecado, e decide consultar o Senhor. A resposta não se faz esperar: “Saul e sua família ainda estão manchados de sangue por haver morto os gabaonitas” (2Sm 21,1). Um antigo pecado de Saul justifica a desgraça presente. A solução é ressarcir os prejudicados. E a indenização será sangrenta, pois os gabaonitas afirmam sem rodeios: “Um homem quis exterminar-nos, e pensou destruir-nos e expulsar-nos do território de Israel. Que nos entreguem sete de seus filhos varões e os penduraremos em honra de Javé, em Gabaão, na montanha do Senhor” (2Sm 21,5-6). Assim se fez, e “Deus se aplacou com o país” (2Sm 21,14).

Em outra ocasião, Davi teve uma idéia infeliz. De acordo com o segundo livro de Samuel, foi Deus quem lhe inspirou (2Sm 24,1). Segundo Crônicas, foi Satanás que lhe inspirou (1Cr 21,1). A idéia foi realizar um censo de todo o povo, para saber de quantos soldados podia dispor. Como conseqüência deste pecado de orgulho, o povo passa a ser vítima de uma epidemia de peste, que provoca a morte de 70 mil homens. Davi suplica que a mortandade acabe.

É então que fala Deus através do profeta Gad, ordenando ao rei que compre a eira de Areúna e construa ali um altar. Enquanto se oferecem nele holocaustos e sacrifícios de comunhão, “o Senhor se aplacou com o país e cessou a mortandade em Israel” (2Sm 24,25).

2. A COMPLEXA IMAGEM DO PROFETA _ Por mais que pareça estranho, não é fácil definir ou descrever um profeta. E a dificuldade provém das mesmas tradições bíblicas e dos dados que nos oferecem os livros proféticos. Não se tratam de pessoas talhadas pelo mesmo padrão, uniformes em todos os aspectos de sua personalidade, sua atividade ou sua mensagem.

2.1. Diferenças entre os profetas _ Chamaram profetas a Isaías, Jeremias, Eliseu, Obadias, Naum, entre outros. Mas existem notáveis diferenças entre eles. E, ainda que não sejam suficientes para negar os vínculos que os unem, é conveniente tê-las presentes para captar a complexidade da tarefa. Tais diferenças aparecem, sobretudo:

_ No tempo que dedicavam à atividade profética. A de Isaías durou muito provavelmente uns 40 anos, e, mesmo que em alguns momentos nada saibamos do que fez, podemos dizer que durante toda a sua vida exerceu o “ofício” de profeta. Algo parecido acontece com Jeremias e Ezequiel. Obadias está no extremo oposto: são lhe atribuídos 21 versículos (e os três últimos provavelmente não são seus). Para compor e proclamar esta breve mensagem basta algumas horas.

_ No modo de entrar em contato com Deus. Muita gente imagina que o profeta estabeleça essa relação de forma íntima, como sugerem algumas passagens de Jeremias, ou mediante manifestações surpreendentes da divindade, como acontece no capítulo 6 de Isaías. “Visões” e “Audições” são os termos mais freqüentes utilizados pelos profetas para se referirem aos canais de comunicação com o Senhor. Mas existe outro meio bem diferente, pelo menos nos tempos antigos: o transe, provocado pela música e pela dança (1SM. 10,10); 19,23-24).
Nossa sensibilidade aceita facilmente que o Espírito Santo venha sobre Zacarias e o faça profetizar, mas nos desconcerta que o mesmo espírito de Deus invada Saul e o ponha a dançar, chegando até a despir-se e atirar-se por terra, totalmente nu.

_ No modo de transmitir a mensagem. O modo mais comum é a palavra, utilizada nos mais diversos gêneros da sabedoria tribal e familiar, do culto, do âmbito judicial, da vida quotidiana. Em certas épocas
adquirem grande importância as ações simbólicas, que tornam a mensagem acessível aos olhos. Mas o mais surpreendente é que alguns profetas se expressam com tremenda sobriedade, sem concessões ao auditório nem a eles mesmos, enquanto outros parecem atores de teatro, compenetrados de seu papel, que usam os gestos mais desconcertantes. Ezequiel, protótipo desta forma de atuar, bate palmas e dança ao mesmo tempo que fala (Ez. 6.11), recordando o transe dos antigos grupos proféticos.

_ Na função que desempenham na sociedade. Os estudos mais recentes sobre o profetismo se concentraram no aspecto sociológico deste movimento, distinguindo dois tipos principais: o profetismo central e o periférico. Esta distinção, sobre a qual falaremos daqui a pouco, tem seu fundamento na tradição bíblica e é muito importante para se perceber as diferenças existentes entre os profetas.

O que hoje dizemos com um só termo “profeta” (de origem grega), os antigos designavam com vários títulos: homem de Deus, vidente, visionário, profeta. Esta diferença terminológica revela algo mais sério do que se pode parecer à primeira vista: diferentes concepções de profetismo, conforme o papel desempenhado pelo protagonista dentro da sociedade.

2.2. Diversas imagens do profeta _ Estas diferenças inegáveis não anulam a unidade do movimento profético, mas destroem uma concepção monolítica, que não leve em consideração as nuanças. E assim se explica por que, ao longo da história das investigações, se tenham proposto diferentes imagens do profeta que, sem serem falsas, provocam uma visão limitada e unilateral quando pretendem exclusividade. Essas imagens seriam a do adivinho, do anunciador do Messias, do solitário, do reformador social, do funcionário.

Para a maioria das pessoas, o profeta é um homem que “prediz” o futuro, uma espécie de adivinho.
Esta difundida concepção tem dois fundamentos: um falso, de tipo etimológico; outro, parcialmente justificado, de caráter histórico. No sentido etimológico o erro, basicamente, consiste em interpretar a partícula “pro” em sentido temporal (o que prediz). Na realidade deve interpretar-se em sentido local (o que fala em público). Quanto ao segundo, não resta dúvida de que certos relatos bíblicos apresentam o profeta como um homem capacitado para reconhecer coisas ocultas e adivinhar o futuro: Samuel consegue encontrar as jumentas que o pai de Saul havia perdido (1 SM 9,6 -7,20); Aías, já cego, sabe que a mulher que o vai visitar disfarçada é a esposa do rei Jeroboão, e prediz o futuro de seu filho enfermo (1 Rs 14,1-6); Elias anuncia a morte iminente de Ocozias (2 Rs 1,16-17); Eliseu sabe que seu criado, Geazi, ocultamente aceitou dinheiro de Naamã (2 Rs 5,20-27), indica ao rei o lugar do acampamento dos arameus (2 Rs 6,8), etc.

Inclusive nos tempos do Novo Testamento perdurava esta idéia, como o demonstra o diálogo de Jesus com a samaritana. Quando lhe diz que tinha cinco maridos, e que o atual não era o seu, a mulher reage espontaneamente: “Senhor, vejo que és profeta”.

2.3. Os traços essenciais do profeta _ É possível detectar um fundamento comum, que se possa aplicar a todos os profetas? Se por comum entendermos algo que apareça de forma indiscutível em todos eles, a resposta é “não”. As tradições sobre alguns profetas são tão escassas e limitadas, que não permitem afirmações de nenhum tipo. Mas, aplicando a alguns como hipótese o que em outros é plena certeza, podemos falar de umas linhas de força comuns ao movimento profético. Esta linha as resumiria nos seguintes pontos:

O profeta é um homem inspirado. No sentido mais estrito da palavra. Ninguém em Israel teve uma consciência tão clara de que era Deus quem lhe falava e de ser porta voz do Senhor como o profeta. E esta inspiração lhe vem de um contato pessoal com ele, que começa no momento da vocação. Por isso, quando fala ou escreve, o profeta não recorre a arquivos e documentos como os historiadores, tampouco, se baseiam na experiência humana geral, como os sábios de Israel. Seu único ponto de apoio, sua força e sua fraqueza, é a palavra que o Senhor lhe comunica pessoalmente, quando quer, sem que ele possa negar a proclamá-la. Palavra que às vezes se assemelha ao rugido de um leão (Am 1,2), e em outras ocasiões é “gozo” e alegria íntima” (Jr 15,16).

O profeta é um homem publico. Seu dever de transmitir a palavra de Deus o coloca em contato com os demais. Não pode retirar-se para um lugar sossegado de estudo ou reflexão, nem limitar-se ao espaço reduzido do templo. Seu lugar é a rua e a praça pública, lá onde o povo se reúne, onde a mensagem é mais necessária e a problemática mais aguda. O profeta se acha em contato direto com o mundo que o rodeia, conhece as maquinações dos políticos, as intenções do rei, o descontentamento dos camponeses pobres, o luxo dos poderosos, a despreocupação de muitos sacerdotes. Nenhum setor lhe é indiferente nada é indiferente para Deus.

Contudo, estas afirmações, por mais corretas que pareçam, precisam de precaução. Poderiam causar a impressão de que todos os profetas estão em contato com todos os problemas e grupos sociais, desde o rei até o último peão, das alianças políticas às rogações ou ladainhas pela chuva ou contra a praga de gafanhotos. Somente uma personalidade excepcionalmente rica (Jeremias, Isaías) poderia transitar por tantos ambientes e interessar-se por tal diversidade de questões. E, isto, não é a norma. Prova disto, é que se distinguem quatro tipos de profetas no Antigo Israel: profetas xamãs* (Samuel, Elias, Eliseu); profetas cultuais e do templo; profetas da corte (Gad, Natã); profetas livres.

Nota: O xamanismo é um termo genericamente usado em referência a práticas etnomédicas, mágicas, religiosas (animista, primitiva) e filosóficas (metafísica), envolvendo cura, transe, metamorfose e contato direto entre corpos e espíritos de outros xamãs, de seres míticos, de animais, dos mortos, etc.

O profeta é um homem ameaçado. Muitas vezes sentirão que Deus disse a Ezequiel:
“Dirigem-se a ti, em bando, sentam-se na tua presença e ouvem tua palavra, mas não a põem em prática. Tu és para eles como uma canção suave, bem cantada ao som de instrumentos de corda: eles ouvem as tuas palavras, mas não as praticam”. (EZ 33,31-33).

É a ameaça do fracasso apostólico, de perder-se numa causa que não encontra eco nos ouvintes. Mas isto é o mínimo que lhes pode acontecer. Há situações muito mais duras. Oséias é chamado de “louco”, “néscio”, Jeremias é acusado de traidor da pátria. E se chega também a perseguição, ao cárcere, e a morte. (Elias deve fugir do rei em muitas ocasiões, Miquéias termina na prisão, Amós é expulso do Reino do Norte, Jeremias passa na prisão vários meses de sua vida, Urias é apedrejado e jogado na fossa comum (Jr 26,20-23). Estas perseguições não vêm somente de reis e poderosos, mas também de sacerdotes e falsos profetas. E até o povo se volta contra eles, os critica, despreza e persegue.

No destino dos profetas fica prefigurado o de Jesus de Nazaré.

Silenciaríamos um detalhe importante se não disséssemos que a ameaça vem de Deus também. Muda-lhes a orientação da vida, arranca-os de sua atividade normal, como acontece com Amós (7,14) ou com Eliseu (1Rs 19,19-21), pede-lhes uma mensagem muito dura, quase inumana algumas vezes, tendo em conta a idade e as circunstâncias em que se encontram. É o caso de Samuel. Ainda menino, deve transmitir ao sacerdote Eli, que o tinha criado desde pequeno, sua condenação pessoal e a de seus filhos (1Sm 3). Com razão diz o narrador que, na manhã seguinte, Samuel “não se atrevia a contar a Eli sua visão” (v 16). Ou o caso de Ezequiel, que nem sequer no momento da morte da sua esposa a pode chorar tranqüilamente, mais importante que sua dor é a palavra de Deus, que o força a transmiti-la por meio de uma dolorosa ação simbólica (Ez 24,15-25).

Estes exemplos, que poderíamos multiplicar, bastam para demonstrar que a existência do profeta não é ameaçada apenas por seus contemporâneos, mas até por Deus. Não nos admira que alguns deles, como Jeremias, chegaram a rebelar-se contra esta coação em determinados momentos.

3. A PALAVRA PROFÉTICA
3.1. Força e fraqueza da palavra profética – os livros proféticos são talvez os mais difíceis de todo o Antigo Testamento. Para compreender uma mensagem tão encarnada na realidade de seu tempo é preciso conhecer as circunstâncias históricas, culturais, políticas e econômicas em que tais palavras foram pronunciadas. Os profetas, além disso, usam com freqüência uma linguagem poética, e todos sabemos que a poesia é mais densa e mais difícil que a prosa.

Deste modo, intervenções que em seu tempo provocaram calafrios, de tão blasfemas, hoje parecem insignificantes, para muitos leitores. E palavras de profunda significação humana e religiosa passam despercebidas para muitos cristãos. Imagino como soariam interessantes estes textos em nossos ouvidos, se os antigos profetas ressuscitassem. Com esta intenção, ofereço algumas adaptações de textos proféticos. Podem suscitar escândalo e mal-estar, parecer estúpidas e utópicas. Mas têm duas vantagens: podem ajudar-nos a entender a forma em que se expressam e os motivos por que foram perseguidos ou passaram por iludidos.

Comecemos com um pequeno e simples texto de Amós:

“Entrai em Betel e pecai!
Em Guilgal, e multiplicai os pecados!
Oferecei, pela manhã, os vossos sacrifícios,
e ao terceiro dia os vossos dízimos!
Queimai pão fermentado como sacrifício de louvor,
proclamai vossas oferendas voluntárias,
porque assim é que gostais, filhos de Israel,
Oráculo do Senhor ”(Am 4,4-5).

Se lermos este texto numa eucaristia Eucaristia (Eucaristia: do grego εὐχαριστία, cujo significado é "reconhecimento", "ação de graças") é uma celebração em memória da morte e ressurreição de Jesus Cristo. Também é denominada "comunhão", "ceia do Senhor", "primeira comunhão", "santa ceia", "refeição noturna do Senhor") ou num ato penitencial, quase ninguém entenderá seu conteúdo. A maioria das pessoas não sabe o que é Betel, muito menos Guilgal, desconhecem a expressão “oferecer sacrifício” (só ouviram falar de “sacrificar-se” ou “mortificar-se”), ignoram o que são ázimos e os dons voluntários, e quanto ao dízimo, talvez lembrem que um antigo catecismo mandava “pagar dízimos segundo o costume”.

3.2. Os gêneros literários – muitos poderão pensar que os profetas comunicam sua mensagem mediante um discurso ou sermão, que são os gêneros mais habituais entre os oradores sacros do nosso tempo. Às vezes o fazem, mas geralmente empregam uma grande variedade de gêneros literários, extraídos de ambientes os mais diversos. Elenco aqui alguns exemplos, para que o aluno faça uma idéia da riqueza e da vitalidade da pregação profética.

3.2.1. Gêneros derivados da sabedoria tribal e familiar – desde tempos muito antigos, a família, o clã, a tribo empregaram os recursos mais variados para inculcar o bom comportamento, para refletir sobre a realidade que rodeia as crianças e adultos: exortação, interrogação, parábola, alegoria, benção e maldições, comparações. De todos eles há exemplos nos profetas.

Quando Natã vai denunciar o rei Davi pelo adultério com Betseba e o assassinato de Urias, não aborda o tema diretamente, começa com uma parábola (2Sm 12,1-7). Quando Ezequiel acusa o rei de Judá porque, depois de ter prometido fidelidade ao rei da Babilônia, violou o juramento e procurou aliança com os egípcios, o faz mediante uma alegoria (Ez 17,1-9). Ao ambiente sapiencial pertencem também a benção e a maldição que encontramos em (Jr 17,5-8). Outro gênero freqüente entre os sábios, a comparação, aparece em (Jr 17,11). A pergunta é uma forma de questionar, refletir e inculcar uma conclusão inevitável; Amós a emprega em 3,3-6.

3.2.2. Gêneros derivados do culto – podemos classificar aqui: hinos, orações, instruções e, talvez, os oráculos de salvação.

Em Amós nos deparamos com um fato curioso. Ao longo do livro há sinais do que nos parecem fragmentos de um hino ao poder de Deus (4,13; 5,8-9; 9,5-6). É possível que não tenha sido composto por Amós, mas por ele utilizado e distribuído ao longo do livro, em momentos – chaves, para sublinhar a onipotência divina. Em Isaías encontramos um hino de primeira mão, composto pelo profeta ou pelo redator do livro (Is 12).

A instrução é um gênero típico do culto. É usada pelo sacerdote para solucionar problemas concretos apresentados pelos fiéis. Os profetas também a utilizam, ainda que, como no caso de Amós, o façam com intenções distintas, em tom irônico (Am 4,4-5).

Como exemplo de oração citarei o de Jeremias, quando compra o campo de seu primo Hanameel. Em momentos difíceis, quando Jerusalém é assediada pelo exército babilônico, o profeta compreende que está compra absurda, o pior investimento econômico, é vontade de Deus. Depois de assinar o contrato, reza ao Senhor pedindo-lhe explicação do mistério (Jr 32,16-25). A resposta de Deus vem mais adiante (32,43).

Mais discutível é o oráculo de salvação, que alguns não consideram próprio do culto, mas de um contexto de guerra, quando um sacerdote ou profeta anunciava a vitória em nome de Deus e injetava animo e coragem nas tropas. Este gênero é muito usado pelo Dêutero-Isaías, (por exemplo, Is 41,8-16).

3.2.3. Gêneros derivados do ambiente judicial – Às vezes os profetas empregam o discurso acusatório, a formulação casuística, ou alguns elementos destes gêneros, para inseri-los num contexto mais amplo. Por exemplo, Ez 22,1-16 contém as acusações típicas do fiscal num processo.

Neste contexto judicial se situa também a enumeração de uma séria de comportamentos justos, que termina com a declaração da inocência de quem vive de acordo com eles (Ez 18,5-9). E este espírito jurídico, tão acentuado em Ezequiel, é o que o leva a outros exemplos de formulações casuísticas (Ez 18,10-17).

Entre os gêneros tomados do âmbito judicial, um dos que mais interessou os comentaristas é o do requisitório profético (Ez 18,10-17).

3.2.4. Gêneros derivados da vida diária – incluo aqui uma série de cantos que surgem nas mais diversas situações da vida: amor, trabalho, morte. O famoso “Cântico da vinha” de Isaías é uma canção de amor (Is 5,1-7). Ezequiel oferece um exemplo de canção do trabalho doméstico, realizado por uma dona de casa, que lhe servirá para comparar com o futuro de Jerusalém (Ez 24,3—5.9-10). Em outra ocasião pronuncia um oráculo que pode se chamar de canto da espada (Ez 21,13-21).

Entre estes cantos que surgem em diferentes momentos da vida, o mais importante e mais freqüente é a elegia, composta por ocasião da morte de um ente querido, e que os profetas utilizam para descrever a trágica situação do povo no presente ou no futuro. A mais antiga e concisa está em Amós (5,2-3). Elementos elegíacos e alegóricos se unem um no outro texto de Ezequiel para falar da situação dos últimos reis judeus (Ez 19,1-9).

Muitos relacionados com a elegia são os “ais. “Ai! “Ai!” são os gritos preferidos pelas carpideiras no acompanhamento de cortejos fúnebres. Os profetas os utilizam para indicar que determinadas pessoas ou grupos se encontram às portas da morte, por causa de seus pecados (Is 5,7 – 10.20; Hab 2,7-8).

3.2.5. Gêneros estritamente proféticos – dois casos merecem especial atenção: o oráculo de condenação dirigido a um indivíduo e o oráculo de condenação contra uma coletividade. Ambos constam de diversos elementos, mas são essenciais a denúncia do pecado e o anúncio do castigo.
Nas tradições de Elias há exemplos significativos do oráculo de condenação contra um indivíduo. Quando o rei Acab se apodera da vinha de Nabot, depois de assassiná-lo, o profeta vai ao seu encontro e o interpela:
“Mataste e ainda por cima roubas! Por isso, diz o Senhor: no mesmo lugar em que os cães lamberam o sangue de Nabot, os cães lamberão também o teu”. (1Rs 21,19).

Noutra ocasião, o rei Ocozias, enfermo, manda consultar um deus pagão. Elias intervém de novo:
“porventura não há um Deus em Israel, para mandares consultar a Baal Zebub? Por isso, diz o
“Senhor: não descerás do leito ao qual subiste, mas com certeza morrerás” (2Rs 1,3-4).

Esta formulação tão sucinta a encontramos também em Amós, quando enfrenta o sumo sacerdote de Betel, Amasias: “Tu dizes: “Não profetizarás contra Israel!”Por isso, assim diz o Senhor: Tua mulher se prostituirá na cidade, teus filhos e tuas filhas cairão pela espada, e tua terra será dividida com a trena e tu morrerás em terra pagã” (Am 7,16-17).

Nestes casos, embora as situações sejam distintas, se usa sempre a mesma estrutura. Denúncia (“assassinar e roubar”, “consultar Baal Zebub”, proibir profetizar”)e o anúncio do castigo (que sempre é a pena de morte), precedido pela chamada fórmula do mensageiro (“assim diz o Senhor”).

Do que se disse até aqui não se pode deduzir que o profeta, ao condenar um indivíduo, siga sempre este esquema, sem variantes. Às vezes ocorre a metáforas para anunciar o castigo, como faz Isaías em seu oráculo contra o mordomo do palácio Sobna (Is 22,15-18).
O oráculo de condenação individual é breve, direto e pronunciado na presença do interessado. O oráculo de condenação contra uma coletividade se dirige a todo o povo, ou a um grupo, ou ainda às nações estrangeiras, e se desenvolve como o anterior, apenas com um horizonte mais amplo.

A acusação abrange um grande número ou uma série de faltas. Geralmente consta de dois membros: primeiro a denúncia de forma geral, o segundo ataca um pecado concreto. Por exemplo:
“Por três crimes de Damasco, e por quatro, não a perdoarei; porque esmagou Galaad com debulhadoras de ferro” (Am 1,3).

O anúncio do castigo também tem duas partes: intervenção de Deus e conseqüências. No exemplo seguinte, os três primeiros versículos descrevem a ação de Deus; o último, as conseqüências:
“Quebrarei os ferrolhos de Damasco,
exterminarei os habitantes do Val-delitos
e o chefe da Casa do Prazer,
e o povo sírio será desterrado para Quir” (Am 1,5)

O oráculo individual é vivo, imediato, o coletivo se torna mais literário, extenso e livre. A criatividade do poeta produz mudanças na estrutura fundamental. Por exemplo, não é raro que inverta a ordem dos elementos, situando o anúncio do castigo antes da acusação, ou as conseqüências antes da intervenção de Deus. Esta mesma criatividade leva o profeta a ampliar o esquema primitivo, a tal ponto que em Jeremias e Ezequiel, às vezes, fica quase irreconhecível.

4. OS LIVROS PROFÉTICOS
4.1. Os livros proféticos - A Bíblia Hebraica inclui neste bloco os livros de Isaías, Jeremias, Ezequiel e os Doze (Oséias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias).

A tradução grega dos Setenta (LXX) traz algumas mudanças na ordem dos Doze e os colocam antes de Isaías. Por outro lado, depois de Jeremias introduz Baruc, Lamentações e Carta de Jeremias. Estes acréscimos são compreensíveis: Baruc foi secretário de Jeremias, as Lamentações são atribuídas pelos LXX a este grande profeta. Não é raro que ambas as obras sejam colocadas depois de seu livro. Na realidade, o livro de Baruc não foi escrito pelo discípulo de Jeremias, e as Lamentações não são suas. Mas estes detalhes não eram conhecidos em séculos passados.

Nossas edições costumam incluir também entre outros livros proféticos Daniel, embora os judeus o coloquem entre os “outros escritos” (Ketubîm). A decisão atual parece certa, já que Daniel é, ao menos em parte, o representante mais genuíno da literatura apocalíptica, filha espiritual da profecia.

O principal problema que estes livros nos oferecem é o de sua formação. A questão é tão complexa, que cada livro mereceria muitas páginas. Para maior clareza, começarei resumindo de uma forma simples os diversos passos deste processo. E depois alguns dados mais detalhados sobre certos livros.

4.2. A formação dos livros – nós nos acostumamos a atribuir a um só autor uma determinada obra literária, sobretudo se no princípio nos dá seu nome, como ocorre com os livros proféticos. Neste caso, porém, não quer dizer que todo o livro proceda da mesma pessoa. Podemos começar recordando o exemplo mais simples: Obadias. Este profeta não escreveu um livro nem um folheto. Uma só página com vinte e um versículos resume toda a sua pregação. O normal seria que todas estas linhas lhe fossem atribuídas. Não obstante, os comentaristas coincidem em dizer que os versículos 19-21, escritos em prosa, foram adicionados posteriormente, o estilo e a temática os diferenciam dos anteriores. Quem enxertou estas palavras? Não sabemos. Talvez um leitor que viveu vários séculos depois de Obadias.

Se a mensagem mais curta de toda a Bíblia traz problemas insolúveis, imaginem a paciência de que vamos precisar para estudar os 66 capítulos de Isaías, os 52 de Jeremias, ou os 48 de Ezequiel. Limitando-nos a idéias gerais, e simplificando muito, podemos indicar as seguintes etapas na formação dos livros proféticos.

4.3. A palavra original do profeta – normalmente, o primeiro seria a palavra falada, proferida diretamente diante do público, e que depois seria documentada por escrito. Às vezes, entre a proclamação da mensagem e sua redação podem ter passado vários anos, como indica o cap. 36 de Jeremias, o mais sugestivo sobre os primeiros passos na formação de um livro profético. Depois de situar-nos no ano 605 a.C no ano quarto de Joaquim, filho de Josias, rei de Judá, nos diz que o profeta recebeu a seguinte ordem do Senhor:
“Toma um rolo e escreve nele todas as palavras que te dirigi a respeito de Israel, Judá e todas as nações, desde o dia em que comecei a falar-te, no tempo de Josias, até hoje (...). Então Jeremias chamou Baruc, filho de Nerias, que escreveu num rolo, conforme o ditado de Jeremias, todas as palavras que Javé lhe dirigira”. (Jr 36,1-4)

O homem moderno pode estranhar que se deixe passar tanto tempo entre a pregação e a redação. Se Jeremias recebeu sua vocação no ano de 627, como parece o mais provável, é curioso que só receba ordem de escrever o conteúdo essencial de sua mensagem vinte e dois anos mais tarde. A mentalidade da época era bem diferente. Jesus, séculos mais tarde, por exemplo, não deixará uma só palavra escrita.

Voltando a Jeremias, o volume redigido tem um destino fatal. Depois de ser lido na presença de todo o povo e de altos dignitários, termina jogado ao fogo pelo rei Joaquim. Deus não se dá por vencido e ordena ao profeta:

“Toma um rolo, escreve nele todas as palavras que estavam no primeiro rolo, que Joaquim, rei de Judá, queimou” (v28).
O capítulo termina com este dado interessante:
“Jeremias tomou outro rolo e deu ao escriba Baruc, filho de Nerias, que nele escreveu, ditadas por Jeremias, todas as palavras do livro que Joaquim, rei de Judá, tinha queimado. E ainda foram acrescentadas muitas palavras com estas” (v32).

Entre o primeiro volume e o segundo já existe uma diferença. O segundo é mais extenso. Contém o núcleo básico do futuro livro de Jeremias. Os comentaristas tentaram de todos os modos saber quais dos capítulos atuais se encontravam naquele volume primitivo. Não existe acordo entre eles, e não faz sentido, agora, perder-se em hipóteses. O importante é perceber que o livro de Jeremias é fruto de uma atividade pessoal do profeta. Algo parecido deve ter ocorrido com Isaías, Amós, Oséias, etc. É provável que a palavra falada desse lugar a uma série de folhas soltas.

4.4. A obra dos discípulos e seguidores – o seguinte passo será dado por um grupo muito complexo que, na falta de um termo mais preciso, chamaremos de discípulos e seguidores. Estamos acostumados a uma relação muito direta entre o mestre e o discípulo: contato físico, anos de companhia e aprendizagem.

Esta relação direta entre mestre e discípulo pode ter havido, talvez, com alguns profetas. Mas, na redação dos livros, intervirão não só este tipo de discípulos, como também pessoas muito afastadas temporalmente do profeta, embora dentro de sua influência espiritual.

Discípulos e seguidores contribuíram especialmente em três direções: 1) redigindo textos biográficos sobre o mestre; 2) reelaborando alguns de seus oráculos; 3) criando novos oráculos. Oráculos são seres humanos que fazem predições ou oferecem inspirações baseados em uma conexão com os deuses. No mundo antigo, locais que ganharam reputação por distribuir a sabedoria oracular também se tornaram conhecidos como "oráculos", além das predições em si mesmas.

1) Do primeiro temos um exemplo notável no episódio do conflito de Amós com o sumo sacerdote de Betel, Amasias (Am 7,10-17), o relato não foi escrito pelo profeta, já que se fala dele na terceira pessoa. O caso mais importante e extenso, porém, é o dos capítulos 34-35 de Jeremias, procedem ou não de seu secretário Baruc.
2) O segundo caso – reelaboração de antigos oráculos – pode acontecer em épocas muito distintas, até a séculos de distância do profeta primitivo. Às vezes basta uma pequena glosa final para que um antigo oráculo de condenação adquira um matiz de esperança e consolo.

Um exemplo iluminará este procedimento. Lá pelo ano de 725 a.C, o Reino do Norte (Israel) decidiu rebelar-se contra a Assíria. Para Isaías se trata de uma loucura que custará caro ao povo. Assim diz em 28,1-4. “A capital do norte, Samaria, é descrita pelo profeta como uma “coroa orgulhosa”, “flor caduca dos bêbados de Efraim”, que a estão levando à ruína. Ainda que o texto não fale expressamente de rebeliões nem de revoltas, dá a entender que o imperador assírio (“um homem forte e vigoroso”) acabará com o esplendor da cidade:

“Ele os atira ao solo com a sua mão, a orgulhosa coroa dos bêbados de Efraim será calcada aos pés”.

E assim aconteceu. No ano 725 Samaria foi assediada, conquistada em 722, deportada em 720. Com isso se cumpriu a palavra profética. Mas esta não era a última palavra de Deus, que permanece fiel ao seu povo. E um discípulo adiciona mais tarde dois versículos (5-6) recorrendo às metáforas da coroa e da flor, embora lhes dê um novo sentido:
“Naquele dia, o Senhor dos exércitos é que será uma coroa de esplendor e uma grinalda magnífica para o resto do seu povo, e um espírito de justiça para aquele que exerce o julgamento, e a força daqueles que repelem o ataque na porta”.

Agora dirige aos israelitas do norte uma palavra de consolo. O texto já não fala de “embriagados de vinho”, mas de homens responsáveis, capazes de julgar e defender seu povo. E seu timbre de glória não é uma cidade, mas o próprio Senhor, “coroa de esplendor e grinalda magnífica”.

Neste exemplo, a reelaboração não afetou diretamente o texto primitivo. Respeita-o em sua literalidade, ainda que o acréscimo modifique ou complete seu sentido. Em outras ocasiões, essas glosas têm uma intenção mais profunda. Como exemplo o discutido caso de Is 7,15. O profeta falando do rei Acaz, dá-lhe o famoso sinal do nascimento do Emanuel:

“Eis que a jovem concebeu e dará luz um filho
e pôr-lhe-á o nome de Emanuel.
Ele se alimentará de coalhada e de mel
até que saiba rejeitar o mal e escolher o bem.
Antes que o menino saiba rejeitar o mal e escolher o bem,
a terra, por cujos dois reis tu te apavoras, ficará reduzida a
um ermo” (Is 7,14-16).

Prescindindo de alguns intricados problemas de tradução na última frase, há algo que chama a atenção nesse texto. Os temas que se desenvolvem são os seguintes: nascimento e imposição do nome (v14), dieta do menino (v15), explicação do nome (v16). Parece claro que as frases relativas à dieta do menino (v15) interrompem a seqüência lógica e foram acrescentadas mais tarde. Ao menos, assim pensam muitos comentaristas. Quando nos deparamos com casos como este, não basta detectar a glosa, (Diz-se de um texto, em geral de poucas palavras, que não pertence à obra original do autor, mas foi acrescentado por outros (glosadores). A finalidade de uma glosa é explicar o texto existente. Inicialmente as glosas eram escritas à margem do texto. Mais tarde os copistas as introduziram no próprio texto. As modernas edições críticas dos textos originais, que são a base para as traduções vernáculas modernas, procuram eliminar tais glosas)é preciso descobrir seu sentido. Neste exemplo concreto, parece que pretende sublinhar as características portentosas do menino, já que se alimentará com uma dieta paradisíaca.

Rastrear as numerosas reelaborações do texto é uma tarefa interminável, que infelizmente se presta a muito subjetivismo. É fácil atribuir a um autor posterior o que na realidade procede do primeiro profeta.

4.5. As adições posteriores – ainda depois das etapas que temos descrito, os livros proféticos continuaram abertos a retoques, acréscimos e inserções. Tomando como exemplo Isaías, é possível que, depois de estar estruturado em seu bloco inicial, se tenham acrescentado os capítulos 40-66. Para alguns, inclusive, o último a entrar no texto de Isaías foi a “Escatologia” (24-27). Este processo se repete no livro de Zacarias, onde distinguimos o “Proto-Zacarias” (1-8) e o “Dêutero-Zacarias” (9-14), sem excluir a possibilidade que este último seja obra de outros autores.

Mas podemos assegurar que em torno do ano 200 a.C os livros proféticos já tinham a redação que possuímos atualmente. Assim se deduz da citação das cópias encontradas em Qumran.
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GLOSSÁRIO:
Betel: Betel, em hebraico (בית אל)(Bêṯ-ʼĒl) pode se escrito também Beth El ou Beth-El, significa literalmente "Casa de Deus". É o nome de uma cidade cananéia da antiga região da Samaria, situada no centro da terra de Canaã, a noroeste da cidade de Ai, na estrada para Siquém, a 30 km ao sul de Silo e a 20 km ao norte de Jerusalém. A cidade de Betel é a mais mencionada na Bíblia, depois da cidade de Jerusalém.
Guilgal: Gilgal é um local mencionado na Bíblia Hebraica e está intimamente associado com a idéia da relação especial de Israel com Deus. Quando Josué conduziu o povo para a terra prometida, eles construíram um memorial em Gilgal (Josué 4:19-20). No mesmo lugar, os filhos de Israel foram circuncidados para mostrar que estavam deixando para trás toda a influência corrupta do Egito (Josué 5:1-9). O povo ficou em Gilgal para celebrar a primeira Páscoa na nova terra (Josué 5:10), e mais tarde vieram juntos a esse lugar para dividir a terra que Deus lhes havia dado (Josué 14:6). Gilgal, como Betel, representava a presença de Deus entre os israelitas. Gilgal é o lugar da Aliança, é o lugar de formar profetas. O primeiro lugar do acampamento Israelita após a travessia do Rio Jordão . Ele também foi um lugar de sacrificios (I Sam. 10:8, 11:15, 15:12)
Ázimos: Pão ázimo ou asmo, matzo (ídiche) matzá (hebraico), מַצָּה, é um tipo de pão assado sem fermento, feito somente de farinha de trigo (ou de outros cereais como aveia, cevada e centeio) e água. A preparação da massa não deve exceder 18 minutos para garantir que a massa não fermente. De acordo com a tradição judaico-cristã, pão ázimo foi feito pelos israelitas antes da fuga do Antigo Egito, por que não houve tempo para esperar até a massa fermentar.

sábado, 23 de abril de 2011

Livros poéticos e sapienciais do Antigo Testamento

Os Livros poéticos e sapienciais do Antigo Testamento são: , Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Sabedoria e Eclesiástico. Foram escritos, em sua maioria, em linguagem poética, fazendo uso de metáforas, e têm um caráter de ensinamento sobre a Sabedoria. Eclesiástico e Sabedoria, são deuterocanônicos, e por isso não constam na Bíblia Protestante, embora estejam presentes na Bíblia Católica. Esses livros apresentam a sabedoria e a espiritualidade de Israel.

Em Israel, a sabedoria não é a cultura conseguida graças à acumulação de conhecimentos, mas o bom senso e o discernimento das situações, adquiridos através da meditação e reflexão sobre a experiência concreta da vida. Trata-se de algo que se aprende na prática e que leva à arte de viver bem. Assim, nos livros sapienciais encontramos reflexões que brotam dos muitos problemas que povoam o dia-a-dia da vida de qualquer pessoa que busca o caminho da realização e felicidade.

Porque esse escritos são, sob certos aspectos, bastante “não bíblicos”. O livro de Jó fala de um homem que é levado a passar por horríveis sofrimentos como resultado de uma disputa insignificante entre Iahweh e Satanás, e conta como Jó ignorante sobre a disputa, mas muito consciente do fato de não merecer esses sofrimentos apresenta questões e desafios ao Todo Poderoso que beiram a blasfêmia. O Eclesiastes vai além de Jó no questionamento da justiça de Deus. Ele apresenta a desoladora perspectiva segundo a qual os seres humanos não podem entender quase nada sobre este mundo e sobre o seu lugar nele, com exceção do fato que terão o mesmo fim dos animais, a morte e o túmulo. E a melhor maneira de se ocuparem diante desse fim é apenas comer, beber e se alegrar. E os Provérbios, embora não tenham um espírito negativo semelhante ao dos dois primeiros (Jó – Eclesiastes), e apesar de advertirem alegremente que o primeiro princípio da sabedoria é ter um adequado respeito por Deus, parecem notavelmente mundanos em seus conselhos sobre a condução da própria vida. Eles sem dúvida dão pouquíssima atenção às formas adequadas de culto religioso ou ao êxtase e desespero de uma alma comungando com Deus, bem como aos grandes fatos da relação de Israel com sua divindade, Iahweh.

Sendo tão distintos do resto do AT (tendo sido chamados por alguém de “corpo estranho” na Bíblia), como pode sua existência ser explicada?

Tal como ocorre como a maioria dos outros livros vetero-testamentários, quase nada se pode dizer sobre os indivíduos que os compuseram, não há dúvida de que Salomão não escreveu, ao contrário do que sustenta a tradição, nem os Provérbios nem Eclesiastes. Mas embora não saibamos quem foram os autores, sabemos alguma coisa sobre o grupo do Antigo Israel a que pertenceram os autores, um grupo chamado simplesmente de “sábios”. Carecendo de análises sociológicas contemporâneas de Israel dessa espécie, só temos como fonte de informação sobre os sábios aquilo que eles mesmo escreveram e algumas referências dispersas nos profetas e nos escritos históricos. Contudo, usando com cuidado essa informação, os pesquisadores conseguiram avançar de maneira considerável na direção da definição dos padrões básicos de pensamento da escola sapiencial e dos valores para cuja promoção as suas obras literárias foram escritas.

Em nosso exame da matéria, é melhor começarmos negativamente, ou seja, mostando aquilo com que os sábios não estavam preocupados, ou, ao menos, aquilo sobre o que não tinham interesse de escrever.

Devemos acentuar que o que diremos aqui só se aplica aos sábios do período de um século ou dois antes e depois do exílio na Babilônia no século VI a.C., isto é, aos que produziram os livros dos Provérbios, de Jó e o Eclesiastes. Os escritores sapienciais dos séculos ulteriores (seguintes) tinham visões que diferenciam, em vários pontos importantes, dos de seus predecessores (antecessor).

Em primeiro lugar, os sábios dos séculos de antes, durante e depois do exílio davam pouca importância ao “culto”, quer dizer, à religião organizada de Israel. Há somente referências de passagem a observâncias cúlticas nos três livros sapiênciais canônicos. Num ponto dos Provérbios que é a única alusão positiva a questões cúlticas de todo o livro, o leitor é aconselhado a honrar Iahweh “com teus haveres/com as primícias das tuas rendas” (Pr 3,9-10), mais tarde, porém, há um conselho mais característico: “Praticar a justiça e o direito; isso é mais agradável ao Senhor que sacrifícios”. (Pr 21,3).

No Eclesiastes, se ignoramos as várias passagens inseridas por escribas e editores ulteriores (seguintes) num esforço de atenuar a dura visão de vida do livro, o único comentário do autor sobre a religião é que quem participa das atividades cúlticas deve fazê-lo com plena consciência daquilo que pratica e dos compromissos que faz.

Em Jó, a única atividade cúltica que merece referência está no prólogo e no epílogo em prosa, em que ficamos sabendo que Jó faz sacrifícios e reza a Iahweh em favor de seus filhos e amigos, mas, na ampla parte poética do livro, em que Jó e os seus amigos investigam com toda a minúcia as maneiras pelas quais o homem pode pecar e, assim, merecer o seu sacrifício, não há uma única menção a isso. Nesses três livros, é quase como se a religião organizada fosse tida por certo como algo que não influi nas questões realmente profundas da vida.

Em segundo lugar, os sábios parecem não ter tido espírito nacionalista. As suas obras nada têm da rejeição dos historiadores deuteronomistas a todas as coisas e pessoas não-israelitas, nenhum vestígio da desconfiança dos profetas diante de outras nações com as quais os líderes de Israel pudessem desejar fazer aliança. Os sábios não se dirigiam, ao contrário dos deuteronomistas e dos profetas, a Israel como povo, não encontramos neles nenhum “Ouve, ó Israel”, falando antes a seres humanos individuais preocupados com a natureza do mundo e com a maneira pela qual se leva uma vida satisfatória. Essa espécie de preocupação não era só israelita, mas universal, na verdade, era o ponto central da literatura sapiencial das nações vizinhas, literatura essa que os sábios de Israel devem ter conhecido bem, graças ao contato com seus pares profissionais dessas nações. Um deles, um livro egípcio de instrução dirigido a um jovem, foi a fonte de uma passagem de Provérbios 22 e 23. Obras bem parecidas com Eclesiastes e Jó, e que os autores desses livros podem ter conhecido foram escritas na Mesopotâmia já no começo do segundo milênio a.C. Podemos supor que os sábios de Israel se considerassem parte da tradição que produziu essas obras e membros de um corpo internacional de sábios.

Em terceiro lugar, assim como não cuidavam do lugar de Israel entre as nações, os sábios não estavam voltados para o seu passado, para o seu nascimento por meio de uma aliança entre Iahweh e Abraão, para o seu renascimento por meio da ação de Iahweh, que resgatou o seu povo do Egito e deu a Lei no Sinai, para a conquista da terra de Canaã nem para o estabelecimento de Davi num trono que pertenceria para sempre a ele e aos descendentes.

Como já observamos, talvez tenham sido os membros da escola sapiencial do século X a.C. os autores da história oficial de Israel, mas os seus sucessores, de várias centenas de anos depois, que escreveram os Provérbios, Jó e Eclesiastes, não se referem aos fatos dessa história em suas obras. Estes prestaram o seu tributo ao filho de Davi, Salomão, mas não se tratou de uma questão de história, eles só recorreram a Salomão por causa de sua reputação de sabedoria: ele era, por assim dizer, o santo padroeiro dos sábios, tal como Davi fora o santo dos músicos.

Em quarto lugar, embora supusessem a existência de uma divindade que criara e sustentava o mundo, os sábios não tinham uma concepção de um relacionamento pessoal entre o fiel e Deus. Portanto, os seus livros não têm reflexões do tipo de relação individual com Iahweh que encontramos nos Salmos e nos pronunciamentos dos profetas, e não há, em conseqüência, nenhum “Assim diz Iahweh” a ser dito aos seus conterrâneos. Jó reconhecidamente clama a Deus em sua angústia e de fato recebe uma resposta, mas essa resposta toma a forma de uma avassaladora série de perguntas destinadas a humilhá-lo, para esmagá-lo até a insignificância por ser ele, tão somente, um homem. No livro de Jó e nos demais escritos sapienciais, não há verdades especiais reveladas dos céus, as interrogações humanas para as quais não se podem obter respostas a partir da observação da natureza e da sociedade humana devem permanecer para sempre irrespondidas.

Por conseguinte, os escritores sapiencias clássicos tinham, em vários aspectos significativos, uma perspectiva consideravelmente distinta das dos autores responsáveis pelo Pentateuco, pelos escritos históricos, pelos livros proféticos e pelos Salmos. Para os sábios, o livro de Deus, completo e imutável, era o mundo das coisas criadas e das relações humanas. E era a observação das coisas tal como são, e não a revelação divina, que produziria o conhecimento e, em última análise, depois de anos de experiência e de contemplação, a sabedoria. Dois dos livros sapienciais, Provérbios e Eclesiastes, teriam servido diretamente a essa função, o livro de Jó tê-lo-ia feito indiretamente, mediante a exposição desveladora de expectativas comuns, mas falsas, sobre o comportamento e suas conseqüências. Embora os escritores sapienciais não tirassem as suas conclusões da religião e pouco tivessem a dizer sobre ela, podemos supor que poucos sábios israelitas se opusseram aos valores religiosos da sua sociedade e que, provavelmente, a maioria se sentia bem à vontade com eles. Pode-se presumir que os seus conselhos aos jovens tenham coesistido facilmente com o saber tradicional dos sacerdotes e com a pregação dos profetas.

Embora não fossem entusiastas religiosos, os sábios acreditavam na existência de Deus e em sua criação de um universo ordenado. A maioria deles teria aceito os princípios éticos da religião tradicional, sendo o mais básico o princípio de que há, no mundo ordenado de Deus, um vínculo necessário entre o nosso comportamento e a nossa sorte na vida: quem age bem prospera, quem age mal sofre. A aceitação desse princípio ético básico atingia a maioria dos escritores sapienciais, mas não a todos. Os três livros que temos diante de nós: Provérbios, Jó e Eclesiastes, podem ser examinados como prova em termos da concepção dos seus autores quanto à questão da determinação da nossa sorte na vida pelo nosso comportamento.

Os Provérbios contêm materiais compostos por alguns autores ao longo de séculos, mas tomam, em sua versão final, a forma de livro de instrução dos jovens sobre a natureza do mundo e sobre a conduta necessária ao sucesso nele. Não causa surpresa, pois, descobrir ao longo do livro que sempre se supõe, mencionando-se com freqüência, uma ligação necessária entre o comportamento e a fortuna na vida. O público-alvo do livro deveria extrair dele a compreensão de que colheria o que semeasse, tanto no plano moral (o bem produz o bem/o mal produz o mal) como no prático (o planejamento e o esforço inteligentes levam à prosperidade/o descuido e a preguiça levam à ruína). Consideremos algumas observações e advertências típicas dos Provérbios:
Nenhuma desgraça abate o justo,
mas os iníquos recebem o seu quinhão de adversidade. (12,21)

O caminho da honestidade leva à vida,
mas há um descaminho que leva à morte. (12,28)

As dores do trabalho dão proveito,
mas o mero falar traz pobreza. (14,23)

Por todos os Provérbios, esse princípio simples de causa e efeito pode ser considerado básico, para o pensamento dos seus autores, a prudência e a retidão levam na verdade, devem levar ao sucesso, porque assim funcionam as coisas neste mundo e porque a vigilante atenção de Deus garante que assim seja. O jovem perceptivo aprende esse princípio e o emprega para dar forma ao tipo de sucesso que deseja alcançar. Tudo vai muito bem na teoria, é verdade, mas mesmo os mais comprometidos com o princípio não podem negar que nem sempre dá certo na vida real.

Eis aqui, vamos supor, um infeliz órfão que dificilmente pode ser considerado merecedor da perda dos pais, temos ali uma pobre viúva cujo marido pereceu sem nenhuma culpa dela, vemos adiante um bom comerciante cujas mercadorias foram destruídas de súbito por um incêndio decorrente de um relâmpago. Que dizer a essas pessoas, que sofrem sem ter culpa? Os Provérbios têm surpreendentemente pouco a lhes falar.

Diante disso, a única tentativa do livro de solucionar o problema do sofrimento imerecido é deixar implícito que isso não existe: quem sofre deve ter pecados que os outros não vêem e de que nem ele mesmo pode aperceber-se. Portanto, deve-se entender o seu sofrimento como o modo divino de reprová-lo e castigá-lo para o seu próprio bem. Imediatamente depois da passagem citada acima, em que se diz ao leitor que honre a Iahweh com seus haveres a fim de alcançar a prosperidade, encontramos mais um conselho:

Filho meu, não rejeites a correção do Senhor
nem tomes por mal a sua reprimenda,
porque o Senhor repreende aqueles a quem ama
e pune o seu filho querido (Pr 3,11-12)

Explicando o sofrimento do devoto em termos de castigo, os sábios do livro dos Provérbios podem manter a validade do seu princípio ético de causa e efeito, e , ao mesmo tempo, a justiça da divindade que está por trás dele. O mesmo princípio é exposto pelos amigos que se reúnem ao redor de Jó em seu tempo de provação. Eles dizem a esse homem aparentemente devoto que perdeu subitamente a prosperidade, a família e a saúde:

Pois, considera, que homem inocente já pereceu?
E onde viste o homem reto exterminado?
Tenho visto: os que lavram o delito e semeiam o mal
segam o que plantaram (Jó 4,7-8)

O conselho dos amigos a Jó é que ele “não rejeite o castigo do Todo – Poderoso” (Jó 5,17), a implicação é que ele não é tão inocente quanto parece ou pensa ser. Mas essa resposta fácil não lhe serve, ele não tem culpa e tem ciência disso. Para ele, a verdade parece evidente, e é uma coisa terrível dizê-la: Deus simplesmente não é justo!
...por isso eu digo:
“Ele faz perecer o justo e o culpado”.
Quando um flagelo espalha num repente a morte,
ele zomba da desgraça dos inocentes. (Jó 9,22-23)

Em todo o seu longo debate com aqueles que o “confortam”, Jó exige que Deus apareça (no tribunal, por assim dizer) e declare claramente que mal foi cometido por Jó para produzir tal má sorte.

Quando, perto do final do livro, o Todo – Poderoso se dirige a Jó, a sua argumentação pretende fazê-lo entender que o seu pensar sobre o sofrimento humano e a justiça de Deus, ou a falta dela, é profundamente errôneo. Abatido, Jó confessa ter dito tolices sobre assuntos demasiado grandes para ele, mas, surpreendentemente, tão logo o faz, Deus diz aos conselheiros rigidamente ortodoxos: “Vós não dissestes de mim o que era reto, ao contrário do meu servo Jó (42,7).

Diante dessa afirmação, devemos compreender que os amigos de Jó estavam errados quando defenderam a justiça de Deus e que Jó estava certo ao atacá-la?

Provavelmente não.

O autor apenas foi tão longe em sua exploração poética do insolúvel problema do sofrimento quanto o pôde. O velho trecho em prosa que o introduziu no assunto serve agora para tirá-lo dele, mas ao preço de uma grave inconsistência.

Jó alega que não há relação entre o bem ou o mal que o homem pratica e o que acontece em sua vida.

O autor de Eclesiastes parte do ponto em que Jó ficou e leva a discussão às últimas conseqüências. Não somente não há garantia de que fazer o bem ou o mal leva boas e más conseqüências para a pessoa, como não há garantia de que qualquer espécie de ação tenha a conseqüência que o praticante pretende alcançar ou pensa que tem o direiro de esperar. A única certeza deste mundo é de que os processos naturais continuarão imutáveis eternamente, nascer do sol, ocaso, nascer do sol, ocaso, e de que a morte sucede à vida. Toda especulação humana sobre causa e efeito nada vale, “porque o destino do homem é o destino dos animais, e a mesma desgraça os espera: como morre um, assim morre o outro” (Eclesiastes 3,19).

E a morte, na visão do escritor, não é por certo um lugar em que todos os erros serão corrigidos, com recompensas e punições distribuídas de acordo com o mérito dos seres humanos em decorrência de suas ações na vida. A morte é a completa aniquilação, para o bem e para o mal, para os homens e para os aminais.

Não vendo satisfações de longo prazo pelas quais seja possível labutar e nenhum sistema agradável de recompensas e punições na vida ou na morte, que tipo de comportamento pode o autor de Eclesiastes recomendar? Bem, algumas situações na vida são claramente melhores que outras, e podemos lutar por algumas satisfações de curto prazo:

É melhor, em tudo e por tudo, ser sábio do que tolo, ter comida e bebida do que ser privado delas, ser jovem do que velho, e, por fim, estar vivo do que morto. Aproveitemos essas poucas coisas boas, não tenhamos grandes expectativas e, de modo geral, vivamos sabendo que logo estaremos mortos.

Nesse ponto, pode parecer ao leitor que o Eclesiastes e os Provérbios têm diferenças tão radicais entre si que mal podem ser considerados advindos da mesma escola de pensamento. Alguns pesquisadores propõem de fato que havia na tradição sapiencial uma dicotomia otimismo/pessimismo.

Mas a verdade simples é que qualquer um de nós, contemplando em sua inteireza o mundo como ele é, pode dar respostas amplamente distintas ao que testemunha e vive. Aspirar o ar agradável de um acolhedor dia de primavera, fruir o afeto de amigos queridos, progredir em termos da realização das metas da nossa vida, nessas circunstâncias, qualquer um de nós pode aconselhar expansivamente os semelhantes a se alegrar, a se animar, a pensar positivamante e, assim conquistar o mundo, afinal uma atitude negativa nunca leva ninguém a lugar nenhum.

Mas, quando o tempo muda para pior, os amigos nos abandonam e as expectativas não se realizam sem que tenhamos culpa, todos podem ficar pessimistas e prontos a aconselhar quem quiser ouvir a partir da idéia de que simplesmente não se pode vencer neste mundo.

A questão não é tomar Provérbios como mero conselho de um sábio num dia bom e o Eclesiastes com o seu conselho num dia ruim, trata-se de fato de essas duas obras representarem os resultados diametralmente opostos do mesmo processo: a investigação filosófica da existência humana com base no raciocínio humano puro e simples. A vida apresenta um amplo espectro de condições, e aos sábios, vale a pena examinar a vida, seja qual for a nossa resposta.

Como dissemos, mesmo o autor pessimista do Eclesiastes tem de admitir que a sabedoria, a mente inquisitiva, que lhe traz melancolia é, não obstante, uma boa coisa para ter. Uma vida não examinada não passa de paraíso de tolos.

O que dissemos até agora se aplica aos três livros sapienciais canônicos (Jó, Eclesiastes, Provérbios), compostos ao longo de alguns séculos na metade do primeiro milênio a.C. há dois outros livros da categoria sapiencial que pertencem aos Apócrifos. O Eclesiástico (a semelhança entre o seu título e os do Eclesiastes é infeliz) foi escrito, provavelmente, perto de 180 a.C., a Sabedoria de Salomão (ou apenas Sabedoria) costuma ser datada de mais ou menos 100 a.C. esses dois livros embora plenos de características típicas da tradição sapiencial, compartilham certos aspectos que os afastam dos três já discutidos.

A esta altura, uma curiosa ironia já deve ter ocorrido ao leitor: dos cinco livros sapienciais que estivemos considerando, os dois mais positivamente religiosos, o Eclesiástico e a Sabedoria de Salomão, não foram admitidos pelo judaísmo antigo no seu cânon da Escritura, ao passo que os três primeiros, embora contivessem muita coisa questionável aos olhos religiosos, o foram. O porquê de os livros como esses dois não terem sido incorporados no cânon judaico se deu pelo fato de serem reconhecidos como obras relativamente recentes, escritas depois de o período de inspiração divina ter, na opinião dos judeus, ter chegado ao fim.

Mas por que os três primeiros foram?

Temos de supor, em primeiro lugar, que foi porque esses três livros tinham um grande atrativo para o judaísmo antigo, provavelmente devido à honestidade com que esses livros trataram das questões da religião e da ética. Sejam quais forem os seus ideais, todo sistema de pensamento tem de enfrentar, de alguma maneira, os problemas da vida em sua vivência e experiência concretas, os autores dos três livros em questão fizeram isso para o judaismo.

Contudo, os ideais não têm de ser submetidos a uma carga excessiva nem escrutinados com demasiado rigor, e esses três livros, independentemente do seu atrativo, não teriam sido considerados dignos nos últimos estágios do processo de canonização se não tivessem sido encontrados, em etapas anteriores desse processo, meios de contrabalançar a sua franqueza ou, ao menos, de interpretar os seus textos de acordo com idéias tradicionais.

O cortante ceticismo do Eclesiastes, por exemplo, tornou-se parcialmente palatável por meio do artifício simples de interpretar com afirmações reais certas observações pias que o autor pretendia ver entendidas ironicamente. Além disso, várias injunções piedosas que os escribas tinham escrito nas margens quando copiavam o texto passaram pouco a pouco a ser entendidas como parte dele (apesar desses sentimentos não terem nenhuma relação com o que os cercava).

Por fim, o Eclesiastes, teve um pós-escrito incorporado por um sábio ulterior que admirou a obra, mas achou que o seu rigor tinha de ser um pouco aliviado. Assim, ele aconselhou os leitores do Eclesiastes, com um grau de garantia que o autor do próprio livro por certo não conseguiu alcançar, do seguinte modo: “Teme a Deus e guarda, seus preceitos: porque este é o dever de todo homem. Porque Deus submete a julgamento todos os nossos atos, e tudo o que está encoberto, o que é bom e o que é mau”. (12,13-14).

Quando consideramos essa mesma espécie de suavização no livro de Jó para torná-lo mais aceitável ao gosto ortodoxo, temos de observar que o rigoroso julgamento da justiça de Deus feito pelo herói foi reprimido pelo próprio autor, quando este levou Jó a admitir, depois de Deus ter-lhe respondido de maneira tão esmagadora, que se excedera e discorrera sobre assuntos além da sua capacidade. E, na conclusão em prosa do livro, como vimos, Jó é elogiado por Deus e os seus amigos, acusados.

Mas, se Deus pôde aprovar as palavras aparentemente blasfemas de Jó, então, diria um leitor ortodoxo do livro, que essas palavras por certo não são tão perigosamente não-ortodoxas quanto parecem. Mas, por razões de coerência, modificou-se o texto do livro séculos que se seguiram à sua composição para torná-lo ainda mais aceitável aos olhos dos pios.

Por exemplo, os pronunciamentos dos capítulos 32-37, feitos por Eliú, um quarto confortador de Jó, que vem sem aviso, de local desconhecido, parecem ser acréscimos ao texto, numa outra tentativa devota de rejeitar o ataque de Jó à justiça divina.

E uma afirmação particularmente rebelde de Jó, em 13-15, foi modificada de maneira a dizer o oposto do que o autor escreveu. O sentido original das palavras de Jó é refletido na leitura da Revised Standard Version (RSV):

Eis que ele vai me matar, não me resta esperança;
contudo, defenderei a minha conduta diante dele.

No início da história do texto, um copista escandalizado alterou ligeiramente o hebraico para produzir o seguinte sentido (New International Version – NIV):

Ainda que ele me mate, nele esperarei:
por certo defenderei a minha conduta diante dele.

Os Provérbios não apresentaram, em nenhum ponto de sua história, a dificuldade que o livro de Jó e o Eclesiastes, mesmo em sua forma editada, mostraram aos olhos do devoto. A única coisa questionável neles, como dissemos, é que a maioria do seu material é formada por conselhos seculares, deste mundo, dirigidos aos jovens, tratando do modo como é o mundo e de como se conduzir nele.

O compilador do livro dedicou-se a tornar esse material mais aceitável para os ortodoxos dando-lhe um novo teor. Como prólogo às coletâneas mais antigas de material sapiencial que estava reunindo numa única obra, ele compôs uma longa introdução (Provérbios 1-9) que apresenta a sabedoria como uma qualidade divina e como o fundamento essencial de uma vida de devoção. Estabelecida essa identificação, mesmo os conselhos profundamente pragmáticos que vêm em seguida podem ser entendidos pelo devoto como apropriados.

A sabedoria de cunho mais popular que encontramos no livro dos Provérbios e no Eclesiástico apresenta-se em forma de coleção de frases curtas, sentenças que ajudam a compreender e a encontrar uma saída nas diversas situações enfrentadas pelo homem comum. Já os livros de Jó, Eclesiastes e Sabedoria são estudos sobre problemas mais profundos e globais, como o sentido da vida, a morte, a justiça, a vida social, o mal, a natureza da sabedoria etc. O Cântico dos Cânticos trata da experiência mais fundamental da vida: o amor humano, símbolo do amor de Deus para com o seu povo.

A espiritualidade de Israel é apresentada no livro dos Salmos, uma coleção de 150 orações que refletem as mais diversas situações da vida do indivíduo e do povo. São verdadeiros modelos para aprendermos a fazer a nossa oração.

Os livros sapienciais mostram que a experiência comum do povo também é lugar da manifestação de Deus e da revelação do seu projeto: Deus fala através da experiência do povo. Estes livros, portanto, trazem o convite para também hoje darmos atenção a nossa vida cotidiana, a fim de aprendermos a articular nossa experiência da vida e da história.

INCURSÃO PELA POESIA EM ISRAEL. A poesia de Israel merece a atenção que lhe vamos dar, embora muito de sua beleza se perca nas traduções. Em numerosas literaturas nacionais, as primeiras obras são freqüentemente poéticas. Assim ocorre na Grécia com a Ilíada e a Odisséia; na Espanha com o Cantar del Mio Cid, na França com a Chanson de Roland; em Portugal com as Cantigas de Amigo e as Cantigas de Amor. Também em Israel as primeiras obras literárias de qualidade pertencem a este gênero.

Algumas são composições breves, como o canto de guerra e de vingança de Lamec (Gn 4,23-24), as súplicas de Nm 10,35-36, o cântico do poço (Nm 21,17-18), a benção de Isaac (Gn 27,27-29), o canto dos trovadores de Hesebon (Nm 21,27-30).

Outras composições são mais amplas. O grande problema é datá-las e situá-las na Antiguidade. A solução não é fácil e os autores discordam muito. Por exemplo, o cap. 3 de Habacuque é considerado dos fins do século X ou anterior a ele por vários autores, entre os quais Albright e Bright; Duhm já o coloca em fins dos séculos IV; Eissfeldt, entre os anos 600 a 587. Basta este exemplo para se ter uma idéia da diversidade de opiniões. Em linhas gerais, os autores de maior peso e que fizeram escola são Duhm e Albright. O primeiro tende a datar qualquer composição em tempos mais recentes, o segundo, baseando-se em análises de tipo gramatical, ortográfica, etc., se inclina para tempos mais antigos. Generalizando, podemos dizer que a batalha foi vencida por Albright.

Ao falar da poesia mais antiga de Israel, parece obrigatório dedicar algumas linhas a seu primeiro grande poeta conhecido, o rei Davi. A tradição bíblica fala freqüentemente de suas qualidades poéticas e musicais (1 Sm 16,14-23), e numerosos Salmos lhe são atribuídos.

O QUE É UM SÁBIO? O nosso termo “sábio” não descreve adequadamente a realidade destes personagens do antigo Israel. Como em todo o Oriente Antigo, os sábios não são pessoas retraídas, absortas em sua ciência, afastadas das preocupações diárias, antes, são profundos conhecedores de sua especialidade, mas grandes ignorantes em outras matérias e sem nenhum sentido prático. Esta caricatura do sábio, bastante difundida entre nós, nem sequer é válida para os “sábios” contemporâneos. Muito menos para os antigos. Ao falar dos sábios de Israel nos referimos a um grupo de pessoas bastante heterogêneo, que abrange desde o educador até o filósofo ou o teólogo, passando pelos preceptores dos príncipes e da nobreza e pelos conselheiros da corte.

Neste sentido pode-se dizer que os sábios se movem em ambiente social elevado, detalhe que pode condicionar o conteúdo e o método de suas reflexões. Mas não nos esqueçamos de que junto a esta sabedoria cortesã existe uma outra popular, simples produto da observação e da experiência dos anos.

A temática do sábio se eleva algumas vezes a níveis altamente teóricos, como quando se trata da origem e da natureza da sabedoria, do problema do mal, do sentido da existência e da atividade humana. Em muito mais ocasiões, porém, se mantém em níveis mais simples e quotidianos: fala da amizade, do orgulho, da educação dos filhos, das formas de governo, do domínio de si, do reto uso do dinheiro. A resposta a todos estes problemas, teóricos e práticos, próprios da humana existência, não a vai buscar em arquivos e bibliotecas, como o historiador, nem num contato direto com a palavra de Deus, como o profeta, mas a busca na experiência humana geral, sem dúvida iluminada em muitos casos pela fé. É o pai e a mãe, são os antepassados, os anos, os que ensinam e transmitem esta sabedoria. O sábio não diz: “Oráculo do Senhor”. Contenta-se com um modesto: “Meu filho, presta a atenção à minha sabedoria, dá ouvidos ao meu entendimento” (Pr 5,1). “Meu filho, guarda os preceitos de teu pai, não rejeites a instrução de tua mãe” (Pr 6,20).

Não se trata de uma ciência infusa nem de uma palavra divina que vem sobre eles como veio sobre Amós ou Jeremias. Há pelo meio um duro esforço de observação e reflexão. “O Pregador (Coélet)...estudou, inventou e formulou muitos provérbios. “Quanto mais sábio foi o pregador, tanto mais sabedoria ensinou ao povo. Estudou, inventou, e compôs muitos provérbios”. (Ec 12,9).

Experiências de séculos e reflexão pessoal se fundem na pessoa e na missão do sábio de Israel. Naturalmente não pode permanecer isolado de sua própria época, da cultura que o rodeia, da problemática provocada pelo contato com povos vizinhos, alguns tão cultos como o Egito, a Babilônia ou a Grécia. É sob este aspecto que o “sábio” afirma que viaja por países estrangeiros provocando o bem e o mal dos homens”, admite esta nova fonte de experiência e conhecimento. Isso porém , não anula a personalidade de cada autor, o contato com os livros sapienciais nos faz descobrir personagens muito diversos. Desde o ancião sensato e modesto em seu ensinamento até o ancião desencantado da vida, como o Qoélet. Otimistas e pessimistas, serenos e apaixonados, homens refinados e outros de escassa cultura vão brotando ao longo destas páginas. Há o que sorri astutamente por trás de sua grande descoberta de que “mais vale morar no canto de um teto do que junto com uma mulher queixosa” (Pr 20,9), e o que formula com maravilhosa sobriedade: “Também entre risos chora o coração” (Pr 14,13). Para captar mais exatamente esta diversidade é preciso considerar a evolução da sabedoria dentro de Israel.

CONCEPÇÃO MODERNA DE SÁBIO. Desde que as ciências, com os novos métodos de estrita observação da natureza (séculos XVI-XVII), se separaram das especulações filosóficas e teológicas, a investigação científica converte-se em atividade intelectual realmente autônoma. É a partir desse momento que geralmente a sabedoria é substituida pela ciência e o sábio identifica-se com o cientista ou o homem de ciência. Interessa-nos agora fazer algumas observações sobre o sábio no sentido moderno, para ver se diferencia muito ou pouco do antigo.

O SÁBIO EM SENTIDO MODERNO. Já não é suficiente definir o sábio como “a pessoa que possui sabedoria”, agora é necessário especificar com mais detalhes. Se fazemos uso da categoria de extensão, por sábio entendemos “a pessoa que possui conhecimentos científicos extensos e profundos”. Nesse sentido, o sábio converte-se em uma enciclopédia ambulante: sabe muito de muitas coisas. Esse é o sentido mais comum de sábio, porém há outro sentido, talvez mais apropriado e científico, certamente menos vulgar. Sábio é a pessoa que se dedica de maneira particular a um ramo do saber, a dedicação, o estudo e a investigação muitas vezes são coroados por resultados muito valiosos.

Segundo o modo de pensar moderno, estes são os verdadeiros sábios. São eles que fazem avançar a máquina imponente do progresso. Destas pessoas costuma-se ter uma imagem muito particular, como Einstein o confirma: “A maioria delas são, em certa medida, extravagantes, pouco comunicativas, e solitárias”, o que não quer dizer que não se sentem integradas à sociedade que as estima e respeita e à qual, em última instância, servem.

O QUE EXISTE EM COMUM ENTRE O SÁBIO ANTIGO E O MODERNO. Há muitas coisas que distanciam o sábio moderno do antigo: por exemplo, o modo e o método de abordagem da natureza, a concepção que se tem do homem e da vida devido a pressupostos de ordem ético-religiosa. Mas também podem ser estabelecidos muitos pontos de contato.

O encontro principal entre o sábio antigo e o moderno tem lugar na concepção humanista de ambos. A visão que um e outro têm da natureza e do mundo geralmente desemboca no humanismo declarado. Para o sábio antigo o homem sempre será o rei da criação, aquilo que dá sentido a tudo quanto existe; para o moderno, tanto a ordem teórica quanto a prática e a moral terminam também no homem.

ISRAEL E SUA CIRCUNVIZINHANÇA – Falamos de Israel já estabelecido como povo e nação em meio a outros povos e culturas. Pequeno em si e insignificante como povo e como território, Israel sempre dependeu dos povos circunvizinhos e dos grandes impérios que sucessivamente o dominaram, desde o Nilo até o Tigre e o Eufrates. De fato, o Oriente Próximo antigo se identifica com o Crescente Fértil ou Meia Lua e com a zona desértica limítrofe.

O Crescente Fértil ou a Meia Lua compreende a imensa região em forma de arco (daí seu nome) que se estende da desembocadura dos rios Eufrates e Tigre, no golfo Pérsico, ao Vale do Nilo, circundando o deserto da Arábia pelo norte e pelo oeste. Nessa região nasceram, desenvolveram-se e morreram as grandes a civilizações antigas da Mesopotâmia e do Egito, bem como as dos povos das regiões intermediárias da Anatólia, Síria e Palestina. É preciso levar em consideração também o deserto, cuja importância na formação do povo de Israel foi notável. Segundo a tradição bíblica, o deserto foi o berço da sabedoria e o ponto de referência dos sábios de Israel.

Israel foi um povo forjado no fogo da história. Assimilando com força singular toda espécie de influxos, jamais perdeu, porém, seus traços essenciais. Interessa-nos estudar aqui somente sua tradição e a literatura sapiencial.

Os livros sapiências da Sagrada Escritura são fruto maduro de um povo adulto. A sabedoria, entretanto, é mais antiga que Israel.

1.1. A literatura sapiencial – as civilizações do Oriente Próximo antigo tiveram seus centros de cultura em seu próprio território: as cortes dos reis e príncipes ou os grandes santuários.

Há séculos o Egito e a Mesopotâmia tem sido considerado o principal berço de nossas culturas ocidentais, documentos escritos datando do terceiro milênio antes de Cristo atestam esse fato. Conhecemos parte da vida real desses povos, a mobilidade de sua gente nos períodos de guerra e em tempos de paz. A cultura não permanecia no lugar de origem, mas percorria as rotas das caravanas e chegava a toda parte. Com os objetos manuais ou de arte chegavam também às formas de pensar e de viver, especialmente com as obras literárias. A elas vamos nos referir nos tópicos seguintes.

1.2. A literatura sapiencial do Egito – desde os primórdios o Egito desenvolveu a literatura sapiencial por meio de instruções ou ensinamentos e também em pequenos poemas. Nas instruções um rei dirige-se ao príncipe herdeiro, um magnata, a seu filho, um escriba, a seu sucessor, todo aluno ou discípulo é chamado indistintamente “filho”. Em alguns poemas abordam-se os grandes temas que preocupam o homem de todos os tempos, os males da vida presente, especialmente as injustiças, as dúvidas perante o que há depois da morte, etc.

Entre as várias instruções que total ou parcial chegaram até nós, destacam-se as seguintes:

A. Máximas de Ptah – hotep. A importância dessas máximas é enorme, podendo ser consideradas o manual mais antigo dedicado à formação integral do filho de um magnata. Tratam praticamente de todos os assuntos peculiares a um funcionário da corte. Literalmente, as sentenças de Ptah – hotep assemelham-se bastante ao Livro dos Provérbios, servindo também de modelo para outros escritos sapienciais. Alguns exemplos:

“A velhice chegou [...], a infelicidade aí está, a debilidade aparece [...]
O que era bom tornou-se mal, todo o sabor desapareceu [...] O que a
velhice causa aos homens é ruim em todos os aspectos”.

“Não responda em estado de agitação.”

“Conhece o sábio pelo que ele sabe, e o nobre por suas boas ações.”

“Deus ama a quem escuta, e quem não escuta é por Deus detestado.”

B. A instrução dirigida a Meri-ka-re. Em uma época de grande instabilidade social, política e cultural, o rei dirigiu-se com serenidade ao seu filho. Seus conselhos são espiritualmente elevados, nobres, como, porém, não refletem exatamente a situação sociopolítica do tempo, é de supor que escribas posteriores intervieram na redação que chegou até nós.

“O charlatão fomenta a discórdia, suprima-o.”

“Se hábil nas palavras para poder convencer, pois a língua é a força do homem.”

“Só se converte em mestre aquele que deseja se instruir.

“Acalme o que chora, não oprimas a viúva, não expulses um homem da terra de seus pais.”

C. A instrução de Duaf-Jeti. A instrução é uma sátira de todos os ofícios manuais. No breve poema desfilam o pedreiro, o ourives, o caldeireiro, o carpinteiro, o joalheiro, o barbeiro, o cortador de cana, o oleiro, o hortelão, o tecedor, o caravaneiro, o embalsamador, o curtidor, o lavadeiro, o passarinheiro e o pescador. Para os que exercem esses ofícios, o autor não tece sequer um elogio, nem qualquer palavra de alento. A finalidade é evidente: fazer com que seu filho se sinta motivado a entrar na escola e tornar-se escriba, por essa razão, enobrece tal trabalho:

“Nada ultrapassa a escritura, é um barco sobre a água”.
“O escriba de nada precisa [...] É a melhor das profissões. Nada na terra
é comparável a ela.”
“Não existe ofício sem patrão, exceto o escriba, pois ele é o próprio amo.”

1.3. A literatura sapiencial da Mesopotâmia – a Mesopotâmia, e de modo geral o oriente geográfico, influenciou Israel de modo marcante, fazendo-se presente em todas as suas instituições, de modo particular no Antigo Testamento. Restringindo-nos à literatura sapiencial, é fato irrefutável a influencia recebida da literatura mesopotâmica.

Os testemunhos sumérios e assírio-babilônicos, classificados pelos especialistas entre os sapienciais, não são tão importantes quanto os do Egito, mas formam um corpo respeitável. Vamos mencionar explicitamente alguns deles.

A. Poema do justo que sofre. O poema, cujas primeiras palavras são “Louvarei o senhor da sabedoria”, é um hino de louvor a Marduc, deus principal da Babilônia, pelos benefícios recebidos. Desde sua descoberta em 1875, esse escrito tem sido considerado o “Jó babilônico” pelas semelhanças com o livro canônico.

O protagonista desse monólogo, devoto de Marduc, questiona por que seu deus permite que um fiel padeça tantas adversidades na vida. O autor relata seus males sem levar em conta os que o causam. Parece que tudo não passa de um assunto particular entre ele e Marduc, senhor dos deuses e dos homens.

“O meu deus esqueceu-se de mim e desapareceu,
minha deusa foi-se embora e permanece distante,
o espírito benevolente que sempre estava junto a mim retirou-se” (I 43-45).

Todos, parentes e amigos, o abandonaram em sua enfermidade. Passado um ano, a situação ainda não melhorou, surgindo uma dúvida que afeta os alicerces de sua fé religiosa: parece que o culto legal e a veneração fiel aos deuses de nada servem, pois a enfermidade segue seu curso irrevogável:

“O meu deus não veio me resgatar, tomando-me pelas mãos; nem
minha deusa teve compaixão de mim ficando a meu lado”.

Chega, porém, a hora da restauração proporcionada pela ação benéfica de Marduc, que “pode devolver a vida a quem está no fundo do poço”. O agraciado reconhece perante todos o dom da saúde e da vida e dá graças a seu benfeitor.

No poema fica claro que a vida inteira e as disposições de Deus são um verdadeiro mistério para o homem:

“Quem pode conhecer a vontade dos deuses do céu?
Quem pode compreender os planos dos deuses do abismo?”

B. Teodicéia babilônica. Trata-se de um poema acróstico (Os acrósticos são formas textuais onde a primeira letra de cada frase ou verso formam uma palavra ou frase. Podem ser simples, com frases ou palavras que não tenham ligação entre si ou podem mesmo ser o encerramento de uma poesia) formado de 27 estrofes, cada uma das quais consta de onze versos começando com a mesma sílaba.

Todo o poema é um diálogo entre um homem que sofre (estrofes ímpares) e seu amigo (estrofes pares). A causa do sofrimento não é a enfermidade, como no poema anterior, mas a situação social do protagonista: é órfão, pobre, desprezado e perseguido. Tem-se aqui um problema filosófico bastante conhecido nos ambientes sapienciais: por que o pobre, o desvalido, apesar de ser justo, piedoso e fiel, não é protegido pelos deuses, ao contrário, é por eles abandonado à própria sorte e às injustiças da sociedade. O amigo confidente responde a cada uma das queixas do aflito, no começo, com os argumentos da tradição ortodoxa, se sofre, é por causa de algum pecado oculto cometido, depois, amparando-se no mistério.

O autor do livro de Jó repetirá mais drasticamente esse mesmo discurso, com exceção da última conclusão do amigo, que responsabiliza os deuses por terem criado o homem mentiroso e por zombarem do pobre e não do rico.

Na última estrofe, as águas revoltas se acalmam, o protagonista pára de se queixar e submete-se ao destino: pede ajuda ao amigo, confessa serenamente sua desgraça e se encomenda piedosamente aos deuses e ao rei:

“Que me ajude o deus que me abandonou;
que se mostre compassiva a deusa [que de mim se esqueceu];
[que se compadeça] o pastor(o rei), o sol do povo”.

C. Disputas e fábulas. Outro tópico importante na literatura mesopotâmica é constituído por fábulas, cujos textos chegaram até nós bastante fragmentados e incompletos. Nelas, plantas e animais discutem entre si: a tamarga e a palmeira, o salgueiro e o loureiro, Nidaba (uma deusa) e o trigo, o boi e o cavalo, a raposa e o cão. Não se trata de meros exercícios literários de fantasia, mas de reflexões sapienciais sobre a vida, amargas sátiras da realidade social.

Cada um dos personagens das fábulas proclama-se o melhor e o mais útil para a vida. São realçadas as qualidades mais afins às propriedades de plantas e animais para o uso e a ornamentação domésticos (a tamarga), para o alimento dos homens (a palmeira); exaltam-se a utilidade do cão e do boi, a fortaleza do leão, a elegância e a força do cavalo, a ferocidade do lobo e a astúcia da raposa.

O desfecho costuma refletir a crua realidade, não correspondendo necessariamente ao que é isto. Assim, no caso da raposa, triunfa a astúcia sobre os demais. As fábulas são, pois, críticas às normas pelas quais se rege a vida na sociedade.

D. Ditos populares, conselhos e provérbios. Esses gêneros, que tanto êxito tiveram nas culturas circunvizinhas a Israel e nas sucessivas até nossos dias, eram conhecidos também na Mesopotâmia. São relativamente poucas as coleções ou grupos desses ditos e sentenças que se conservaram. Apesar disso, provam claramente que o uso do provérbio devia ser muito antigo e familiar nas diferentes culturas que se sucederam na Mesopotâmia. Vejamos alguns exemplos:
‘Fiz caminhar meu irmão, meu irmão caminha como eu”.
“Fiz caminhar minha irmã, minha irmã caminha como eu”.
“a arte de escrever é a mãe dos oradores, pai dos doutos.”

Chegaram até nós muitos outros documentos em que estão contidos numerosos conselhos, advertências, sentenças de sabedoria, soltos ou agrupados. Os que citamos, porém, bastam para dar-nos uma idéia de como floresceram em todo o arco do crecente Fértil ou Meia Lua os gêneros sapienciais. Dessas culturas tão antigas e variadas se nutriam os israelitas durante toda sua longa história.

2. A SABEDORIA EM ISRAEL E SUAS FONTES PRINCIPAIS – Acabamos de tratar da sabedoria, mais concretamente da sabedoria em Israel assim como aparece em sua literatura. Vimos que essa sabedoria não está livre das influências estrangeiras. Ao contrário, alimenta-se positivamente delas. Interessa-nos agora focalizar a sabedoria de Israel em seu ambiente próprio, no contexto local em que nasce e é cultivada. Se possível, seria interessante conhecer seus autores, os sábios, suas raízes mais profundas e o magnífico desenvolvimento e esplendor que ela alcançou com o passar do tempo.

2.1. Sabedoria e sábios – quem são esses personagens anônimos, verdadeiros porta-vozes do sentimento de um povo, que chamamos sábios?

Para nós, hoje, sábio é uma pessoa culta, de conhecimentos amplos ou especializados em um ramo do saber. Na Antiguidade chamava-se sábio a pessoa que possuía mestria, habilidade em qualquer área da atividade humana, designava a pessoa experiente em qualquer coisa, da magia aos trabalhos manuais ou de alta especulação.

Constitui um verdadeiro problema entre historiadores e exegetas do antigo Israel determinar quem eram esses homens chamados sábios que habitavam principalmente a corte dos reis de Judá e Israel. Os autores os qualificam de sábios de muitas maneiras. Trata-se de profissionais e não profissionais que possuíam boa cultura para aqueles tempos. Cobrem um longuíssimo período, que vai do começo, ou talvez antes, da monarquia em Israel ao final do Antigo Testamento e com certeza depois dele.

São identificados com os mestres da corte, educadores dos príncipes, funcionários e oficiais reais, secretários, conselheiros, etc. são os mestres da família de classe alta que vive na corte ou fora dela, ou também os mestres populares, futuros escribas ou peritos na Lei.

O sábio ou mestre de sabedoria era tão estimado em todo o Oriente antigo, da Mesopotâmia ao Egito, que recebeu o nome de pai, e suas lições ou conselhos eram dirigidos aos seus alunos: reis ou plebeus, como aos seus filhos. Disso os sapienciais do Antigo Testamento são eloqüente testemunho (Pr. 1,8; 2,1; 3,1)

Constituíam os sábios uma classe profissional como a dos profetas ou a dos sacerdotes?

Alguns afirmam taxativamente que sim, outros, no entanto, negam ou não se atrevem a opinar. Mais uma coisa ninguém questiona: a grande atividade desses sábios. Além de sua função de conselheiros, administradores, mestres, etc., desenvolveram uma atividade literária cujos frutos chegaram até nós. Houve um momento de florescimento literário que alguns chamaram de Ilustração salomônica. Assim se explicaria melhor a relação da tradição dos livros sapienciais com Salomão, porque em seu tempo se cultivou especialmente a sabedoria. A obra anônima desses sábios, como a de quase todos os autores da Antiguidade semita, foi criadora, transformadora e compiladora. Graças à atividade incansável dos sábios é que herdamos tão precioso legado.

2.2. Luta entre profetas e sábios – o estudo das relações entre sábios e profetas em Israel ocupa lugar de destaque entre os autores modernos, pelo importante papel que uns e outros desempenharam na história daquela região. Em torno do tema Luta entre profetas e sábios se orientaram muitos trabalhos de historiadores do Israel antigo e de exegetas.

Essa luta começa com Isaías, que fustigava os “sábios a seus próprios olhos” (Is 5,21). Os que se consideram sábios são os conselheiros reais. Daí os oráculos de Isaías serem dirigidos contra os sábios de Israel ou os conselheiros do faraó do Egito: Is 29,14; 30,1-5; 31,1-3; contra os conselheiros do faraó: Is 19,11, e, por fim, contra o rei da Assíria: Is 10,13. Isaías não concorda com a política do rei Ezequias e seus conselheiros da corte de origem egípcia. No fundo do pensamento de Isaías, está latente o argumento teológico: os israelitas buscam a solução, sua salvação, nos meios humanos à margem de sua fé em Deus (cf. Is 30,1-5; 31,1-3). Essa tese já fora proposta pelo profeta: “Se não credes, não sobrevivereis” (Is 7,9), e agora, a repete com outras palavras: “Vossa salvação está em vos converterdes e terdes calma: vossa valentia consiste em confiar e manter a tranqüilidade” (Is 30,15).

Com Jeremias, a luta entre profetas e sábios chega a seu ponto culminante. Em sua época, o governo e a direção espiritual do povo estavam nas mãos dos sacerdotes, sábios (anciãos) e profetas (Jr 18,18 fala de sacerdote, sábio, profeta; Ez 7,26, de sacerdote, anciãos, profetas). Jeremias lutará com todos os sacerdotes (20,1-6), os falsos profetas (28), os sábios de Israel (8,8-9; 9,11), os de Temã (49,7) e os de Babel (50,35).

2.3. As fontes da sabedoria em Israel – procuramos ver de que mananciais brotam a sabedoria, ou seja, onde o homem em geral e o israelita em particular se nutre para tornar-se sábio. Englobamos tanto a sabedoria popular como a culta, a profana como a sagrada, visto que nos documentos a que recorremos não se faz distinção entre uma e outra e porque nosso interesse está voltado para a sabedoria como bem apreciado pelo homem. Geralmente os autores se sentem à vontade em admitir que a antiga sabedoria, em sua fase oral ou pré-literária, se enraíza no húmus do povo, entendendo-se húmus como a base sociológica mais ampla de uma população em determinada época.

É na convivência diária de uns com outros que se aprende de fato a driblar os perigos que nos espreitam, a aproveitar as ocasiões oportunas, a utilizar devidamente o tempo e nossas qualidades, ao descobrir o valor das coisas, o sentido dos acontecimentos e da própria vida. Tudo isso, e muito mais, fica para sempre gravado não em pedra ou em madeira, mas em ditados fáceis e breves que o povo sabe apreciar e conservar.

3. A SABEDORIA E O SÁBIO NO ANTIGO TESTAMENTO – Os termos sabedoria e sábio significaram sempre a mesma coisa? Ou podemos supor com razão que houve neles certa evolução? Que, com o tempo, matizes diferentes foram ressaltados?

A concepção moderna de sabedoria/sábio reflete-se principalmente nos dicionários. Vejamos o que nos dizem as grandes autoridades. Segundo o dicionário da Real Academia da Língua Espanhola (DRALE): “Sabedoria. 1. Conduta prudente na vida ou nos negócios. 2. Conhecimento. 3. Qualidade do sábio”. Sábio corre paralelo a sabedoria. 4. De bom juízo, sensato. 5. Aplica-se aos animais dotados de muitas habilidades.

Os aspectos intelectuais ou cognitivos predominam sobre os práticos ou de conduta. Seria esta a concepção dos antigos (especialmente do AT) sobre sabedoria/sábio? Não exatamente. Daí a necessidade de matizar, confrontando qualquer afirmação com os diversos textos. Nota-se sem muito esforço que a orientação fundamental das reflexões dos autores bíblicos é mais de caráter prático que teórico. Mesmo assim, os autores antigos em geral e os sagrados em particular não se interessam por estabelecer uma distinção nítida entre as duas dimensões, como costumamos fazer. Isso porque consideram a realidade humana uma unidade global indivisível, ao passo que a fragmentamos em muitos aspectos (neste caso, o teórico e o prático). Todavia, temos de confessar que, à medida que o tempo passa, os autores bíblicos mais recentes distinguem com maior clareza os aspectos quer na ordem do conhecimento quer na ordem das atitudes morais (teórico/prático; verdadeiro-bom/falso-mau, etc.). Isso será confirmado mais adiante com o testemunho dos textos.

São numerosas as passagens originais da Escritura (tanto em hebraico como em grego) que nos falam da sabedoria e dos sábios. Nossa intenção é revelar a pluralidade de significados do mesmo vocábulo original hebraico ou grego: sabedoria/sábio.
Na exposição seguiremos uma ordem lógica e sistemática que apenas em parte se identifica com o processo real temporal dos conceitos sabedoria e sábio:

●1. Sabedoria/sábio com relação às artes e aos ofícios
1.1. Habilidade, perícia, destreza = sabedoria
1.2 .Artífice, artista, artesão = sábio
●2. Sabedoria/ sábio com relação ao trato interpessoal
2.1. Sabedoria: sagacidade, engenho, talento
2.2. Sabedoria: saber acumulado, ciência, doutrina
2.3. Sábio: astuto, sagaz
2.4. Sábio: douto, perito
●3. Sabedoria/ sábio e a prudência política
3.1. A Sabedoria ou arte de governar
3.2. O governante ideal deve ser sábio
●4. Sabedoria/ sábio: prudência, sensatez/prudente, sensato
4.1. Sabedoria: prudência, sensatez, saber fazer na vida
4.2. Sábio: prudente, sensato
4.3. A verdadeira e a falsa sabedoria
●5. Sabedoria/ sábio e o plano do divino
5.1. Deus é a fonte da sabedoria
5.2. Deus age sabiamente, com sabedoria
5.3. Deus pode conceder a sabedoria e realmente a concede
●6. Fenômeno da personificação da sabedoria
6.1. A sabedoria na esfera do humano
6.2. A sabedoria é a Lei do Senhor
6.3. A sabedoria, atributo divino
6.4. Conteúdo real da personificação da sabedoria
7● O temor do Senhor e a sabedoria
7.1 O temor do Senhor é o princípio da sabedoria
7.2. Com o temor do Senhor adquiri-se a sabedoria e chega-se às coisas do alto

4. O LIVRO DE JÓ – O livro de Jó é um dos pontos literários mais altos a que chegou o homem na história da literatura universal. Sem dúvida, Jó é o livro mais difícil de todos os sapienciais do Antigo Testamento. Sua linguagem é altamente poética, em torno do tema, singular, giram e giram longuíssimos e monótonos monólogos.

O autor magistralmente um homem justo, triturado pelo sofrimento, que busca com tenacidade uma explicação da situação em que padece. Jó remove céus e terra, enfrentando a Deus e aos homens. Nada o faz recuar, a tudo se arrisca, sempre consciente de sua inocência. Queixa-se e grita desesperadamente para que Deus rompa o silêncio e de uma vez para sempre a justiça seja feita. O grito de Jó perde-se na noite escura de sua alma como lamento em poço sem fundo, voz no meio do deserto. Apesar disso, o autor guarda uma surpresa para o fim, para o leitor e para o próprio Jó.

4.1. Problemas introdutórios – antes de analisar a parte mais significativa do conteúdo do livro, fazemos referência a vários temas-chave para a compreensão de seu enigmático conteúdo.

Em linhas gerais, a estrutura do livro de Jó é clara: um prólogo (1-2) e um epílogo (42,7-17) em prosa encerram um poema em verso (3,1-42,6). Ao menos em parte, o poema está concebido em forma de diálogo, na realidade, consta de longuíssimos monólogos de Jó e de seus amigos, um após o outro, somando-se a isso uma longa e inesperada intervenção de um personagem chamado Eliú (32-37). Há indícios de esses capítulos terem sido acrescentados ao poema por mão distinta.

Certamente é preciso falar de uma pluralidade de autores originais, todos desconhecidos. Quando dizemos autor de Jó, o singular é coletivo, a não ser que o reservemos para o redator final, que nos deixou o livro assim como chegou até nós, a exceção de possíveis mudanças de lugar de algumas passagens. Pertence aos sábios e é dos mais representativos do gênero não só na literatura israelita, mas também na literatura internacional do antigo Oriente Médio.

O gênero literário, se é que podemos falar no singular, é muito variado, em seu conjunto, não existe igual nem em Israel nem fora dali. O marco do poema, ou seja, o prólogo e o epílogo, pertence ao gênero dos contos de anedotas folclóricas, mas também assimilado pelos sábios. O poema em si é uma jóia da literatura sapiencial. Distingui-se dos demais livros sapienciais do Antigo Testamento por tratar fundamentalmente de um só tema e pela forma dialogada em que o desenvolve. A obra é lírica e didática às vezes, e o gênero sapiencial não é o único: há diálogos, hinos, discursos, sentenças, processo judicial, etc.

A data da composição varia conforme as partes. No que diz respeito ao prólogo e ao epílogo, foi possível contar com um material muito antigo, adaptado mais ou menos pelo autor do poema. Quanto à data, tudo indica que o poema foi escrito depois do desterro babilônico.

O poeta tem afinidade de linguagem com o Segundo Isaías, mas não parece posterior a ele, de fato, não conhece o verbo bãrã para expressar a ação criadora de Deus, nem a teoria da substituição vicária para explicar o sofrimento do justo: duas notas muito próprias do Dêutero-Isaías; a datação mais apropriada poderia ser o começo do século V a.C.

O Livro de Jó é conhecido por seu personagem principal e, em especial, como aparece nos dois primeiros capítulos. Jó é o tipo do homem paciente e sofrido, que aceita as desgraças, como aceita as bênçãos da parte de Deus:

“Nu saí do ventre de minha mãe,
e nu a ele voltarei.
O Senhor deu, o Senhor tirou:
bendito seja o nome do Senhor!”(1,21).

Menos conhecida é a parte poética do livro em que aparece o outro Jó. Não existe na Bíblia um personagem que mais se queixe de suas dores e sofrimentos do que este Jó, protótipo do homem rebelde. É, pois, necessário falar desses dois personagens, cujo nome é o mesmo. Trataremos primeiramente do Jó paciente e depois do rebelde.

4.2. O Jó paciente – Referimo-nos aqui ao Jó do prólogo (cf. 1-2), apresentado como o homem ideal, moralmente perfeito: “Uma vez no país de Hus havia um homem chamado Jó: era justo e honrado, religioso e não conivente com o mal”. Jó é o herói protagonista de um conto oriental, como demonstram o ambiente familiar que o cerca e as riquezas fabulosas que possui. Além disso, na ficção da cena celeste, o autor eleva Jó a paradigma universal do homem, segundo os planos de Deus: “Reparaste o meu servo Jó? Na terra não há outro como ele: é um homem justo e honrado, religioso e não conivente com o mal” (1,8;2,3).

Satã aqui nada tem a ver com o Satanás posterior do judaísmo, o adversário de Deus e dos homens. Satã, pura criação literária, cumpre uma função na corte celeste: é aquele que fiscaliza o reino, aquele que examina e acusa os homens, é, em particular, o acusador de Jó: “E acreditas que [Jó] teme a Deus em vão?” (1,9). Acaso não é fácil ser piedoso e íntegro quando se vive na abundância e sem necessidade de superar uma mínima contrariedade? Que mudem as coisas e logo veremos.

Jó é submetido a um exame rigoroso para ver se sua piedade religiosa e sua integridade moral são produtos de uma atitude interessada ou, pelo contrário, conseqüência de uma relação de gratuidade, lealdade e amor entre ele e Deus. Satã aposta na atitude interessada de Jó, Deus está seguro da fidelidade desinteressada de seu servo. Quem ganhará a aposta? Jó sofre três avalanches devastadoras em círculos concêntricos que vão do mais exterior ao mais interior. Primeiro perde todas as suas posses (1,12-17), depois, todos os seus filhos (1,18s), e por último é ferido “com chagas malignas da planta dos pés ao alto da cabeça” (2,7). E supera com honra todas as provas: “Apesar de tudo, Jó não pecou nem acusou Deus de desatino” (1,22; cf. 2,10). Dele Deus se sente orgulhoso (cf. 2,3).

Este é o Jó justo e paciente, figura gigantesca e sobre-humana, criada pelo autor para servir de ponto de referência na discussão posterior sobre o sentido ou a falta de sentido do sofrimento humano.

O autor focaliza muito bem o problema a nós apresentado no caso mais extremo possível: um homem justo e perfeito diante de Deus, que sofre pacientemente e inimagináveis adversidades.

Como é possível resolver esse enigma: que um justo sofra injustamente com o consentimento de Deus? Como se pode estar de acordo com essa realidade, não ficção, que tantas vezes se repete na vida (por exemplo, no sofrimento das crianças inocentes)? Como conciliar isso com o que sempre se ensinou sobre a bondade e a justiça de Deus? Diante do incompreensível e inexplicável, o silêncio vale somente como primeira resposta. Além disso, qual deve ser a resposta definitiva ao problema formulado? A esta pergunta responde o autor do poema 3,1 – 42,6.

4.3. O Jó rebelde – sabemos pelo capítulo anterior que a evolução no modo de pensar dos sábios de Israel põe em dúvida aquilo que desde tempos imemoriáveis se afirma em Israel acerca da retribuição: os bons no tempo oportuno seriam premiados por Deus na vida antes da morte; e os maus, castigados.

A retribuição já aparecera como tema antigo em Israel, mas nem sempre a perspectiva fora a mesma. No começo a preocupação era mais com o interesse comunitário e coletivo que com o individual, o aspecto negativo e punitivo foi destacado excessivamente: por culpa de um ou de poucos, muitos pagaram, às vezes, contudo, o aspecto positivo também foi levado em consideração: a inocência de uns poucos garantia o perdão de muitos: “Eu, o Senhor, teu Deus, sou um Deus zeloso: quando me aborrecem, castigo a culpa dos pais nos filhos, netos e bisnetos, porém, quando me amam e guardam meus preceitos, ajo com lealdade por mil gerações” (Ex 20,5s; cf. Gn 18,24-32; Js 7,2).

Quanto à retribuição individual, foi prontamente formulada como princípio em Dt 24,16, incluída nos códigos legais (cf. 21,22ss) e aplicada em 2Rs 14,5s: “Quando [Amasias] consolidou seu poder, matou os ministros que haviam assassinado seu pai. Todavia, conforme o livro da Lei de Moisés [Dt 24,16], promulgada pelo Senhor: “Os pais não serão executados pelas culpas de seus filhos, nem seus filhos pelas de seus pais, cada um morrerá por seus pecados”, acertadamente, não matou os filhos dos assassinos”. Ez 18 e 33,1-20 expressam a doutrina geral sobre o modo de Deus agir.

Essa doutrina aguçou o problema da fé em um Deus justo, pois se via claramente quem em muitos casos o malvado prosperava e o justo caía na desgraça. Se o horizonte de esperança individual não ultrapassava os limites impostos pela morte, o problema de justa retribuição não fica de modo algum solucionado. No caso dos inocentes que sofrem, ele se agrava ainda mais.

5. DEUS RESPONDE A JÓ NO MEIO DA TORMENTA – Não se pode dizer que seja uma surpresa a intervenção direta de Deus no fim do livro de Jó. O autor do poema preparou esse comparecimento ou “teofania” com as reiteradas petições de Jó, a última em sua derradeira intervenção: “Oxalá houvesse quem me escutasse! [...] Que responda o Todo – Poderoso (31,35).

Como bom diretor, o autor é quem dirige a cena do drama. Ele está por trás de cada personagem, inclusive de Deus, personagem principal. Toda a ação do livro orienta-se para o momento final: o encontro de Jó com Deus. O livro inteiro careceria de sentido se no fim não aparecesse Deus para falar. Talvez se tenha colocado demasiada esperança nesse momento final. Foram muitas as perguntas feitas e os problemas que ficaram sem solução. Na realidade, quem vai responder é o autor, o mesmo que propôs os enigmas. Na ficção literária o autor vale-se de Deus para expressar solenemente suas próprias convicções, as soluções que dá aos problemas formulados por Jó. Tais soluções correspondem à capacidade do autor, não aos atributos divinos da sabedoria, bondade, justiça, poder, etc. Por isso não podem satisfazer plenamente, tendo de estar abertas a ulteriores propostas conforme o desenvolvimento da mesma fé em Deus.

5.1. Deus fala do meio da tormenta – “Então o Senhor responde a Jó do meio da tormenta” (38,1; 40,6) :
Isso nos traz à memória passagens conhecidas do Antigo Testamento. Nas numerosas manifestações de Deus ou teofanias estão presentes fenômenos atmosféricos, à semelhança de uma tormenta com raios e trovões. A mais solene de todas, a do Sinai, é descrita da seguinte maneira: “Pelo amanhecer do terceiro dia, houve trovões e relâmpagos e uma nuvem densa no monte, enquanto o toque da trombeta aumentava [...]. O monte Sinai converteu-se em fumaça, porque o Senhor nele desceu em fogo, a fumaça levantava-se, como de um forno, e toda a montanha estremecia [...] Moisés falava, e Deus respondia com trovões. O Senhor desceu no cume do monte Sinai e chamou Moisés para subir ao cume” (Ex 19,16-20; 20,18; Sl 50,3).

O recurso literário do autor põe em evidência o respeito absoluto diante de Deus. A tormenta sugere-nos o oculto, o indecifrável, o incompreensível de Deus, em uma palavra: seu mistério.

5.2. Deus acusa Jó – os autores reconhecem a existência de certo desconcerto na disposição atual dos discursos de Deus (38-39; 40,6-41,26). Duas breves intervenções de Jó fecham cada uma das falas de Deus (40,3-5; 42,1-6). Jó interpelara a Deus em muitas ocasiões e o acusara de muitas coisas (cf. 3.3.c.), parecendo ter saído vitorioso, agora Deus vai responder, e com uma série interminável de interrogações.

De forma alguma Jó é acusado de delito, mas de excesso de palavras em sua atrevida ignorância: “Quem é esse que denigre meus desígnios com palavras sem sentido?” (38,2). Deus não ignora aquele que se atreveu a criticar seus desígnios: ele conhece Jó muito bem. A pergunta “quem é esse” é puramente retórica e dá início a uma série de interrogações que assinalam o significado da resposta: só Deus é quem com pleno direito pode perguntar e exigir uma resposta, o homem deve estar sempre preparado para responder ao Senhor: “Se és homem, cinge-te os rins, eu vou te interrogar, e tu me responderás” (38,3; 40,7).

E claro que Deus tem seus planos e seus desígnios sobre o mundo em geral, sobre os homens no mundo e sobre cada indivíduo em particular. Mas o homem não pode abarcar esses planos e desígnios nem compreendê-los, por sua amplitude em comparação com a pequenez e a limitação humana e, sobretudo, porque são divinos. Esses são os sentimentos expressos em Is 55,8s:

“Meus planos não são vossos planos,
vossos caminhos não são meus caminhos
-oráculo do Senhor-
Como o céu está acima da terra,
meus caminhos são mais altos que os vossos,
meus planos mais que vossos planos”.

Jó não compreende sua própria história de sofrimento nem os planos e desígnios de Deus. Por isso maldisse sua existência (cf. 3,1ss), rebelou-se contra Deus (cf. 9,15 – 10,22). O sofrimento minou sua existência:

‘Que forças me restam para resistir?
Que destino espero para ter paciência?
Minha força é a da rocha,
ou de bronze é minha carne?
Eu não encontro apoio em mim,
e a sorte me abandona” (6,11-13).

Em várias ocasiões, Jó reconhece que esse sofrimento desmedido o faz entrar em desvario, mas também confessa: “foi Deus quem me transtornou” (19,6; cf. 23,16). Dessa maneira, Jó denegriu os desígnios de Deus com palavras sem sentido. Ele não consegue decifrar os desígnios misteriosos do Senhor que coloca em provação seu fiel servidor de modo tão peculiar. Seu coração não está longe do Senhor, mas suas palavras são inadequadas, não têm sentido.

Por sua vez, Deus vai reconduzir Jó ao caminho da sensatez, estendendo diante de seu olhar atônito a paisagem sem fronteira de sua obra, a criação, da qual Jó não é mais que um minúsculo átomo e sem relevância. Deus não pretende envolver Jó mais uma vez com a avalanche visual e mental do andamento da criação, tampouco aniquilá-lo com seu poder criador. Ao contrário, quer que ele tome consciência do lugar que ocupa no meio de uma realidade que ultrapassa no tempo e no espaço. Uma avalanche de perguntas, formuladas de modo irônico, cai sobre o aturdido Jó. Todas visam mostrar, por um lado, a sabedoria ilimitada de Deus e seu poder incomparável e, por outro, a insignificância de Jó e sua ignorância extrema:

“Onde estavas quando alicercei a terra?
Dize-me, se é que sabes tanto.
Quem determinou suas dimensões? – se o sabes – [...]
Verificaste a largura da terra?
Conta-me, se tudo sabes.
Por onde se vai à casa da luz [...]
Deves saber, pois já havias nascido naquele tempo
e vivido por tantos e tantos anos” (38,4s. 18-21).

6. EPÍLOGO DO LIVRO DE JÓ – o final do livro de Jó (42,7-17) retorna à prosa e em certo sentido nos recorda o prólogo (1-2), mesmo que nele notemos ausências e silêncios significativos: nada se diz da mulher de Jó, nada de Satã, que solicitara e provocara a prova de Jó. Assombra-nos, entretanto, as palavras que o Senhor dirige a Elifaz de Temã, as quais contêm o ditame definitivo sobre o poema inteiro: “Estou irritado contra ti e teus dois companheiros porque não falastes com retidão a meu respeito, como o fez meu servo Jó” (42,7).

É lógico pensar que foram os amigos de Jó que falaram bem de Deus, já que não o acusaram de nada e defenderam a justiça e a eqüidade, Jó, por outro lado, não cessou em suas queixas e acusou abertamente a Deus de ser injusto para com ele.

Não esqueçamos que a maneira de pensar do autor de Jó não é precisamente a mesma que a dos amigos de Jó. O autor do poema e Jó se identificam. Uma vez que Jó se reconciliou plenamente com Deus, formal e pessoalmente (cf. 42,1-6), Deus aprova e aceita a atitude dele como acertada, por ser nobre e sincero de coração. As palavras de Deus assim o demonstram, e o final feliz da vida de Jó o confirma: “O Senhor abençoou a Jó muito mais ainda no fim de sua vida que no começo” (42,12).

7. ECLESIASTES OU QOHÉLET – Tratamos da crise que a sabedoria sofreu em Israel. No capitulo anterior vimos como Jó levantava a voz embargada pela dor contra certos ensinamentos alheios à realidade do dia-a-dia, ou seja, que o caminho dos justos conduz ao triunfo e o dos malvados à ruína total. No presente capítulo, confirmaremos como a mesma corrente crítica de Jó, séculos depois, continuava viva em Qohélet. Se o autor de Jó fala a partir da experiência religiosa profunda como teólogo, Qohélet o faz a partir da racionalidade como pensador ou filósofo. Qohélet encara violentamente as contradições da vida. Seu senso de humor, seu equilíbrio mental e sua descoberta de Deus como único ponto de apoio, absoluto e firme em meio a uma realidade inconsistente, mantêm-no a flutuar contra toda esperança e lógica.

7.1. Problemas introdutórios – antes de traçar o esboço dos ensinamentos do livro chamado Eclesiastes ou Qohélet, é oportuno dizer algumas palavras sobre o suposto autor e sobre o lugar e o ambiente histórico em que viveu e escreveu o livro.

7.2. Quem é o autor do livro – à primeira vista parece não ter sentido perguntar sobre o autor de Eclesiastes, pois o livro começa precisamente com estas palavras: “Palavras de Qohélet, filho de Davi, rei de Jerusalém”, as quais só podem se referir a Salomão. De fato, a tradição dos judeus é firme em atribuir esse livro a Salomão, os Santos Padres primeiro e os escritores sirácidas depois se encarregam de recordar a mesma coisa. Até o século XVII mantém-se tranqüilamente essa tradição, que continua também depois, embora já não tão tranqüilamente, mas em contínuas controvérsias.

Foram necessários quase três séculos de polêmica para se reconhecer abertamente que Salomão não foi o autor de Eclesiastes, mas um sábio de sobrenome Qohélet.

Contestada a identificação entre Qohélet e Salomão, surge a necessidade de caracterizar o autor que se diz Qohélet. De qualquer forma, não procuramos uma biografia, mas agrupar o que direta ou indiretamente nos fornece o próprio livro.

A maioria dos autores sustentam que certo discípulo de Qohélet escreveu o que lemos no epílogo: “Qohélet, além de ser um sábio, instruiu permanentemente o povo, e escutou com atenção e investigou, compôs muitos provérbios, Qohélet procurou encontrar palavras agradáveis e escrever a verdade com acerto” (12,9-10). Essas breves notas informam de modo verídico a respeito do autor, mas o epílogo é apenas um ponto de partida para análise. O estilo, o humor e o tom do livro nos mostram facetas interessantes do autor.

Sinceramente, não há como colocar em dúvida a fé judaica do autor. Mesmo assim, é coerente quando se afirma que a Judéia é sua pátria de origem, e, embora pareça ser a Judéia, o lugar mais adequado é Jerusalém. Assim, pois, Qohélet certamente foi um judeu de Jerusalém, pertencente a uma família bem abastada, da classe alta ou da aristocracia, já que o humor espiritual que os ensinamentos refletem no livro é o de um aristocrata um tanto distanciado da realidade.

É possível determinar o estado civil de Qohélet? Levando em consideração que o fato de manter-se celibatário era uma exceção entre os judeus e que o próprio Qohélet recomenda o contrário em 9,9: “Desfruta a vida com a mulher que amas”, o mais lógico é pensar que era casado.

A personalidade de Qohélet é bastante complexa. Enfrenta de maneira contundente os mais graves problemas humanos de toda ordem e põe em xeque as soluções tradicionais, consideradas intocáveis. Essa audácia e a árdua tarefa de buscar fórmulas literárias adequadas supõem uma personalidade muito acentuada. Tudo é feito com a utilização de formas e métodos novos, e de cara limpa, diante dos representantes do poder e da intelectualidade do povo. Para agir assim era preciso uma forte personalidade, com características muito díspares e até mesmo contraditórias: conservador e inovador, cético e de firmes convicções, como veremos no tópico seguinte:

Atitudes de Qohelét na vida. Qohélet tem plena consciência do que “é investigável” pelo homem e do que “não é”. Isso quer dizer que a “a priori” exclui de seu campo de reflexão, e sem dúvida, da observação, apenas a existência de Deus, tudo o mais pode ser investigado. Parafraseando o próprio Qohélet: não se podem confundir “as coisas que se sucedem sob o sol” com “o que está sobre o sol”, isto é, Deus e seu mundo, o impenetrável, o mistério.

Qohélet é um bom observador. A realidade próxima do homem, “o que sucede sob o sol”, é o foco de toda a atenção de Qohélet. Este é o seu meio natural, em que se move como peixe na água: “Dediquei-me a investigar e a explorar com sabedoria tudo que se faz sob o sol” (1,13), “Examinei todas as ações que se fazem sob o sol” (1,14), “observei a tarefa que Deus impôs aos homens” (3,10). Com suas afirmações categóricas, universais, evidentemente hiperbólicas, Qohélet dá-nos a impressão de que não existe parcela da realidade que não tenha analisado pessoalmente, como cabe, segundo ele, ao verdadeiro sábio: “Tudo isto eu examinei com sabedoria. Eu disse: vou me fazer sábio” (7,23).

Qohélet é um crítico radical. O que Qohélet vê no âmbito das relações inter-humanas, a seu redor, não é nada alentador, é o mesmo que tantos outros viram e vêem, sejam sábios ou responsáveis, em maior ou menor medida, pela marcha da comunidade humana. A diferença é a seguinte: se não satisfaz o que lhe ensinaram desde pequeno na sinagoga, na escola, no templo, ele não permanece calado como os demais.

Qohélet não é um moralista, nem levanta sua voz como os antigos profetas, mas como sábio constata a contradição evidente entre o que se ensina e o que acontece: “Isto eu sei: “Tudo vai bem para os que temem a Deus, porque o temem, porém nada vai bem par ao malvado [...]” (8,12-14 – 7,15).

Pode-se afirmar que essa constatação, em Qohélet, é o principal fundamento de sua visão crítica da realidade e, por conseguinte, da crítica implacável que faz ao que tradicionalmente se tem ensinado. Qohélet confrontou o ensinamento tradicional em coisas tão graves quanto a negação de qualquer retribuição, a impossibilidade de conhecer os sentimentos de Deus para com o homem, a avaliação do poder, das riquezas, da família.

Impõe-se, pois, uma visão extremamente crítica de Qohélet na vida: absolutamente tudo que o homem tem a seu alcance, tudo que está e sucede sob o sol é vazio, fumaça, vento, e ir atrás disso é ir à caça de vento.

7.3. Data e lugar de composição do Eclesiastes - As afirmações sobre o tempo e lugar de composição do Eclesiastes estão intimamente ligadas às opiniões sobre o autor. Para os que nos tempos antigos defenderam a autoria salomônica, naturalmente o tempo e o lugar em que foi escrito são os mesmos do rei sábio, “filho de Davi, rei em Jerusalém”. Negada a paternidade salomônica, foram indicadas como datas de composição do Eclesiastes o período da dominação persa (539-333 a.C.), o tempo imediatamente posterior ou começos da época grega (333 a 300 a.C.), e até a metade do século II a.C.

É possível estabelecer a data limite depois da qual não pôde ter sido escrito?

Contamos com um ponto de referência certo: a descoberta dos fragmentos do Eclesiastes na gruta 4 Qumran (Os Manuscritos do Mar Morto formam uma coleção de cerca de 930 documentos descobertos entre 1947 e 1956 em 11 cavernas próximo de Qumran, uma fortaleza a noroeste do Mar Morto, em Israel (em tempos históricos uma parte da Judéia). Estes documentos foram escritos entre o século III a.C. e o primeiro século depois de Cristo em Hebraico, Aramaico e grego. A maior parte deles consiste em pergaminhos, sendo uma pequena parcela de papiros e um deles gravado em cobre. Os manuscritos do Mar Morto foram classificados em três grupos: escritos bíblicos e comentários, textos apócrifos e literatura de Qumram.) e datados até o ano 150 a.C. A maioria dos autores reduz ainda mais a faixa de tempo disponível, ao afirmar que o livro foi escrito antes do Sirácida, já que Jesus Ben Sirac, ao que parece, fez uso dele.

Há bastante tempo a opinião mais comum diz que o Eclesiastes foi escrito no século III a.C. Nota do autor: “Minha opinião pessoal é de que o autor provavelmente o escreveu durante a segunda metade do século III a.C., muito próximo do ano 200. Esse espaço de tempo é um marco mais que suficiente para satisfazer as exigencias lingüísticas e históricas derivadas do livro.”
Quanto ao lugar de composição, a maioria prefere a Palestina e, nela, a região da Judéia e sua capital Jerusalém. Mas outras três regiões foram propostas para a composição do Eclesiastes, ainda que sem êxito: Babilônia, Fenícia e Egito.

7.4. Fontes de inspiração do Eclesiastes – Neste tópico indicamos apenas algumas influências literárias que podem ser descobertas no livro em questão. Como toda obra literária, o Eclesiastes nasce em determinado meio, e seu autor é uma pessoa exposta às influências ambientais, às correntes de pensamento de seu tempo. O autor é um homem culto, um escritor de grande originalidade. Necessariamente tinha de estar aberto aos ventos culturais que sopravam na Palestina de seu tempo. (Palestina (em árabe فلسطين, translit. Filasṭīn; em hebraico פלשתינה; em grego Παλαιστίνη, transl. Palaistinē, e em latim Palæstina), é a denominação histórica dada pelo Império Britânico a uma região do Oriente Médio situada entre a costa oriental do Mediterrâneo e as margens do Rio Jordão.) Há quem considere Qohélet o exemplo de verdadeiro sábio, aberto a todas as correntes, sem perder sua identidade israelita, outros, entretanto, nao admitem a influência maciça não israelita.

●O Eclesiastes e o helenismo. No fim do século passado e no começo deste, afirmava-se entre os especialistas que o autor do Eclesiastes teria bebido diretamente nas fontes gregas e do helenismo, especialmente em Hesíodo, Teognis e nas correntes da filosofia popular.
●O Eclesiastes e a literatura mesopotâmica. Desde o começo, Israel esteve em contato direto com a cultura mesopotâmica, por essa razão a influência da Mesopotâmia e, em geral, do oriente geográfico em Israel fora quase um dogma cultural. O que nos interessa neste momento é determinar o grau dessa influência literária para o Eclesiastes.
●O Eclesiastes e a literatura egípcia. O Egito, como a Mesopotâmia, está presente na história do povo de Israel e em todas as suas manifestações. Política, social e culturalmente, a Palestina depende do Leste e do Sul. É território de passagem obrigatoria entre os dois grandes focos de civilizações antigas. A cultura hebraica alimenta-se com toda a certeza pelo menos das duas grandes culturas que a circundam. De maneira especial, chamamos a atenção sobre as possíveis influências da literatura sapiencial egípcia na literatura hebraica. Esse gênero de literatura foi muito mais rico e abundante no Egito que na Mesopotâmia.
●O Eclesiastes e o Antigo Testamento. Por muita abertura que se queira descobrir no Eclesiastes, parece natural que Qohélet esteja mais perto dos sábios de seu povo que de todos os sábios e filósofos da Grécia, do Egito ou do Oriente. Ele conhecia muito bem os que em seu tempo eram considerados Livros Sagrados, em primeiro lugar o Pentateuco ou a Torah. As alusões ao Gênesis no Eclesiastes são numerosas, por outro lado, os contatos literários com o Êxodo, o Levítico e Números são escassos.

Entretanto, onde encontramos mais afinidades e onde provavelmente Qohélet mais se inspira é no corpo dos livros da sabedoria. São numerosas passagens de Provérbios citadas como paralelos do Eclesiastes, as quais provavelmente exerceram influência sobre ele. Apesar disso não se silenciam as profundas discrepâncias entre a sabedoria tradicional, representada por Provérbios, e o inconformista Qohélet.

O Eclesiastes tem pontos de contato com o Livro de Jó. Concretamente não se podem estabelecer dependências literárias, nem referências de vocabulário, mas temas comuns: desvalimento do homem ao nascer (cf. Ecl 5,14 e Jó 1,21), a sorte do aborto (cf. Ecl 6,4s e Jó 3,11-16), a concepção do* sheol onde toda lembrança é apagada (cf. Ecl 9,5-7 e Jó 14,21s), a incerteza humana sobre a obra de Deus (cf. Ecl 11,5 e Jó 38,2-4; Ecl 12,7 e Jó 34,14).

*(Sheol, Xeol ou Seol, (pronunciado "Sheh-ol"), em Hebraico שאול (She'ol), é o "túmulo", ou "cova" ou "abismo"). A palavra "hades" (=submundo) substituiu "sheol" quando - por decreto - a escrituras hebraicas foram vertidas para o grego ( ver Septuaginta) na antiga Alexandria por volta do ano 200 A.C.