sábado, 23 de abril de 2011

Livros poéticos e sapienciais do Antigo Testamento

Os Livros poéticos e sapienciais do Antigo Testamento são: , Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Sabedoria e Eclesiástico. Foram escritos, em sua maioria, em linguagem poética, fazendo uso de metáforas, e têm um caráter de ensinamento sobre a Sabedoria. Eclesiástico e Sabedoria, são deuterocanônicos, e por isso não constam na Bíblia Protestante, embora estejam presentes na Bíblia Católica. Esses livros apresentam a sabedoria e a espiritualidade de Israel.

Em Israel, a sabedoria não é a cultura conseguida graças à acumulação de conhecimentos, mas o bom senso e o discernimento das situações, adquiridos através da meditação e reflexão sobre a experiência concreta da vida. Trata-se de algo que se aprende na prática e que leva à arte de viver bem. Assim, nos livros sapienciais encontramos reflexões que brotam dos muitos problemas que povoam o dia-a-dia da vida de qualquer pessoa que busca o caminho da realização e felicidade.

Porque esse escritos são, sob certos aspectos, bastante “não bíblicos”. O livro de Jó fala de um homem que é levado a passar por horríveis sofrimentos como resultado de uma disputa insignificante entre Iahweh e Satanás, e conta como Jó ignorante sobre a disputa, mas muito consciente do fato de não merecer esses sofrimentos apresenta questões e desafios ao Todo Poderoso que beiram a blasfêmia. O Eclesiastes vai além de Jó no questionamento da justiça de Deus. Ele apresenta a desoladora perspectiva segundo a qual os seres humanos não podem entender quase nada sobre este mundo e sobre o seu lugar nele, com exceção do fato que terão o mesmo fim dos animais, a morte e o túmulo. E a melhor maneira de se ocuparem diante desse fim é apenas comer, beber e se alegrar. E os Provérbios, embora não tenham um espírito negativo semelhante ao dos dois primeiros (Jó – Eclesiastes), e apesar de advertirem alegremente que o primeiro princípio da sabedoria é ter um adequado respeito por Deus, parecem notavelmente mundanos em seus conselhos sobre a condução da própria vida. Eles sem dúvida dão pouquíssima atenção às formas adequadas de culto religioso ou ao êxtase e desespero de uma alma comungando com Deus, bem como aos grandes fatos da relação de Israel com sua divindade, Iahweh.

Sendo tão distintos do resto do AT (tendo sido chamados por alguém de “corpo estranho” na Bíblia), como pode sua existência ser explicada?

Tal como ocorre como a maioria dos outros livros vetero-testamentários, quase nada se pode dizer sobre os indivíduos que os compuseram, não há dúvida de que Salomão não escreveu, ao contrário do que sustenta a tradição, nem os Provérbios nem Eclesiastes. Mas embora não saibamos quem foram os autores, sabemos alguma coisa sobre o grupo do Antigo Israel a que pertenceram os autores, um grupo chamado simplesmente de “sábios”. Carecendo de análises sociológicas contemporâneas de Israel dessa espécie, só temos como fonte de informação sobre os sábios aquilo que eles mesmo escreveram e algumas referências dispersas nos profetas e nos escritos históricos. Contudo, usando com cuidado essa informação, os pesquisadores conseguiram avançar de maneira considerável na direção da definição dos padrões básicos de pensamento da escola sapiencial e dos valores para cuja promoção as suas obras literárias foram escritas.

Em nosso exame da matéria, é melhor começarmos negativamente, ou seja, mostando aquilo com que os sábios não estavam preocupados, ou, ao menos, aquilo sobre o que não tinham interesse de escrever.

Devemos acentuar que o que diremos aqui só se aplica aos sábios do período de um século ou dois antes e depois do exílio na Babilônia no século VI a.C., isto é, aos que produziram os livros dos Provérbios, de Jó e o Eclesiastes. Os escritores sapienciais dos séculos ulteriores (seguintes) tinham visões que diferenciam, em vários pontos importantes, dos de seus predecessores (antecessor).

Em primeiro lugar, os sábios dos séculos de antes, durante e depois do exílio davam pouca importância ao “culto”, quer dizer, à religião organizada de Israel. Há somente referências de passagem a observâncias cúlticas nos três livros sapiênciais canônicos. Num ponto dos Provérbios que é a única alusão positiva a questões cúlticas de todo o livro, o leitor é aconselhado a honrar Iahweh “com teus haveres/com as primícias das tuas rendas” (Pr 3,9-10), mais tarde, porém, há um conselho mais característico: “Praticar a justiça e o direito; isso é mais agradável ao Senhor que sacrifícios”. (Pr 21,3).

No Eclesiastes, se ignoramos as várias passagens inseridas por escribas e editores ulteriores (seguintes) num esforço de atenuar a dura visão de vida do livro, o único comentário do autor sobre a religião é que quem participa das atividades cúlticas deve fazê-lo com plena consciência daquilo que pratica e dos compromissos que faz.

Em Jó, a única atividade cúltica que merece referência está no prólogo e no epílogo em prosa, em que ficamos sabendo que Jó faz sacrifícios e reza a Iahweh em favor de seus filhos e amigos, mas, na ampla parte poética do livro, em que Jó e os seus amigos investigam com toda a minúcia as maneiras pelas quais o homem pode pecar e, assim, merecer o seu sacrifício, não há uma única menção a isso. Nesses três livros, é quase como se a religião organizada fosse tida por certo como algo que não influi nas questões realmente profundas da vida.

Em segundo lugar, os sábios parecem não ter tido espírito nacionalista. As suas obras nada têm da rejeição dos historiadores deuteronomistas a todas as coisas e pessoas não-israelitas, nenhum vestígio da desconfiança dos profetas diante de outras nações com as quais os líderes de Israel pudessem desejar fazer aliança. Os sábios não se dirigiam, ao contrário dos deuteronomistas e dos profetas, a Israel como povo, não encontramos neles nenhum “Ouve, ó Israel”, falando antes a seres humanos individuais preocupados com a natureza do mundo e com a maneira pela qual se leva uma vida satisfatória. Essa espécie de preocupação não era só israelita, mas universal, na verdade, era o ponto central da literatura sapiencial das nações vizinhas, literatura essa que os sábios de Israel devem ter conhecido bem, graças ao contato com seus pares profissionais dessas nações. Um deles, um livro egípcio de instrução dirigido a um jovem, foi a fonte de uma passagem de Provérbios 22 e 23. Obras bem parecidas com Eclesiastes e Jó, e que os autores desses livros podem ter conhecido foram escritas na Mesopotâmia já no começo do segundo milênio a.C. Podemos supor que os sábios de Israel se considerassem parte da tradição que produziu essas obras e membros de um corpo internacional de sábios.

Em terceiro lugar, assim como não cuidavam do lugar de Israel entre as nações, os sábios não estavam voltados para o seu passado, para o seu nascimento por meio de uma aliança entre Iahweh e Abraão, para o seu renascimento por meio da ação de Iahweh, que resgatou o seu povo do Egito e deu a Lei no Sinai, para a conquista da terra de Canaã nem para o estabelecimento de Davi num trono que pertenceria para sempre a ele e aos descendentes.

Como já observamos, talvez tenham sido os membros da escola sapiencial do século X a.C. os autores da história oficial de Israel, mas os seus sucessores, de várias centenas de anos depois, que escreveram os Provérbios, Jó e Eclesiastes, não se referem aos fatos dessa história em suas obras. Estes prestaram o seu tributo ao filho de Davi, Salomão, mas não se tratou de uma questão de história, eles só recorreram a Salomão por causa de sua reputação de sabedoria: ele era, por assim dizer, o santo padroeiro dos sábios, tal como Davi fora o santo dos músicos.

Em quarto lugar, embora supusessem a existência de uma divindade que criara e sustentava o mundo, os sábios não tinham uma concepção de um relacionamento pessoal entre o fiel e Deus. Portanto, os seus livros não têm reflexões do tipo de relação individual com Iahweh que encontramos nos Salmos e nos pronunciamentos dos profetas, e não há, em conseqüência, nenhum “Assim diz Iahweh” a ser dito aos seus conterrâneos. Jó reconhecidamente clama a Deus em sua angústia e de fato recebe uma resposta, mas essa resposta toma a forma de uma avassaladora série de perguntas destinadas a humilhá-lo, para esmagá-lo até a insignificância por ser ele, tão somente, um homem. No livro de Jó e nos demais escritos sapienciais, não há verdades especiais reveladas dos céus, as interrogações humanas para as quais não se podem obter respostas a partir da observação da natureza e da sociedade humana devem permanecer para sempre irrespondidas.

Por conseguinte, os escritores sapiencias clássicos tinham, em vários aspectos significativos, uma perspectiva consideravelmente distinta das dos autores responsáveis pelo Pentateuco, pelos escritos históricos, pelos livros proféticos e pelos Salmos. Para os sábios, o livro de Deus, completo e imutável, era o mundo das coisas criadas e das relações humanas. E era a observação das coisas tal como são, e não a revelação divina, que produziria o conhecimento e, em última análise, depois de anos de experiência e de contemplação, a sabedoria. Dois dos livros sapienciais, Provérbios e Eclesiastes, teriam servido diretamente a essa função, o livro de Jó tê-lo-ia feito indiretamente, mediante a exposição desveladora de expectativas comuns, mas falsas, sobre o comportamento e suas conseqüências. Embora os escritores sapienciais não tirassem as suas conclusões da religião e pouco tivessem a dizer sobre ela, podemos supor que poucos sábios israelitas se opusseram aos valores religiosos da sua sociedade e que, provavelmente, a maioria se sentia bem à vontade com eles. Pode-se presumir que os seus conselhos aos jovens tenham coesistido facilmente com o saber tradicional dos sacerdotes e com a pregação dos profetas.

Embora não fossem entusiastas religiosos, os sábios acreditavam na existência de Deus e em sua criação de um universo ordenado. A maioria deles teria aceito os princípios éticos da religião tradicional, sendo o mais básico o princípio de que há, no mundo ordenado de Deus, um vínculo necessário entre o nosso comportamento e a nossa sorte na vida: quem age bem prospera, quem age mal sofre. A aceitação desse princípio ético básico atingia a maioria dos escritores sapienciais, mas não a todos. Os três livros que temos diante de nós: Provérbios, Jó e Eclesiastes, podem ser examinados como prova em termos da concepção dos seus autores quanto à questão da determinação da nossa sorte na vida pelo nosso comportamento.

Os Provérbios contêm materiais compostos por alguns autores ao longo de séculos, mas tomam, em sua versão final, a forma de livro de instrução dos jovens sobre a natureza do mundo e sobre a conduta necessária ao sucesso nele. Não causa surpresa, pois, descobrir ao longo do livro que sempre se supõe, mencionando-se com freqüência, uma ligação necessária entre o comportamento e a fortuna na vida. O público-alvo do livro deveria extrair dele a compreensão de que colheria o que semeasse, tanto no plano moral (o bem produz o bem/o mal produz o mal) como no prático (o planejamento e o esforço inteligentes levam à prosperidade/o descuido e a preguiça levam à ruína). Consideremos algumas observações e advertências típicas dos Provérbios:
Nenhuma desgraça abate o justo,
mas os iníquos recebem o seu quinhão de adversidade. (12,21)

O caminho da honestidade leva à vida,
mas há um descaminho que leva à morte. (12,28)

As dores do trabalho dão proveito,
mas o mero falar traz pobreza. (14,23)

Por todos os Provérbios, esse princípio simples de causa e efeito pode ser considerado básico, para o pensamento dos seus autores, a prudência e a retidão levam na verdade, devem levar ao sucesso, porque assim funcionam as coisas neste mundo e porque a vigilante atenção de Deus garante que assim seja. O jovem perceptivo aprende esse princípio e o emprega para dar forma ao tipo de sucesso que deseja alcançar. Tudo vai muito bem na teoria, é verdade, mas mesmo os mais comprometidos com o princípio não podem negar que nem sempre dá certo na vida real.

Eis aqui, vamos supor, um infeliz órfão que dificilmente pode ser considerado merecedor da perda dos pais, temos ali uma pobre viúva cujo marido pereceu sem nenhuma culpa dela, vemos adiante um bom comerciante cujas mercadorias foram destruídas de súbito por um incêndio decorrente de um relâmpago. Que dizer a essas pessoas, que sofrem sem ter culpa? Os Provérbios têm surpreendentemente pouco a lhes falar.

Diante disso, a única tentativa do livro de solucionar o problema do sofrimento imerecido é deixar implícito que isso não existe: quem sofre deve ter pecados que os outros não vêem e de que nem ele mesmo pode aperceber-se. Portanto, deve-se entender o seu sofrimento como o modo divino de reprová-lo e castigá-lo para o seu próprio bem. Imediatamente depois da passagem citada acima, em que se diz ao leitor que honre a Iahweh com seus haveres a fim de alcançar a prosperidade, encontramos mais um conselho:

Filho meu, não rejeites a correção do Senhor
nem tomes por mal a sua reprimenda,
porque o Senhor repreende aqueles a quem ama
e pune o seu filho querido (Pr 3,11-12)

Explicando o sofrimento do devoto em termos de castigo, os sábios do livro dos Provérbios podem manter a validade do seu princípio ético de causa e efeito, e , ao mesmo tempo, a justiça da divindade que está por trás dele. O mesmo princípio é exposto pelos amigos que se reúnem ao redor de Jó em seu tempo de provação. Eles dizem a esse homem aparentemente devoto que perdeu subitamente a prosperidade, a família e a saúde:

Pois, considera, que homem inocente já pereceu?
E onde viste o homem reto exterminado?
Tenho visto: os que lavram o delito e semeiam o mal
segam o que plantaram (Jó 4,7-8)

O conselho dos amigos a Jó é que ele “não rejeite o castigo do Todo – Poderoso” (Jó 5,17), a implicação é que ele não é tão inocente quanto parece ou pensa ser. Mas essa resposta fácil não lhe serve, ele não tem culpa e tem ciência disso. Para ele, a verdade parece evidente, e é uma coisa terrível dizê-la: Deus simplesmente não é justo!
...por isso eu digo:
“Ele faz perecer o justo e o culpado”.
Quando um flagelo espalha num repente a morte,
ele zomba da desgraça dos inocentes. (Jó 9,22-23)

Em todo o seu longo debate com aqueles que o “confortam”, Jó exige que Deus apareça (no tribunal, por assim dizer) e declare claramente que mal foi cometido por Jó para produzir tal má sorte.

Quando, perto do final do livro, o Todo – Poderoso se dirige a Jó, a sua argumentação pretende fazê-lo entender que o seu pensar sobre o sofrimento humano e a justiça de Deus, ou a falta dela, é profundamente errôneo. Abatido, Jó confessa ter dito tolices sobre assuntos demasiado grandes para ele, mas, surpreendentemente, tão logo o faz, Deus diz aos conselheiros rigidamente ortodoxos: “Vós não dissestes de mim o que era reto, ao contrário do meu servo Jó (42,7).

Diante dessa afirmação, devemos compreender que os amigos de Jó estavam errados quando defenderam a justiça de Deus e que Jó estava certo ao atacá-la?

Provavelmente não.

O autor apenas foi tão longe em sua exploração poética do insolúvel problema do sofrimento quanto o pôde. O velho trecho em prosa que o introduziu no assunto serve agora para tirá-lo dele, mas ao preço de uma grave inconsistência.

Jó alega que não há relação entre o bem ou o mal que o homem pratica e o que acontece em sua vida.

O autor de Eclesiastes parte do ponto em que Jó ficou e leva a discussão às últimas conseqüências. Não somente não há garantia de que fazer o bem ou o mal leva boas e más conseqüências para a pessoa, como não há garantia de que qualquer espécie de ação tenha a conseqüência que o praticante pretende alcançar ou pensa que tem o direiro de esperar. A única certeza deste mundo é de que os processos naturais continuarão imutáveis eternamente, nascer do sol, ocaso, nascer do sol, ocaso, e de que a morte sucede à vida. Toda especulação humana sobre causa e efeito nada vale, “porque o destino do homem é o destino dos animais, e a mesma desgraça os espera: como morre um, assim morre o outro” (Eclesiastes 3,19).

E a morte, na visão do escritor, não é por certo um lugar em que todos os erros serão corrigidos, com recompensas e punições distribuídas de acordo com o mérito dos seres humanos em decorrência de suas ações na vida. A morte é a completa aniquilação, para o bem e para o mal, para os homens e para os aminais.

Não vendo satisfações de longo prazo pelas quais seja possível labutar e nenhum sistema agradável de recompensas e punições na vida ou na morte, que tipo de comportamento pode o autor de Eclesiastes recomendar? Bem, algumas situações na vida são claramente melhores que outras, e podemos lutar por algumas satisfações de curto prazo:

É melhor, em tudo e por tudo, ser sábio do que tolo, ter comida e bebida do que ser privado delas, ser jovem do que velho, e, por fim, estar vivo do que morto. Aproveitemos essas poucas coisas boas, não tenhamos grandes expectativas e, de modo geral, vivamos sabendo que logo estaremos mortos.

Nesse ponto, pode parecer ao leitor que o Eclesiastes e os Provérbios têm diferenças tão radicais entre si que mal podem ser considerados advindos da mesma escola de pensamento. Alguns pesquisadores propõem de fato que havia na tradição sapiencial uma dicotomia otimismo/pessimismo.

Mas a verdade simples é que qualquer um de nós, contemplando em sua inteireza o mundo como ele é, pode dar respostas amplamente distintas ao que testemunha e vive. Aspirar o ar agradável de um acolhedor dia de primavera, fruir o afeto de amigos queridos, progredir em termos da realização das metas da nossa vida, nessas circunstâncias, qualquer um de nós pode aconselhar expansivamente os semelhantes a se alegrar, a se animar, a pensar positivamante e, assim conquistar o mundo, afinal uma atitude negativa nunca leva ninguém a lugar nenhum.

Mas, quando o tempo muda para pior, os amigos nos abandonam e as expectativas não se realizam sem que tenhamos culpa, todos podem ficar pessimistas e prontos a aconselhar quem quiser ouvir a partir da idéia de que simplesmente não se pode vencer neste mundo.

A questão não é tomar Provérbios como mero conselho de um sábio num dia bom e o Eclesiastes com o seu conselho num dia ruim, trata-se de fato de essas duas obras representarem os resultados diametralmente opostos do mesmo processo: a investigação filosófica da existência humana com base no raciocínio humano puro e simples. A vida apresenta um amplo espectro de condições, e aos sábios, vale a pena examinar a vida, seja qual for a nossa resposta.

Como dissemos, mesmo o autor pessimista do Eclesiastes tem de admitir que a sabedoria, a mente inquisitiva, que lhe traz melancolia é, não obstante, uma boa coisa para ter. Uma vida não examinada não passa de paraíso de tolos.

O que dissemos até agora se aplica aos três livros sapienciais canônicos (Jó, Eclesiastes, Provérbios), compostos ao longo de alguns séculos na metade do primeiro milênio a.C. há dois outros livros da categoria sapiencial que pertencem aos Apócrifos. O Eclesiástico (a semelhança entre o seu título e os do Eclesiastes é infeliz) foi escrito, provavelmente, perto de 180 a.C., a Sabedoria de Salomão (ou apenas Sabedoria) costuma ser datada de mais ou menos 100 a.C. esses dois livros embora plenos de características típicas da tradição sapiencial, compartilham certos aspectos que os afastam dos três já discutidos.

A esta altura, uma curiosa ironia já deve ter ocorrido ao leitor: dos cinco livros sapienciais que estivemos considerando, os dois mais positivamente religiosos, o Eclesiástico e a Sabedoria de Salomão, não foram admitidos pelo judaísmo antigo no seu cânon da Escritura, ao passo que os três primeiros, embora contivessem muita coisa questionável aos olhos religiosos, o foram. O porquê de os livros como esses dois não terem sido incorporados no cânon judaico se deu pelo fato de serem reconhecidos como obras relativamente recentes, escritas depois de o período de inspiração divina ter, na opinião dos judeus, ter chegado ao fim.

Mas por que os três primeiros foram?

Temos de supor, em primeiro lugar, que foi porque esses três livros tinham um grande atrativo para o judaísmo antigo, provavelmente devido à honestidade com que esses livros trataram das questões da religião e da ética. Sejam quais forem os seus ideais, todo sistema de pensamento tem de enfrentar, de alguma maneira, os problemas da vida em sua vivência e experiência concretas, os autores dos três livros em questão fizeram isso para o judaismo.

Contudo, os ideais não têm de ser submetidos a uma carga excessiva nem escrutinados com demasiado rigor, e esses três livros, independentemente do seu atrativo, não teriam sido considerados dignos nos últimos estágios do processo de canonização se não tivessem sido encontrados, em etapas anteriores desse processo, meios de contrabalançar a sua franqueza ou, ao menos, de interpretar os seus textos de acordo com idéias tradicionais.

O cortante ceticismo do Eclesiastes, por exemplo, tornou-se parcialmente palatável por meio do artifício simples de interpretar com afirmações reais certas observações pias que o autor pretendia ver entendidas ironicamente. Além disso, várias injunções piedosas que os escribas tinham escrito nas margens quando copiavam o texto passaram pouco a pouco a ser entendidas como parte dele (apesar desses sentimentos não terem nenhuma relação com o que os cercava).

Por fim, o Eclesiastes, teve um pós-escrito incorporado por um sábio ulterior que admirou a obra, mas achou que o seu rigor tinha de ser um pouco aliviado. Assim, ele aconselhou os leitores do Eclesiastes, com um grau de garantia que o autor do próprio livro por certo não conseguiu alcançar, do seguinte modo: “Teme a Deus e guarda, seus preceitos: porque este é o dever de todo homem. Porque Deus submete a julgamento todos os nossos atos, e tudo o que está encoberto, o que é bom e o que é mau”. (12,13-14).

Quando consideramos essa mesma espécie de suavização no livro de Jó para torná-lo mais aceitável ao gosto ortodoxo, temos de observar que o rigoroso julgamento da justiça de Deus feito pelo herói foi reprimido pelo próprio autor, quando este levou Jó a admitir, depois de Deus ter-lhe respondido de maneira tão esmagadora, que se excedera e discorrera sobre assuntos além da sua capacidade. E, na conclusão em prosa do livro, como vimos, Jó é elogiado por Deus e os seus amigos, acusados.

Mas, se Deus pôde aprovar as palavras aparentemente blasfemas de Jó, então, diria um leitor ortodoxo do livro, que essas palavras por certo não são tão perigosamente não-ortodoxas quanto parecem. Mas, por razões de coerência, modificou-se o texto do livro séculos que se seguiram à sua composição para torná-lo ainda mais aceitável aos olhos dos pios.

Por exemplo, os pronunciamentos dos capítulos 32-37, feitos por Eliú, um quarto confortador de Jó, que vem sem aviso, de local desconhecido, parecem ser acréscimos ao texto, numa outra tentativa devota de rejeitar o ataque de Jó à justiça divina.

E uma afirmação particularmente rebelde de Jó, em 13-15, foi modificada de maneira a dizer o oposto do que o autor escreveu. O sentido original das palavras de Jó é refletido na leitura da Revised Standard Version (RSV):

Eis que ele vai me matar, não me resta esperança;
contudo, defenderei a minha conduta diante dele.

No início da história do texto, um copista escandalizado alterou ligeiramente o hebraico para produzir o seguinte sentido (New International Version – NIV):

Ainda que ele me mate, nele esperarei:
por certo defenderei a minha conduta diante dele.

Os Provérbios não apresentaram, em nenhum ponto de sua história, a dificuldade que o livro de Jó e o Eclesiastes, mesmo em sua forma editada, mostraram aos olhos do devoto. A única coisa questionável neles, como dissemos, é que a maioria do seu material é formada por conselhos seculares, deste mundo, dirigidos aos jovens, tratando do modo como é o mundo e de como se conduzir nele.

O compilador do livro dedicou-se a tornar esse material mais aceitável para os ortodoxos dando-lhe um novo teor. Como prólogo às coletâneas mais antigas de material sapiencial que estava reunindo numa única obra, ele compôs uma longa introdução (Provérbios 1-9) que apresenta a sabedoria como uma qualidade divina e como o fundamento essencial de uma vida de devoção. Estabelecida essa identificação, mesmo os conselhos profundamente pragmáticos que vêm em seguida podem ser entendidos pelo devoto como apropriados.

A sabedoria de cunho mais popular que encontramos no livro dos Provérbios e no Eclesiástico apresenta-se em forma de coleção de frases curtas, sentenças que ajudam a compreender e a encontrar uma saída nas diversas situações enfrentadas pelo homem comum. Já os livros de Jó, Eclesiastes e Sabedoria são estudos sobre problemas mais profundos e globais, como o sentido da vida, a morte, a justiça, a vida social, o mal, a natureza da sabedoria etc. O Cântico dos Cânticos trata da experiência mais fundamental da vida: o amor humano, símbolo do amor de Deus para com o seu povo.

A espiritualidade de Israel é apresentada no livro dos Salmos, uma coleção de 150 orações que refletem as mais diversas situações da vida do indivíduo e do povo. São verdadeiros modelos para aprendermos a fazer a nossa oração.

Os livros sapienciais mostram que a experiência comum do povo também é lugar da manifestação de Deus e da revelação do seu projeto: Deus fala através da experiência do povo. Estes livros, portanto, trazem o convite para também hoje darmos atenção a nossa vida cotidiana, a fim de aprendermos a articular nossa experiência da vida e da história.

INCURSÃO PELA POESIA EM ISRAEL. A poesia de Israel merece a atenção que lhe vamos dar, embora muito de sua beleza se perca nas traduções. Em numerosas literaturas nacionais, as primeiras obras são freqüentemente poéticas. Assim ocorre na Grécia com a Ilíada e a Odisséia; na Espanha com o Cantar del Mio Cid, na França com a Chanson de Roland; em Portugal com as Cantigas de Amigo e as Cantigas de Amor. Também em Israel as primeiras obras literárias de qualidade pertencem a este gênero.

Algumas são composições breves, como o canto de guerra e de vingança de Lamec (Gn 4,23-24), as súplicas de Nm 10,35-36, o cântico do poço (Nm 21,17-18), a benção de Isaac (Gn 27,27-29), o canto dos trovadores de Hesebon (Nm 21,27-30).

Outras composições são mais amplas. O grande problema é datá-las e situá-las na Antiguidade. A solução não é fácil e os autores discordam muito. Por exemplo, o cap. 3 de Habacuque é considerado dos fins do século X ou anterior a ele por vários autores, entre os quais Albright e Bright; Duhm já o coloca em fins dos séculos IV; Eissfeldt, entre os anos 600 a 587. Basta este exemplo para se ter uma idéia da diversidade de opiniões. Em linhas gerais, os autores de maior peso e que fizeram escola são Duhm e Albright. O primeiro tende a datar qualquer composição em tempos mais recentes, o segundo, baseando-se em análises de tipo gramatical, ortográfica, etc., se inclina para tempos mais antigos. Generalizando, podemos dizer que a batalha foi vencida por Albright.

Ao falar da poesia mais antiga de Israel, parece obrigatório dedicar algumas linhas a seu primeiro grande poeta conhecido, o rei Davi. A tradição bíblica fala freqüentemente de suas qualidades poéticas e musicais (1 Sm 16,14-23), e numerosos Salmos lhe são atribuídos.

O QUE É UM SÁBIO? O nosso termo “sábio” não descreve adequadamente a realidade destes personagens do antigo Israel. Como em todo o Oriente Antigo, os sábios não são pessoas retraídas, absortas em sua ciência, afastadas das preocupações diárias, antes, são profundos conhecedores de sua especialidade, mas grandes ignorantes em outras matérias e sem nenhum sentido prático. Esta caricatura do sábio, bastante difundida entre nós, nem sequer é válida para os “sábios” contemporâneos. Muito menos para os antigos. Ao falar dos sábios de Israel nos referimos a um grupo de pessoas bastante heterogêneo, que abrange desde o educador até o filósofo ou o teólogo, passando pelos preceptores dos príncipes e da nobreza e pelos conselheiros da corte.

Neste sentido pode-se dizer que os sábios se movem em ambiente social elevado, detalhe que pode condicionar o conteúdo e o método de suas reflexões. Mas não nos esqueçamos de que junto a esta sabedoria cortesã existe uma outra popular, simples produto da observação e da experiência dos anos.

A temática do sábio se eleva algumas vezes a níveis altamente teóricos, como quando se trata da origem e da natureza da sabedoria, do problema do mal, do sentido da existência e da atividade humana. Em muito mais ocasiões, porém, se mantém em níveis mais simples e quotidianos: fala da amizade, do orgulho, da educação dos filhos, das formas de governo, do domínio de si, do reto uso do dinheiro. A resposta a todos estes problemas, teóricos e práticos, próprios da humana existência, não a vai buscar em arquivos e bibliotecas, como o historiador, nem num contato direto com a palavra de Deus, como o profeta, mas a busca na experiência humana geral, sem dúvida iluminada em muitos casos pela fé. É o pai e a mãe, são os antepassados, os anos, os que ensinam e transmitem esta sabedoria. O sábio não diz: “Oráculo do Senhor”. Contenta-se com um modesto: “Meu filho, presta a atenção à minha sabedoria, dá ouvidos ao meu entendimento” (Pr 5,1). “Meu filho, guarda os preceitos de teu pai, não rejeites a instrução de tua mãe” (Pr 6,20).

Não se trata de uma ciência infusa nem de uma palavra divina que vem sobre eles como veio sobre Amós ou Jeremias. Há pelo meio um duro esforço de observação e reflexão. “O Pregador (Coélet)...estudou, inventou e formulou muitos provérbios. “Quanto mais sábio foi o pregador, tanto mais sabedoria ensinou ao povo. Estudou, inventou, e compôs muitos provérbios”. (Ec 12,9).

Experiências de séculos e reflexão pessoal se fundem na pessoa e na missão do sábio de Israel. Naturalmente não pode permanecer isolado de sua própria época, da cultura que o rodeia, da problemática provocada pelo contato com povos vizinhos, alguns tão cultos como o Egito, a Babilônia ou a Grécia. É sob este aspecto que o “sábio” afirma que viaja por países estrangeiros provocando o bem e o mal dos homens”, admite esta nova fonte de experiência e conhecimento. Isso porém , não anula a personalidade de cada autor, o contato com os livros sapienciais nos faz descobrir personagens muito diversos. Desde o ancião sensato e modesto em seu ensinamento até o ancião desencantado da vida, como o Qoélet. Otimistas e pessimistas, serenos e apaixonados, homens refinados e outros de escassa cultura vão brotando ao longo destas páginas. Há o que sorri astutamente por trás de sua grande descoberta de que “mais vale morar no canto de um teto do que junto com uma mulher queixosa” (Pr 20,9), e o que formula com maravilhosa sobriedade: “Também entre risos chora o coração” (Pr 14,13). Para captar mais exatamente esta diversidade é preciso considerar a evolução da sabedoria dentro de Israel.

CONCEPÇÃO MODERNA DE SÁBIO. Desde que as ciências, com os novos métodos de estrita observação da natureza (séculos XVI-XVII), se separaram das especulações filosóficas e teológicas, a investigação científica converte-se em atividade intelectual realmente autônoma. É a partir desse momento que geralmente a sabedoria é substituida pela ciência e o sábio identifica-se com o cientista ou o homem de ciência. Interessa-nos agora fazer algumas observações sobre o sábio no sentido moderno, para ver se diferencia muito ou pouco do antigo.

O SÁBIO EM SENTIDO MODERNO. Já não é suficiente definir o sábio como “a pessoa que possui sabedoria”, agora é necessário especificar com mais detalhes. Se fazemos uso da categoria de extensão, por sábio entendemos “a pessoa que possui conhecimentos científicos extensos e profundos”. Nesse sentido, o sábio converte-se em uma enciclopédia ambulante: sabe muito de muitas coisas. Esse é o sentido mais comum de sábio, porém há outro sentido, talvez mais apropriado e científico, certamente menos vulgar. Sábio é a pessoa que se dedica de maneira particular a um ramo do saber, a dedicação, o estudo e a investigação muitas vezes são coroados por resultados muito valiosos.

Segundo o modo de pensar moderno, estes são os verdadeiros sábios. São eles que fazem avançar a máquina imponente do progresso. Destas pessoas costuma-se ter uma imagem muito particular, como Einstein o confirma: “A maioria delas são, em certa medida, extravagantes, pouco comunicativas, e solitárias”, o que não quer dizer que não se sentem integradas à sociedade que as estima e respeita e à qual, em última instância, servem.

O QUE EXISTE EM COMUM ENTRE O SÁBIO ANTIGO E O MODERNO. Há muitas coisas que distanciam o sábio moderno do antigo: por exemplo, o modo e o método de abordagem da natureza, a concepção que se tem do homem e da vida devido a pressupostos de ordem ético-religiosa. Mas também podem ser estabelecidos muitos pontos de contato.

O encontro principal entre o sábio antigo e o moderno tem lugar na concepção humanista de ambos. A visão que um e outro têm da natureza e do mundo geralmente desemboca no humanismo declarado. Para o sábio antigo o homem sempre será o rei da criação, aquilo que dá sentido a tudo quanto existe; para o moderno, tanto a ordem teórica quanto a prática e a moral terminam também no homem.

ISRAEL E SUA CIRCUNVIZINHANÇA – Falamos de Israel já estabelecido como povo e nação em meio a outros povos e culturas. Pequeno em si e insignificante como povo e como território, Israel sempre dependeu dos povos circunvizinhos e dos grandes impérios que sucessivamente o dominaram, desde o Nilo até o Tigre e o Eufrates. De fato, o Oriente Próximo antigo se identifica com o Crescente Fértil ou Meia Lua e com a zona desértica limítrofe.

O Crescente Fértil ou a Meia Lua compreende a imensa região em forma de arco (daí seu nome) que se estende da desembocadura dos rios Eufrates e Tigre, no golfo Pérsico, ao Vale do Nilo, circundando o deserto da Arábia pelo norte e pelo oeste. Nessa região nasceram, desenvolveram-se e morreram as grandes a civilizações antigas da Mesopotâmia e do Egito, bem como as dos povos das regiões intermediárias da Anatólia, Síria e Palestina. É preciso levar em consideração também o deserto, cuja importância na formação do povo de Israel foi notável. Segundo a tradição bíblica, o deserto foi o berço da sabedoria e o ponto de referência dos sábios de Israel.

Israel foi um povo forjado no fogo da história. Assimilando com força singular toda espécie de influxos, jamais perdeu, porém, seus traços essenciais. Interessa-nos estudar aqui somente sua tradição e a literatura sapiencial.

Os livros sapiências da Sagrada Escritura são fruto maduro de um povo adulto. A sabedoria, entretanto, é mais antiga que Israel.

1.1. A literatura sapiencial – as civilizações do Oriente Próximo antigo tiveram seus centros de cultura em seu próprio território: as cortes dos reis e príncipes ou os grandes santuários.

Há séculos o Egito e a Mesopotâmia tem sido considerado o principal berço de nossas culturas ocidentais, documentos escritos datando do terceiro milênio antes de Cristo atestam esse fato. Conhecemos parte da vida real desses povos, a mobilidade de sua gente nos períodos de guerra e em tempos de paz. A cultura não permanecia no lugar de origem, mas percorria as rotas das caravanas e chegava a toda parte. Com os objetos manuais ou de arte chegavam também às formas de pensar e de viver, especialmente com as obras literárias. A elas vamos nos referir nos tópicos seguintes.

1.2. A literatura sapiencial do Egito – desde os primórdios o Egito desenvolveu a literatura sapiencial por meio de instruções ou ensinamentos e também em pequenos poemas. Nas instruções um rei dirige-se ao príncipe herdeiro, um magnata, a seu filho, um escriba, a seu sucessor, todo aluno ou discípulo é chamado indistintamente “filho”. Em alguns poemas abordam-se os grandes temas que preocupam o homem de todos os tempos, os males da vida presente, especialmente as injustiças, as dúvidas perante o que há depois da morte, etc.

Entre as várias instruções que total ou parcial chegaram até nós, destacam-se as seguintes:

A. Máximas de Ptah – hotep. A importância dessas máximas é enorme, podendo ser consideradas o manual mais antigo dedicado à formação integral do filho de um magnata. Tratam praticamente de todos os assuntos peculiares a um funcionário da corte. Literalmente, as sentenças de Ptah – hotep assemelham-se bastante ao Livro dos Provérbios, servindo também de modelo para outros escritos sapienciais. Alguns exemplos:

“A velhice chegou [...], a infelicidade aí está, a debilidade aparece [...]
O que era bom tornou-se mal, todo o sabor desapareceu [...] O que a
velhice causa aos homens é ruim em todos os aspectos”.

“Não responda em estado de agitação.”

“Conhece o sábio pelo que ele sabe, e o nobre por suas boas ações.”

“Deus ama a quem escuta, e quem não escuta é por Deus detestado.”

B. A instrução dirigida a Meri-ka-re. Em uma época de grande instabilidade social, política e cultural, o rei dirigiu-se com serenidade ao seu filho. Seus conselhos são espiritualmente elevados, nobres, como, porém, não refletem exatamente a situação sociopolítica do tempo, é de supor que escribas posteriores intervieram na redação que chegou até nós.

“O charlatão fomenta a discórdia, suprima-o.”

“Se hábil nas palavras para poder convencer, pois a língua é a força do homem.”

“Só se converte em mestre aquele que deseja se instruir.

“Acalme o que chora, não oprimas a viúva, não expulses um homem da terra de seus pais.”

C. A instrução de Duaf-Jeti. A instrução é uma sátira de todos os ofícios manuais. No breve poema desfilam o pedreiro, o ourives, o caldeireiro, o carpinteiro, o joalheiro, o barbeiro, o cortador de cana, o oleiro, o hortelão, o tecedor, o caravaneiro, o embalsamador, o curtidor, o lavadeiro, o passarinheiro e o pescador. Para os que exercem esses ofícios, o autor não tece sequer um elogio, nem qualquer palavra de alento. A finalidade é evidente: fazer com que seu filho se sinta motivado a entrar na escola e tornar-se escriba, por essa razão, enobrece tal trabalho:

“Nada ultrapassa a escritura, é um barco sobre a água”.
“O escriba de nada precisa [...] É a melhor das profissões. Nada na terra
é comparável a ela.”
“Não existe ofício sem patrão, exceto o escriba, pois ele é o próprio amo.”

1.3. A literatura sapiencial da Mesopotâmia – a Mesopotâmia, e de modo geral o oriente geográfico, influenciou Israel de modo marcante, fazendo-se presente em todas as suas instituições, de modo particular no Antigo Testamento. Restringindo-nos à literatura sapiencial, é fato irrefutável a influencia recebida da literatura mesopotâmica.

Os testemunhos sumérios e assírio-babilônicos, classificados pelos especialistas entre os sapienciais, não são tão importantes quanto os do Egito, mas formam um corpo respeitável. Vamos mencionar explicitamente alguns deles.

A. Poema do justo que sofre. O poema, cujas primeiras palavras são “Louvarei o senhor da sabedoria”, é um hino de louvor a Marduc, deus principal da Babilônia, pelos benefícios recebidos. Desde sua descoberta em 1875, esse escrito tem sido considerado o “Jó babilônico” pelas semelhanças com o livro canônico.

O protagonista desse monólogo, devoto de Marduc, questiona por que seu deus permite que um fiel padeça tantas adversidades na vida. O autor relata seus males sem levar em conta os que o causam. Parece que tudo não passa de um assunto particular entre ele e Marduc, senhor dos deuses e dos homens.

“O meu deus esqueceu-se de mim e desapareceu,
minha deusa foi-se embora e permanece distante,
o espírito benevolente que sempre estava junto a mim retirou-se” (I 43-45).

Todos, parentes e amigos, o abandonaram em sua enfermidade. Passado um ano, a situação ainda não melhorou, surgindo uma dúvida que afeta os alicerces de sua fé religiosa: parece que o culto legal e a veneração fiel aos deuses de nada servem, pois a enfermidade segue seu curso irrevogável:

“O meu deus não veio me resgatar, tomando-me pelas mãos; nem
minha deusa teve compaixão de mim ficando a meu lado”.

Chega, porém, a hora da restauração proporcionada pela ação benéfica de Marduc, que “pode devolver a vida a quem está no fundo do poço”. O agraciado reconhece perante todos o dom da saúde e da vida e dá graças a seu benfeitor.

No poema fica claro que a vida inteira e as disposições de Deus são um verdadeiro mistério para o homem:

“Quem pode conhecer a vontade dos deuses do céu?
Quem pode compreender os planos dos deuses do abismo?”

B. Teodicéia babilônica. Trata-se de um poema acróstico (Os acrósticos são formas textuais onde a primeira letra de cada frase ou verso formam uma palavra ou frase. Podem ser simples, com frases ou palavras que não tenham ligação entre si ou podem mesmo ser o encerramento de uma poesia) formado de 27 estrofes, cada uma das quais consta de onze versos começando com a mesma sílaba.

Todo o poema é um diálogo entre um homem que sofre (estrofes ímpares) e seu amigo (estrofes pares). A causa do sofrimento não é a enfermidade, como no poema anterior, mas a situação social do protagonista: é órfão, pobre, desprezado e perseguido. Tem-se aqui um problema filosófico bastante conhecido nos ambientes sapienciais: por que o pobre, o desvalido, apesar de ser justo, piedoso e fiel, não é protegido pelos deuses, ao contrário, é por eles abandonado à própria sorte e às injustiças da sociedade. O amigo confidente responde a cada uma das queixas do aflito, no começo, com os argumentos da tradição ortodoxa, se sofre, é por causa de algum pecado oculto cometido, depois, amparando-se no mistério.

O autor do livro de Jó repetirá mais drasticamente esse mesmo discurso, com exceção da última conclusão do amigo, que responsabiliza os deuses por terem criado o homem mentiroso e por zombarem do pobre e não do rico.

Na última estrofe, as águas revoltas se acalmam, o protagonista pára de se queixar e submete-se ao destino: pede ajuda ao amigo, confessa serenamente sua desgraça e se encomenda piedosamente aos deuses e ao rei:

“Que me ajude o deus que me abandonou;
que se mostre compassiva a deusa [que de mim se esqueceu];
[que se compadeça] o pastor(o rei), o sol do povo”.

C. Disputas e fábulas. Outro tópico importante na literatura mesopotâmica é constituído por fábulas, cujos textos chegaram até nós bastante fragmentados e incompletos. Nelas, plantas e animais discutem entre si: a tamarga e a palmeira, o salgueiro e o loureiro, Nidaba (uma deusa) e o trigo, o boi e o cavalo, a raposa e o cão. Não se trata de meros exercícios literários de fantasia, mas de reflexões sapienciais sobre a vida, amargas sátiras da realidade social.

Cada um dos personagens das fábulas proclama-se o melhor e o mais útil para a vida. São realçadas as qualidades mais afins às propriedades de plantas e animais para o uso e a ornamentação domésticos (a tamarga), para o alimento dos homens (a palmeira); exaltam-se a utilidade do cão e do boi, a fortaleza do leão, a elegância e a força do cavalo, a ferocidade do lobo e a astúcia da raposa.

O desfecho costuma refletir a crua realidade, não correspondendo necessariamente ao que é isto. Assim, no caso da raposa, triunfa a astúcia sobre os demais. As fábulas são, pois, críticas às normas pelas quais se rege a vida na sociedade.

D. Ditos populares, conselhos e provérbios. Esses gêneros, que tanto êxito tiveram nas culturas circunvizinhas a Israel e nas sucessivas até nossos dias, eram conhecidos também na Mesopotâmia. São relativamente poucas as coleções ou grupos desses ditos e sentenças que se conservaram. Apesar disso, provam claramente que o uso do provérbio devia ser muito antigo e familiar nas diferentes culturas que se sucederam na Mesopotâmia. Vejamos alguns exemplos:
‘Fiz caminhar meu irmão, meu irmão caminha como eu”.
“Fiz caminhar minha irmã, minha irmã caminha como eu”.
“a arte de escrever é a mãe dos oradores, pai dos doutos.”

Chegaram até nós muitos outros documentos em que estão contidos numerosos conselhos, advertências, sentenças de sabedoria, soltos ou agrupados. Os que citamos, porém, bastam para dar-nos uma idéia de como floresceram em todo o arco do crecente Fértil ou Meia Lua os gêneros sapienciais. Dessas culturas tão antigas e variadas se nutriam os israelitas durante toda sua longa história.

2. A SABEDORIA EM ISRAEL E SUAS FONTES PRINCIPAIS – Acabamos de tratar da sabedoria, mais concretamente da sabedoria em Israel assim como aparece em sua literatura. Vimos que essa sabedoria não está livre das influências estrangeiras. Ao contrário, alimenta-se positivamente delas. Interessa-nos agora focalizar a sabedoria de Israel em seu ambiente próprio, no contexto local em que nasce e é cultivada. Se possível, seria interessante conhecer seus autores, os sábios, suas raízes mais profundas e o magnífico desenvolvimento e esplendor que ela alcançou com o passar do tempo.

2.1. Sabedoria e sábios – quem são esses personagens anônimos, verdadeiros porta-vozes do sentimento de um povo, que chamamos sábios?

Para nós, hoje, sábio é uma pessoa culta, de conhecimentos amplos ou especializados em um ramo do saber. Na Antiguidade chamava-se sábio a pessoa que possuía mestria, habilidade em qualquer área da atividade humana, designava a pessoa experiente em qualquer coisa, da magia aos trabalhos manuais ou de alta especulação.

Constitui um verdadeiro problema entre historiadores e exegetas do antigo Israel determinar quem eram esses homens chamados sábios que habitavam principalmente a corte dos reis de Judá e Israel. Os autores os qualificam de sábios de muitas maneiras. Trata-se de profissionais e não profissionais que possuíam boa cultura para aqueles tempos. Cobrem um longuíssimo período, que vai do começo, ou talvez antes, da monarquia em Israel ao final do Antigo Testamento e com certeza depois dele.

São identificados com os mestres da corte, educadores dos príncipes, funcionários e oficiais reais, secretários, conselheiros, etc. são os mestres da família de classe alta que vive na corte ou fora dela, ou também os mestres populares, futuros escribas ou peritos na Lei.

O sábio ou mestre de sabedoria era tão estimado em todo o Oriente antigo, da Mesopotâmia ao Egito, que recebeu o nome de pai, e suas lições ou conselhos eram dirigidos aos seus alunos: reis ou plebeus, como aos seus filhos. Disso os sapienciais do Antigo Testamento são eloqüente testemunho (Pr. 1,8; 2,1; 3,1)

Constituíam os sábios uma classe profissional como a dos profetas ou a dos sacerdotes?

Alguns afirmam taxativamente que sim, outros, no entanto, negam ou não se atrevem a opinar. Mais uma coisa ninguém questiona: a grande atividade desses sábios. Além de sua função de conselheiros, administradores, mestres, etc., desenvolveram uma atividade literária cujos frutos chegaram até nós. Houve um momento de florescimento literário que alguns chamaram de Ilustração salomônica. Assim se explicaria melhor a relação da tradição dos livros sapienciais com Salomão, porque em seu tempo se cultivou especialmente a sabedoria. A obra anônima desses sábios, como a de quase todos os autores da Antiguidade semita, foi criadora, transformadora e compiladora. Graças à atividade incansável dos sábios é que herdamos tão precioso legado.

2.2. Luta entre profetas e sábios – o estudo das relações entre sábios e profetas em Israel ocupa lugar de destaque entre os autores modernos, pelo importante papel que uns e outros desempenharam na história daquela região. Em torno do tema Luta entre profetas e sábios se orientaram muitos trabalhos de historiadores do Israel antigo e de exegetas.

Essa luta começa com Isaías, que fustigava os “sábios a seus próprios olhos” (Is 5,21). Os que se consideram sábios são os conselheiros reais. Daí os oráculos de Isaías serem dirigidos contra os sábios de Israel ou os conselheiros do faraó do Egito: Is 29,14; 30,1-5; 31,1-3; contra os conselheiros do faraó: Is 19,11, e, por fim, contra o rei da Assíria: Is 10,13. Isaías não concorda com a política do rei Ezequias e seus conselheiros da corte de origem egípcia. No fundo do pensamento de Isaías, está latente o argumento teológico: os israelitas buscam a solução, sua salvação, nos meios humanos à margem de sua fé em Deus (cf. Is 30,1-5; 31,1-3). Essa tese já fora proposta pelo profeta: “Se não credes, não sobrevivereis” (Is 7,9), e agora, a repete com outras palavras: “Vossa salvação está em vos converterdes e terdes calma: vossa valentia consiste em confiar e manter a tranqüilidade” (Is 30,15).

Com Jeremias, a luta entre profetas e sábios chega a seu ponto culminante. Em sua época, o governo e a direção espiritual do povo estavam nas mãos dos sacerdotes, sábios (anciãos) e profetas (Jr 18,18 fala de sacerdote, sábio, profeta; Ez 7,26, de sacerdote, anciãos, profetas). Jeremias lutará com todos os sacerdotes (20,1-6), os falsos profetas (28), os sábios de Israel (8,8-9; 9,11), os de Temã (49,7) e os de Babel (50,35).

2.3. As fontes da sabedoria em Israel – procuramos ver de que mananciais brotam a sabedoria, ou seja, onde o homem em geral e o israelita em particular se nutre para tornar-se sábio. Englobamos tanto a sabedoria popular como a culta, a profana como a sagrada, visto que nos documentos a que recorremos não se faz distinção entre uma e outra e porque nosso interesse está voltado para a sabedoria como bem apreciado pelo homem. Geralmente os autores se sentem à vontade em admitir que a antiga sabedoria, em sua fase oral ou pré-literária, se enraíza no húmus do povo, entendendo-se húmus como a base sociológica mais ampla de uma população em determinada época.

É na convivência diária de uns com outros que se aprende de fato a driblar os perigos que nos espreitam, a aproveitar as ocasiões oportunas, a utilizar devidamente o tempo e nossas qualidades, ao descobrir o valor das coisas, o sentido dos acontecimentos e da própria vida. Tudo isso, e muito mais, fica para sempre gravado não em pedra ou em madeira, mas em ditados fáceis e breves que o povo sabe apreciar e conservar.

3. A SABEDORIA E O SÁBIO NO ANTIGO TESTAMENTO – Os termos sabedoria e sábio significaram sempre a mesma coisa? Ou podemos supor com razão que houve neles certa evolução? Que, com o tempo, matizes diferentes foram ressaltados?

A concepção moderna de sabedoria/sábio reflete-se principalmente nos dicionários. Vejamos o que nos dizem as grandes autoridades. Segundo o dicionário da Real Academia da Língua Espanhola (DRALE): “Sabedoria. 1. Conduta prudente na vida ou nos negócios. 2. Conhecimento. 3. Qualidade do sábio”. Sábio corre paralelo a sabedoria. 4. De bom juízo, sensato. 5. Aplica-se aos animais dotados de muitas habilidades.

Os aspectos intelectuais ou cognitivos predominam sobre os práticos ou de conduta. Seria esta a concepção dos antigos (especialmente do AT) sobre sabedoria/sábio? Não exatamente. Daí a necessidade de matizar, confrontando qualquer afirmação com os diversos textos. Nota-se sem muito esforço que a orientação fundamental das reflexões dos autores bíblicos é mais de caráter prático que teórico. Mesmo assim, os autores antigos em geral e os sagrados em particular não se interessam por estabelecer uma distinção nítida entre as duas dimensões, como costumamos fazer. Isso porque consideram a realidade humana uma unidade global indivisível, ao passo que a fragmentamos em muitos aspectos (neste caso, o teórico e o prático). Todavia, temos de confessar que, à medida que o tempo passa, os autores bíblicos mais recentes distinguem com maior clareza os aspectos quer na ordem do conhecimento quer na ordem das atitudes morais (teórico/prático; verdadeiro-bom/falso-mau, etc.). Isso será confirmado mais adiante com o testemunho dos textos.

São numerosas as passagens originais da Escritura (tanto em hebraico como em grego) que nos falam da sabedoria e dos sábios. Nossa intenção é revelar a pluralidade de significados do mesmo vocábulo original hebraico ou grego: sabedoria/sábio.
Na exposição seguiremos uma ordem lógica e sistemática que apenas em parte se identifica com o processo real temporal dos conceitos sabedoria e sábio:

●1. Sabedoria/sábio com relação às artes e aos ofícios
1.1. Habilidade, perícia, destreza = sabedoria
1.2 .Artífice, artista, artesão = sábio
●2. Sabedoria/ sábio com relação ao trato interpessoal
2.1. Sabedoria: sagacidade, engenho, talento
2.2. Sabedoria: saber acumulado, ciência, doutrina
2.3. Sábio: astuto, sagaz
2.4. Sábio: douto, perito
●3. Sabedoria/ sábio e a prudência política
3.1. A Sabedoria ou arte de governar
3.2. O governante ideal deve ser sábio
●4. Sabedoria/ sábio: prudência, sensatez/prudente, sensato
4.1. Sabedoria: prudência, sensatez, saber fazer na vida
4.2. Sábio: prudente, sensato
4.3. A verdadeira e a falsa sabedoria
●5. Sabedoria/ sábio e o plano do divino
5.1. Deus é a fonte da sabedoria
5.2. Deus age sabiamente, com sabedoria
5.3. Deus pode conceder a sabedoria e realmente a concede
●6. Fenômeno da personificação da sabedoria
6.1. A sabedoria na esfera do humano
6.2. A sabedoria é a Lei do Senhor
6.3. A sabedoria, atributo divino
6.4. Conteúdo real da personificação da sabedoria
7● O temor do Senhor e a sabedoria
7.1 O temor do Senhor é o princípio da sabedoria
7.2. Com o temor do Senhor adquiri-se a sabedoria e chega-se às coisas do alto

4. O LIVRO DE JÓ – O livro de Jó é um dos pontos literários mais altos a que chegou o homem na história da literatura universal. Sem dúvida, Jó é o livro mais difícil de todos os sapienciais do Antigo Testamento. Sua linguagem é altamente poética, em torno do tema, singular, giram e giram longuíssimos e monótonos monólogos.

O autor magistralmente um homem justo, triturado pelo sofrimento, que busca com tenacidade uma explicação da situação em que padece. Jó remove céus e terra, enfrentando a Deus e aos homens. Nada o faz recuar, a tudo se arrisca, sempre consciente de sua inocência. Queixa-se e grita desesperadamente para que Deus rompa o silêncio e de uma vez para sempre a justiça seja feita. O grito de Jó perde-se na noite escura de sua alma como lamento em poço sem fundo, voz no meio do deserto. Apesar disso, o autor guarda uma surpresa para o fim, para o leitor e para o próprio Jó.

4.1. Problemas introdutórios – antes de analisar a parte mais significativa do conteúdo do livro, fazemos referência a vários temas-chave para a compreensão de seu enigmático conteúdo.

Em linhas gerais, a estrutura do livro de Jó é clara: um prólogo (1-2) e um epílogo (42,7-17) em prosa encerram um poema em verso (3,1-42,6). Ao menos em parte, o poema está concebido em forma de diálogo, na realidade, consta de longuíssimos monólogos de Jó e de seus amigos, um após o outro, somando-se a isso uma longa e inesperada intervenção de um personagem chamado Eliú (32-37). Há indícios de esses capítulos terem sido acrescentados ao poema por mão distinta.

Certamente é preciso falar de uma pluralidade de autores originais, todos desconhecidos. Quando dizemos autor de Jó, o singular é coletivo, a não ser que o reservemos para o redator final, que nos deixou o livro assim como chegou até nós, a exceção de possíveis mudanças de lugar de algumas passagens. Pertence aos sábios e é dos mais representativos do gênero não só na literatura israelita, mas também na literatura internacional do antigo Oriente Médio.

O gênero literário, se é que podemos falar no singular, é muito variado, em seu conjunto, não existe igual nem em Israel nem fora dali. O marco do poema, ou seja, o prólogo e o epílogo, pertence ao gênero dos contos de anedotas folclóricas, mas também assimilado pelos sábios. O poema em si é uma jóia da literatura sapiencial. Distingui-se dos demais livros sapienciais do Antigo Testamento por tratar fundamentalmente de um só tema e pela forma dialogada em que o desenvolve. A obra é lírica e didática às vezes, e o gênero sapiencial não é o único: há diálogos, hinos, discursos, sentenças, processo judicial, etc.

A data da composição varia conforme as partes. No que diz respeito ao prólogo e ao epílogo, foi possível contar com um material muito antigo, adaptado mais ou menos pelo autor do poema. Quanto à data, tudo indica que o poema foi escrito depois do desterro babilônico.

O poeta tem afinidade de linguagem com o Segundo Isaías, mas não parece posterior a ele, de fato, não conhece o verbo bãrã para expressar a ação criadora de Deus, nem a teoria da substituição vicária para explicar o sofrimento do justo: duas notas muito próprias do Dêutero-Isaías; a datação mais apropriada poderia ser o começo do século V a.C.

O Livro de Jó é conhecido por seu personagem principal e, em especial, como aparece nos dois primeiros capítulos. Jó é o tipo do homem paciente e sofrido, que aceita as desgraças, como aceita as bênçãos da parte de Deus:

“Nu saí do ventre de minha mãe,
e nu a ele voltarei.
O Senhor deu, o Senhor tirou:
bendito seja o nome do Senhor!”(1,21).

Menos conhecida é a parte poética do livro em que aparece o outro Jó. Não existe na Bíblia um personagem que mais se queixe de suas dores e sofrimentos do que este Jó, protótipo do homem rebelde. É, pois, necessário falar desses dois personagens, cujo nome é o mesmo. Trataremos primeiramente do Jó paciente e depois do rebelde.

4.2. O Jó paciente – Referimo-nos aqui ao Jó do prólogo (cf. 1-2), apresentado como o homem ideal, moralmente perfeito: “Uma vez no país de Hus havia um homem chamado Jó: era justo e honrado, religioso e não conivente com o mal”. Jó é o herói protagonista de um conto oriental, como demonstram o ambiente familiar que o cerca e as riquezas fabulosas que possui. Além disso, na ficção da cena celeste, o autor eleva Jó a paradigma universal do homem, segundo os planos de Deus: “Reparaste o meu servo Jó? Na terra não há outro como ele: é um homem justo e honrado, religioso e não conivente com o mal” (1,8;2,3).

Satã aqui nada tem a ver com o Satanás posterior do judaísmo, o adversário de Deus e dos homens. Satã, pura criação literária, cumpre uma função na corte celeste: é aquele que fiscaliza o reino, aquele que examina e acusa os homens, é, em particular, o acusador de Jó: “E acreditas que [Jó] teme a Deus em vão?” (1,9). Acaso não é fácil ser piedoso e íntegro quando se vive na abundância e sem necessidade de superar uma mínima contrariedade? Que mudem as coisas e logo veremos.

Jó é submetido a um exame rigoroso para ver se sua piedade religiosa e sua integridade moral são produtos de uma atitude interessada ou, pelo contrário, conseqüência de uma relação de gratuidade, lealdade e amor entre ele e Deus. Satã aposta na atitude interessada de Jó, Deus está seguro da fidelidade desinteressada de seu servo. Quem ganhará a aposta? Jó sofre três avalanches devastadoras em círculos concêntricos que vão do mais exterior ao mais interior. Primeiro perde todas as suas posses (1,12-17), depois, todos os seus filhos (1,18s), e por último é ferido “com chagas malignas da planta dos pés ao alto da cabeça” (2,7). E supera com honra todas as provas: “Apesar de tudo, Jó não pecou nem acusou Deus de desatino” (1,22; cf. 2,10). Dele Deus se sente orgulhoso (cf. 2,3).

Este é o Jó justo e paciente, figura gigantesca e sobre-humana, criada pelo autor para servir de ponto de referência na discussão posterior sobre o sentido ou a falta de sentido do sofrimento humano.

O autor focaliza muito bem o problema a nós apresentado no caso mais extremo possível: um homem justo e perfeito diante de Deus, que sofre pacientemente e inimagináveis adversidades.

Como é possível resolver esse enigma: que um justo sofra injustamente com o consentimento de Deus? Como se pode estar de acordo com essa realidade, não ficção, que tantas vezes se repete na vida (por exemplo, no sofrimento das crianças inocentes)? Como conciliar isso com o que sempre se ensinou sobre a bondade e a justiça de Deus? Diante do incompreensível e inexplicável, o silêncio vale somente como primeira resposta. Além disso, qual deve ser a resposta definitiva ao problema formulado? A esta pergunta responde o autor do poema 3,1 – 42,6.

4.3. O Jó rebelde – sabemos pelo capítulo anterior que a evolução no modo de pensar dos sábios de Israel põe em dúvida aquilo que desde tempos imemoriáveis se afirma em Israel acerca da retribuição: os bons no tempo oportuno seriam premiados por Deus na vida antes da morte; e os maus, castigados.

A retribuição já aparecera como tema antigo em Israel, mas nem sempre a perspectiva fora a mesma. No começo a preocupação era mais com o interesse comunitário e coletivo que com o individual, o aspecto negativo e punitivo foi destacado excessivamente: por culpa de um ou de poucos, muitos pagaram, às vezes, contudo, o aspecto positivo também foi levado em consideração: a inocência de uns poucos garantia o perdão de muitos: “Eu, o Senhor, teu Deus, sou um Deus zeloso: quando me aborrecem, castigo a culpa dos pais nos filhos, netos e bisnetos, porém, quando me amam e guardam meus preceitos, ajo com lealdade por mil gerações” (Ex 20,5s; cf. Gn 18,24-32; Js 7,2).

Quanto à retribuição individual, foi prontamente formulada como princípio em Dt 24,16, incluída nos códigos legais (cf. 21,22ss) e aplicada em 2Rs 14,5s: “Quando [Amasias] consolidou seu poder, matou os ministros que haviam assassinado seu pai. Todavia, conforme o livro da Lei de Moisés [Dt 24,16], promulgada pelo Senhor: “Os pais não serão executados pelas culpas de seus filhos, nem seus filhos pelas de seus pais, cada um morrerá por seus pecados”, acertadamente, não matou os filhos dos assassinos”. Ez 18 e 33,1-20 expressam a doutrina geral sobre o modo de Deus agir.

Essa doutrina aguçou o problema da fé em um Deus justo, pois se via claramente quem em muitos casos o malvado prosperava e o justo caía na desgraça. Se o horizonte de esperança individual não ultrapassava os limites impostos pela morte, o problema de justa retribuição não fica de modo algum solucionado. No caso dos inocentes que sofrem, ele se agrava ainda mais.

5. DEUS RESPONDE A JÓ NO MEIO DA TORMENTA – Não se pode dizer que seja uma surpresa a intervenção direta de Deus no fim do livro de Jó. O autor do poema preparou esse comparecimento ou “teofania” com as reiteradas petições de Jó, a última em sua derradeira intervenção: “Oxalá houvesse quem me escutasse! [...] Que responda o Todo – Poderoso (31,35).

Como bom diretor, o autor é quem dirige a cena do drama. Ele está por trás de cada personagem, inclusive de Deus, personagem principal. Toda a ação do livro orienta-se para o momento final: o encontro de Jó com Deus. O livro inteiro careceria de sentido se no fim não aparecesse Deus para falar. Talvez se tenha colocado demasiada esperança nesse momento final. Foram muitas as perguntas feitas e os problemas que ficaram sem solução. Na realidade, quem vai responder é o autor, o mesmo que propôs os enigmas. Na ficção literária o autor vale-se de Deus para expressar solenemente suas próprias convicções, as soluções que dá aos problemas formulados por Jó. Tais soluções correspondem à capacidade do autor, não aos atributos divinos da sabedoria, bondade, justiça, poder, etc. Por isso não podem satisfazer plenamente, tendo de estar abertas a ulteriores propostas conforme o desenvolvimento da mesma fé em Deus.

5.1. Deus fala do meio da tormenta – “Então o Senhor responde a Jó do meio da tormenta” (38,1; 40,6) :
Isso nos traz à memória passagens conhecidas do Antigo Testamento. Nas numerosas manifestações de Deus ou teofanias estão presentes fenômenos atmosféricos, à semelhança de uma tormenta com raios e trovões. A mais solene de todas, a do Sinai, é descrita da seguinte maneira: “Pelo amanhecer do terceiro dia, houve trovões e relâmpagos e uma nuvem densa no monte, enquanto o toque da trombeta aumentava [...]. O monte Sinai converteu-se em fumaça, porque o Senhor nele desceu em fogo, a fumaça levantava-se, como de um forno, e toda a montanha estremecia [...] Moisés falava, e Deus respondia com trovões. O Senhor desceu no cume do monte Sinai e chamou Moisés para subir ao cume” (Ex 19,16-20; 20,18; Sl 50,3).

O recurso literário do autor põe em evidência o respeito absoluto diante de Deus. A tormenta sugere-nos o oculto, o indecifrável, o incompreensível de Deus, em uma palavra: seu mistério.

5.2. Deus acusa Jó – os autores reconhecem a existência de certo desconcerto na disposição atual dos discursos de Deus (38-39; 40,6-41,26). Duas breves intervenções de Jó fecham cada uma das falas de Deus (40,3-5; 42,1-6). Jó interpelara a Deus em muitas ocasiões e o acusara de muitas coisas (cf. 3.3.c.), parecendo ter saído vitorioso, agora Deus vai responder, e com uma série interminável de interrogações.

De forma alguma Jó é acusado de delito, mas de excesso de palavras em sua atrevida ignorância: “Quem é esse que denigre meus desígnios com palavras sem sentido?” (38,2). Deus não ignora aquele que se atreveu a criticar seus desígnios: ele conhece Jó muito bem. A pergunta “quem é esse” é puramente retórica e dá início a uma série de interrogações que assinalam o significado da resposta: só Deus é quem com pleno direito pode perguntar e exigir uma resposta, o homem deve estar sempre preparado para responder ao Senhor: “Se és homem, cinge-te os rins, eu vou te interrogar, e tu me responderás” (38,3; 40,7).

E claro que Deus tem seus planos e seus desígnios sobre o mundo em geral, sobre os homens no mundo e sobre cada indivíduo em particular. Mas o homem não pode abarcar esses planos e desígnios nem compreendê-los, por sua amplitude em comparação com a pequenez e a limitação humana e, sobretudo, porque são divinos. Esses são os sentimentos expressos em Is 55,8s:

“Meus planos não são vossos planos,
vossos caminhos não são meus caminhos
-oráculo do Senhor-
Como o céu está acima da terra,
meus caminhos são mais altos que os vossos,
meus planos mais que vossos planos”.

Jó não compreende sua própria história de sofrimento nem os planos e desígnios de Deus. Por isso maldisse sua existência (cf. 3,1ss), rebelou-se contra Deus (cf. 9,15 – 10,22). O sofrimento minou sua existência:

‘Que forças me restam para resistir?
Que destino espero para ter paciência?
Minha força é a da rocha,
ou de bronze é minha carne?
Eu não encontro apoio em mim,
e a sorte me abandona” (6,11-13).

Em várias ocasiões, Jó reconhece que esse sofrimento desmedido o faz entrar em desvario, mas também confessa: “foi Deus quem me transtornou” (19,6; cf. 23,16). Dessa maneira, Jó denegriu os desígnios de Deus com palavras sem sentido. Ele não consegue decifrar os desígnios misteriosos do Senhor que coloca em provação seu fiel servidor de modo tão peculiar. Seu coração não está longe do Senhor, mas suas palavras são inadequadas, não têm sentido.

Por sua vez, Deus vai reconduzir Jó ao caminho da sensatez, estendendo diante de seu olhar atônito a paisagem sem fronteira de sua obra, a criação, da qual Jó não é mais que um minúsculo átomo e sem relevância. Deus não pretende envolver Jó mais uma vez com a avalanche visual e mental do andamento da criação, tampouco aniquilá-lo com seu poder criador. Ao contrário, quer que ele tome consciência do lugar que ocupa no meio de uma realidade que ultrapassa no tempo e no espaço. Uma avalanche de perguntas, formuladas de modo irônico, cai sobre o aturdido Jó. Todas visam mostrar, por um lado, a sabedoria ilimitada de Deus e seu poder incomparável e, por outro, a insignificância de Jó e sua ignorância extrema:

“Onde estavas quando alicercei a terra?
Dize-me, se é que sabes tanto.
Quem determinou suas dimensões? – se o sabes – [...]
Verificaste a largura da terra?
Conta-me, se tudo sabes.
Por onde se vai à casa da luz [...]
Deves saber, pois já havias nascido naquele tempo
e vivido por tantos e tantos anos” (38,4s. 18-21).

6. EPÍLOGO DO LIVRO DE JÓ – o final do livro de Jó (42,7-17) retorna à prosa e em certo sentido nos recorda o prólogo (1-2), mesmo que nele notemos ausências e silêncios significativos: nada se diz da mulher de Jó, nada de Satã, que solicitara e provocara a prova de Jó. Assombra-nos, entretanto, as palavras que o Senhor dirige a Elifaz de Temã, as quais contêm o ditame definitivo sobre o poema inteiro: “Estou irritado contra ti e teus dois companheiros porque não falastes com retidão a meu respeito, como o fez meu servo Jó” (42,7).

É lógico pensar que foram os amigos de Jó que falaram bem de Deus, já que não o acusaram de nada e defenderam a justiça e a eqüidade, Jó, por outro lado, não cessou em suas queixas e acusou abertamente a Deus de ser injusto para com ele.

Não esqueçamos que a maneira de pensar do autor de Jó não é precisamente a mesma que a dos amigos de Jó. O autor do poema e Jó se identificam. Uma vez que Jó se reconciliou plenamente com Deus, formal e pessoalmente (cf. 42,1-6), Deus aprova e aceita a atitude dele como acertada, por ser nobre e sincero de coração. As palavras de Deus assim o demonstram, e o final feliz da vida de Jó o confirma: “O Senhor abençoou a Jó muito mais ainda no fim de sua vida que no começo” (42,12).

7. ECLESIASTES OU QOHÉLET – Tratamos da crise que a sabedoria sofreu em Israel. No capitulo anterior vimos como Jó levantava a voz embargada pela dor contra certos ensinamentos alheios à realidade do dia-a-dia, ou seja, que o caminho dos justos conduz ao triunfo e o dos malvados à ruína total. No presente capítulo, confirmaremos como a mesma corrente crítica de Jó, séculos depois, continuava viva em Qohélet. Se o autor de Jó fala a partir da experiência religiosa profunda como teólogo, Qohélet o faz a partir da racionalidade como pensador ou filósofo. Qohélet encara violentamente as contradições da vida. Seu senso de humor, seu equilíbrio mental e sua descoberta de Deus como único ponto de apoio, absoluto e firme em meio a uma realidade inconsistente, mantêm-no a flutuar contra toda esperança e lógica.

7.1. Problemas introdutórios – antes de traçar o esboço dos ensinamentos do livro chamado Eclesiastes ou Qohélet, é oportuno dizer algumas palavras sobre o suposto autor e sobre o lugar e o ambiente histórico em que viveu e escreveu o livro.

7.2. Quem é o autor do livro – à primeira vista parece não ter sentido perguntar sobre o autor de Eclesiastes, pois o livro começa precisamente com estas palavras: “Palavras de Qohélet, filho de Davi, rei de Jerusalém”, as quais só podem se referir a Salomão. De fato, a tradição dos judeus é firme em atribuir esse livro a Salomão, os Santos Padres primeiro e os escritores sirácidas depois se encarregam de recordar a mesma coisa. Até o século XVII mantém-se tranqüilamente essa tradição, que continua também depois, embora já não tão tranqüilamente, mas em contínuas controvérsias.

Foram necessários quase três séculos de polêmica para se reconhecer abertamente que Salomão não foi o autor de Eclesiastes, mas um sábio de sobrenome Qohélet.

Contestada a identificação entre Qohélet e Salomão, surge a necessidade de caracterizar o autor que se diz Qohélet. De qualquer forma, não procuramos uma biografia, mas agrupar o que direta ou indiretamente nos fornece o próprio livro.

A maioria dos autores sustentam que certo discípulo de Qohélet escreveu o que lemos no epílogo: “Qohélet, além de ser um sábio, instruiu permanentemente o povo, e escutou com atenção e investigou, compôs muitos provérbios, Qohélet procurou encontrar palavras agradáveis e escrever a verdade com acerto” (12,9-10). Essas breves notas informam de modo verídico a respeito do autor, mas o epílogo é apenas um ponto de partida para análise. O estilo, o humor e o tom do livro nos mostram facetas interessantes do autor.

Sinceramente, não há como colocar em dúvida a fé judaica do autor. Mesmo assim, é coerente quando se afirma que a Judéia é sua pátria de origem, e, embora pareça ser a Judéia, o lugar mais adequado é Jerusalém. Assim, pois, Qohélet certamente foi um judeu de Jerusalém, pertencente a uma família bem abastada, da classe alta ou da aristocracia, já que o humor espiritual que os ensinamentos refletem no livro é o de um aristocrata um tanto distanciado da realidade.

É possível determinar o estado civil de Qohélet? Levando em consideração que o fato de manter-se celibatário era uma exceção entre os judeus e que o próprio Qohélet recomenda o contrário em 9,9: “Desfruta a vida com a mulher que amas”, o mais lógico é pensar que era casado.

A personalidade de Qohélet é bastante complexa. Enfrenta de maneira contundente os mais graves problemas humanos de toda ordem e põe em xeque as soluções tradicionais, consideradas intocáveis. Essa audácia e a árdua tarefa de buscar fórmulas literárias adequadas supõem uma personalidade muito acentuada. Tudo é feito com a utilização de formas e métodos novos, e de cara limpa, diante dos representantes do poder e da intelectualidade do povo. Para agir assim era preciso uma forte personalidade, com características muito díspares e até mesmo contraditórias: conservador e inovador, cético e de firmes convicções, como veremos no tópico seguinte:

Atitudes de Qohelét na vida. Qohélet tem plena consciência do que “é investigável” pelo homem e do que “não é”. Isso quer dizer que a “a priori” exclui de seu campo de reflexão, e sem dúvida, da observação, apenas a existência de Deus, tudo o mais pode ser investigado. Parafraseando o próprio Qohélet: não se podem confundir “as coisas que se sucedem sob o sol” com “o que está sobre o sol”, isto é, Deus e seu mundo, o impenetrável, o mistério.

Qohélet é um bom observador. A realidade próxima do homem, “o que sucede sob o sol”, é o foco de toda a atenção de Qohélet. Este é o seu meio natural, em que se move como peixe na água: “Dediquei-me a investigar e a explorar com sabedoria tudo que se faz sob o sol” (1,13), “Examinei todas as ações que se fazem sob o sol” (1,14), “observei a tarefa que Deus impôs aos homens” (3,10). Com suas afirmações categóricas, universais, evidentemente hiperbólicas, Qohélet dá-nos a impressão de que não existe parcela da realidade que não tenha analisado pessoalmente, como cabe, segundo ele, ao verdadeiro sábio: “Tudo isto eu examinei com sabedoria. Eu disse: vou me fazer sábio” (7,23).

Qohélet é um crítico radical. O que Qohélet vê no âmbito das relações inter-humanas, a seu redor, não é nada alentador, é o mesmo que tantos outros viram e vêem, sejam sábios ou responsáveis, em maior ou menor medida, pela marcha da comunidade humana. A diferença é a seguinte: se não satisfaz o que lhe ensinaram desde pequeno na sinagoga, na escola, no templo, ele não permanece calado como os demais.

Qohélet não é um moralista, nem levanta sua voz como os antigos profetas, mas como sábio constata a contradição evidente entre o que se ensina e o que acontece: “Isto eu sei: “Tudo vai bem para os que temem a Deus, porque o temem, porém nada vai bem par ao malvado [...]” (8,12-14 – 7,15).

Pode-se afirmar que essa constatação, em Qohélet, é o principal fundamento de sua visão crítica da realidade e, por conseguinte, da crítica implacável que faz ao que tradicionalmente se tem ensinado. Qohélet confrontou o ensinamento tradicional em coisas tão graves quanto a negação de qualquer retribuição, a impossibilidade de conhecer os sentimentos de Deus para com o homem, a avaliação do poder, das riquezas, da família.

Impõe-se, pois, uma visão extremamente crítica de Qohélet na vida: absolutamente tudo que o homem tem a seu alcance, tudo que está e sucede sob o sol é vazio, fumaça, vento, e ir atrás disso é ir à caça de vento.

7.3. Data e lugar de composição do Eclesiastes - As afirmações sobre o tempo e lugar de composição do Eclesiastes estão intimamente ligadas às opiniões sobre o autor. Para os que nos tempos antigos defenderam a autoria salomônica, naturalmente o tempo e o lugar em que foi escrito são os mesmos do rei sábio, “filho de Davi, rei em Jerusalém”. Negada a paternidade salomônica, foram indicadas como datas de composição do Eclesiastes o período da dominação persa (539-333 a.C.), o tempo imediatamente posterior ou começos da época grega (333 a 300 a.C.), e até a metade do século II a.C.

É possível estabelecer a data limite depois da qual não pôde ter sido escrito?

Contamos com um ponto de referência certo: a descoberta dos fragmentos do Eclesiastes na gruta 4 Qumran (Os Manuscritos do Mar Morto formam uma coleção de cerca de 930 documentos descobertos entre 1947 e 1956 em 11 cavernas próximo de Qumran, uma fortaleza a noroeste do Mar Morto, em Israel (em tempos históricos uma parte da Judéia). Estes documentos foram escritos entre o século III a.C. e o primeiro século depois de Cristo em Hebraico, Aramaico e grego. A maior parte deles consiste em pergaminhos, sendo uma pequena parcela de papiros e um deles gravado em cobre. Os manuscritos do Mar Morto foram classificados em três grupos: escritos bíblicos e comentários, textos apócrifos e literatura de Qumram.) e datados até o ano 150 a.C. A maioria dos autores reduz ainda mais a faixa de tempo disponível, ao afirmar que o livro foi escrito antes do Sirácida, já que Jesus Ben Sirac, ao que parece, fez uso dele.

Há bastante tempo a opinião mais comum diz que o Eclesiastes foi escrito no século III a.C. Nota do autor: “Minha opinião pessoal é de que o autor provavelmente o escreveu durante a segunda metade do século III a.C., muito próximo do ano 200. Esse espaço de tempo é um marco mais que suficiente para satisfazer as exigencias lingüísticas e históricas derivadas do livro.”
Quanto ao lugar de composição, a maioria prefere a Palestina e, nela, a região da Judéia e sua capital Jerusalém. Mas outras três regiões foram propostas para a composição do Eclesiastes, ainda que sem êxito: Babilônia, Fenícia e Egito.

7.4. Fontes de inspiração do Eclesiastes – Neste tópico indicamos apenas algumas influências literárias que podem ser descobertas no livro em questão. Como toda obra literária, o Eclesiastes nasce em determinado meio, e seu autor é uma pessoa exposta às influências ambientais, às correntes de pensamento de seu tempo. O autor é um homem culto, um escritor de grande originalidade. Necessariamente tinha de estar aberto aos ventos culturais que sopravam na Palestina de seu tempo. (Palestina (em árabe فلسطين, translit. Filasṭīn; em hebraico פלשתינה; em grego Παλαιστίνη, transl. Palaistinē, e em latim Palæstina), é a denominação histórica dada pelo Império Britânico a uma região do Oriente Médio situada entre a costa oriental do Mediterrâneo e as margens do Rio Jordão.) Há quem considere Qohélet o exemplo de verdadeiro sábio, aberto a todas as correntes, sem perder sua identidade israelita, outros, entretanto, nao admitem a influência maciça não israelita.

●O Eclesiastes e o helenismo. No fim do século passado e no começo deste, afirmava-se entre os especialistas que o autor do Eclesiastes teria bebido diretamente nas fontes gregas e do helenismo, especialmente em Hesíodo, Teognis e nas correntes da filosofia popular.
●O Eclesiastes e a literatura mesopotâmica. Desde o começo, Israel esteve em contato direto com a cultura mesopotâmica, por essa razão a influência da Mesopotâmia e, em geral, do oriente geográfico em Israel fora quase um dogma cultural. O que nos interessa neste momento é determinar o grau dessa influência literária para o Eclesiastes.
●O Eclesiastes e a literatura egípcia. O Egito, como a Mesopotâmia, está presente na história do povo de Israel e em todas as suas manifestações. Política, social e culturalmente, a Palestina depende do Leste e do Sul. É território de passagem obrigatoria entre os dois grandes focos de civilizações antigas. A cultura hebraica alimenta-se com toda a certeza pelo menos das duas grandes culturas que a circundam. De maneira especial, chamamos a atenção sobre as possíveis influências da literatura sapiencial egípcia na literatura hebraica. Esse gênero de literatura foi muito mais rico e abundante no Egito que na Mesopotâmia.
●O Eclesiastes e o Antigo Testamento. Por muita abertura que se queira descobrir no Eclesiastes, parece natural que Qohélet esteja mais perto dos sábios de seu povo que de todos os sábios e filósofos da Grécia, do Egito ou do Oriente. Ele conhecia muito bem os que em seu tempo eram considerados Livros Sagrados, em primeiro lugar o Pentateuco ou a Torah. As alusões ao Gênesis no Eclesiastes são numerosas, por outro lado, os contatos literários com o Êxodo, o Levítico e Números são escassos.

Entretanto, onde encontramos mais afinidades e onde provavelmente Qohélet mais se inspira é no corpo dos livros da sabedoria. São numerosas passagens de Provérbios citadas como paralelos do Eclesiastes, as quais provavelmente exerceram influência sobre ele. Apesar disso não se silenciam as profundas discrepâncias entre a sabedoria tradicional, representada por Provérbios, e o inconformista Qohélet.

O Eclesiastes tem pontos de contato com o Livro de Jó. Concretamente não se podem estabelecer dependências literárias, nem referências de vocabulário, mas temas comuns: desvalimento do homem ao nascer (cf. Ecl 5,14 e Jó 1,21), a sorte do aborto (cf. Ecl 6,4s e Jó 3,11-16), a concepção do* sheol onde toda lembrança é apagada (cf. Ecl 9,5-7 e Jó 14,21s), a incerteza humana sobre a obra de Deus (cf. Ecl 11,5 e Jó 38,2-4; Ecl 12,7 e Jó 34,14).

*(Sheol, Xeol ou Seol, (pronunciado "Sheh-ol"), em Hebraico שאול (She'ol), é o "túmulo", ou "cova" ou "abismo"). A palavra "hades" (=submundo) substituiu "sheol" quando - por decreto - a escrituras hebraicas foram vertidas para o grego ( ver Septuaginta) na antiga Alexandria por volta do ano 200 A.C.




terça-feira, 8 de março de 2011

O que Jesus pensava sobre o seu retorno Iminente?

O Equívoco de Jesus Sobre Sua Volta

A Bíblia é a fonte original de informações sobre a vida de Jesus, nela encontram-se narrativas que exaltam seus feitos e doutrinas, porém esta mesma Bíblia, venerada por milhões de cristãos, revela uma realidade que poucos querem ver e torna vã toda a fé cristã: O equívoco de Jesus sobre sua volta.

I – JESUS ACREDITAVA QUE IRIA VOLTAR ANTES QUE OS APÓSTOLOS EVANGELIZASSEM TODAS AS CIDADES DE ISRAEL

Mateus refere-se a uma orientação sobre evangelização que Jesus fez diretamente aos 12 apóstolos onde afirma que viria antes que eles terminassem de evangelizar todas as cidades de Israel:
Ora, os nomes dos doze apóstolos são estes: primeiro, Simão, chamado Pedro, e André, seu irmão; Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão; Felipe e Bartolomeu; Tomé e Mateus, o publicano; Tiago, filho de Alfeu, e Tadeu; Simão Cananeu, e Judas Iscariotes, aquele que o traiu. A estes doze enviou Jesus, e ordenou-lhes, dizendo: Não ireis aos gentios, nem entrareis em cidade de samaritanos (...) Quando, porém, vos perseguirem numa cidade, fugi para outra; porque em verdade vos digo que não acabareis de percorrer as cidades de Israel antes que venha o Filho do homem. (Mateus 10:2-5,23).

Os apologistas cristãos tentam explicar esta situação de três formas:

(1) Que a vinda de Jesus e o sítio à Jerusalém pelas tropas romanas comandadas pelo general Tito no ano 70 d.C. são o mesmo fato.

(2) Que Jesus sabia que os apóstolos iriam morrer antes de conseguirem evangelizar todas as cidades de Israel, mas procurou poupar-lhes da informação que iriam ser martirizados e, ao mesmo tempo, incentivá-los a evangelizar como se fosse voltar logo.

(3) Que Jesus falava não só aos apóstolos, mas a todos os pregadores de todos os tempos.

Talvez porque alguns textos bíblicos se refiram à “visita” de Deus através de catástrofes e guerras, alguns pensam que Jesus veio da mesma forma. O problema é que em sua volta Jesus diz que levaria os escolhidos e todo olho o veria vir nos céus, mas não há registro histórico desse acontecimento, e se o fato ocorreu, mas não foi registrado, então não há sentido para a existência do cristianismo atual. O sítio à cidade de Jerusalém foi apenas mais uma conquista do Império Romano em ascensão, marcada por terror e fome onde, dentro dos muros de Jerusalém, mães matavam os próprios filhos para se alimentar. Quanto a Jesus ter alterado o motivo que faria os apóstolos não evangelizarem todas as cidades de Israel (de motivo “morte” para motivo “retorno redentor”), a fim de poupar-lhes que seriam martirizados e incentiva-los à evangelização, não faz sentido, pois muitas vezes Jesus disse abertamente que eles corriam riscos de morte. Quanto à alegação que Jesus se referia aos pregadores do futuro, e não somente aos apóstolos, é violentar um texto exclusivamente literal. Observe que a Bíblia cita o nome dos doze apóstolos que estavam ouvindo as palavras de Jesus, logo ele não falava a evangelistas de hoje, como alguns acreditam, mas especificamente aos apóstolos: “A estes doze enviou Jesus, e ordenou-lhes, dizendo:...”. Depois das instruções, finaliza: “Não acabareis de percorrer as cidades de Israel antes que venha o Filho do homem”.

O fato é que o Filho do Homem, como Jesus se autodenominava, não voltou conforme prometido.

II – JESUS AFIRMA QUE ALGUNS DE SEUS OUVINTES ESTARIAM VIVOS NA SUA VOLTA

Porque o Filho do homem há de vir na glória de seu Pai, com os seus anjos; e então retribuirá a cada um segundo as suas obras. Em verdade vos digo, alguns dos que aqui estão de modo nenhum provarão a morte até que vejam vir o Filho do homem no seu reino (Mt 16.27,28).

Essas palavras foram direcionadas às pessoas que estavam fisicamente presentes no discurso de Jesus. Nesta oportunidade ele foi mais claro que na ocasião onde disse que os apóstolos ainda estariam evangelizando, pois agora afirma diretamente que alguns de seus ouvintes não provariam a morte sem vê-lo voltar.

Apologistas cristãos dizem que Jesus se referia à transfiguração ocorrida poucos dias depois, acerca da qual alguns apóstolos foram testemunhas, porém na transfiguração apareceram apenas Elias e Moisés, e Jesus não havia sido levado aos céus para depois voltar. Portanto ele não se referia à transfiguração, mas sobre uma volta triunfante acompanhado de anjos para julgar cada um segundo as suas obras (Mt 16.27,28). Na verdade todos morreram e Jesus não voltou como previu.

III – JESUS ACREDITAVA QUE VOLTARIA NA GERAÇÃO EM QUE VIVIA

Depois de ter afirmado que os apóstolos ainda estariam evangelizando e pessoas que lhe ouviam ainda estariam vivas no seu retorno redentor, embora admitisse não saber o dia nem a hora de sua volta, Jesus faz uma terceira declaração: Voltaria naquela geração.

Certa ocasião Jesus chama os apóstolos, lhes faz revelações sobre um futuro próximo aterrador, que culminaria com sua volta de forma visível a todos, e finaliza com a seguinte afirmação: Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que todas essas coisas se cumpram (Mateus 24: 34).

A defesa dos apologistas acerca desta passagem é a seguinte: “Jesus estava falando sobre a geração na qual os fatos ocorreriam, uma geração posterior a dos Apóstolos”. Mas a gramática não permite tal interpretação. A palavra “esta” indica espaço de tempo no qual se inclui o momento em que se fala e “geração”, neste contexto, significa o conjunto dos indivíduos nascidos pela mesma época. Se Jesus estivesse se referindo a uma geração futura, ele usaria a palavra “essa” ou “aquela”. Em todas as traduções, versões e revisões católicas e protestantes da Bíblia para o português, a palavra encontrada é “esta”, pois seria infidelidade ao texto original utilizar-se outra palavra. Jesus usou a expressão “esta geração” porque acreditava que iria voltar na geração em que viveu, confirmando outras duas afirmações sobre sua vinda enquanto alguns de seus ouvintes ainda estivessem vivos.

IV – OS CRISTÃOS CONTEMPORÂNEOS DOS APÓSTOLOS ACREDITAVAM QUE ERA NECESSÁRIO ESTAR VIVO PARA SER SALVO E ALGUNS DEMONSTRAVAM IMPACIÊNCIA

Na cidade de Tessalônica os cristãos estavam tristes com a morte de alguns por acharem que não seriam salvos por terem morrido. Era evidente pensar assim porque o testemunho dos apóstolos dizia que Jesus voltaria (1) enquanto estivessem evangelizando, (2) durante a vida de alguns dos ouvintes de Jesus e (3) naquela geração. Então o apóstolo Paulo precisou consolá-los com as seguintes palavras:

Não queremos, porém, irmãos, que sejais ignorantes acerca dos que já dormem, para que não vos entristeçais (...), os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois nós, os que ficarmos vivos seremos arrebatados juntamente com eles, nas nuvens, ao encontro do Senhor nos ares, e assim estaremos para sempre com o Senhor. (Parte de I Tessalonissenses 4: 13-18).

Conforme o texto acima Paulo acreditava na hipótese que alguns leitores de sua carta e ele mesmo ainda estariam vivos na volta de Jesus de acordo com informações dos apóstolos, e os que tivessem morrido ressuscitariam para serem salvos juntamente com eles. Observe que Paulo não cria uma ilusão de salvação futura, milênios depois, como os cristãos atuais esperam.

Em outra ocasião, na segunda carta universal de Pedro, ele faz referência a impaciênca de alguns acerca da volta de Jesus e tenta explicar dizendo que Jesus não estava retardando a sua volta, mas aguardava a conversão de todos que deveriam ser salvos sem deixar de cumprir a promessa (II Pe 3.9), qual promessa? Que voltaria logo, enquanto os apóstolos estivessem vivos, não 50 anos, 2 mil anos ou 4 mil anos depois.

V – REGISTRO TARDIO SOBRE A VIDA DE JESUS DEMONSTRA A CRENÇA NA VOLTA IMINENTE
O registro mais antigo sobre Jesus é provavelmente datado entre os anos 55 e 70 d.C., quando Marcos resolveu escrever o evangelho que leva o seu nome. Jesus morreu provavelmente entre 30 e 35 d.C., ou seja, levou-se entre 20 e 40 anos para que alguém percebesse a necessidade de escrever sobre ele. O restante do Novo Testamento foi escrito entre 70 e 99 d.C. pelos apóstolos e colaboradores como Lucas e Tiago.

Qual o motivo desta demora na compilação dos Evangelhos e de todo o Novo Testamento? A resposta está na convicção que os apóstolos tinham que ainda estariam vivos e evangelizando no evento da volta de Cristo conforme palavras dele mesmo, não havendo necessidade de registros escritos, bastando as pessoas crerem no testemunho deles e aguardar a salvação que não iria tardar.

VI – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se Jesus tinha a personalidade e o caráter apresentados na Bíblia, é pouco provável que tenha mentido para incentivar os apóstolos à evangelização, que tenha olhado cinicamente nos seus olhos e os tenha enganado dizendo que alguns presentes estariam vivos no seu retorno. É difícil acreditar que 12 pessoas tenham entendido mal as orientações de alguém que conheciam e mantinham grande amizade durante anos, passando a pregar, por engano, que seu mestre viria naquela geração. Os dois principais motivos que trouxeram à existência textos bíblicos sobre uma volta de Jesus em um futuro distante são: (1) A inconformação dos apóstolos e colaboradores que, depois de décadas de dedicação, não aceitaram o erro de tais previsões e passaram a procurar alternativas para explicar, para si e seus ouvintes, o não cumprimento daquilo que haviam pregado. E (2) as adulterações sofridas pelo Novo Testamento durante os 4 primeiros séculos da era cristã, cessadas tardiamente somente após o concílio de Cartago III no ano de 397 d.C. Esta esperança ilusória de salvação que, segundo Jesus, era somente para os israelitas de sua época (Isaías 65.9; Mateus 10.5,6; 16.27,28 e 24.31), foi estendida pelos apóstolos ou por adulteradores do Novo Testamento a todos os povos e postergada para um futuro incerto, mergulhando grande parte do mundo ocidental na era das trevas como registra a História, um caos só controlado recentemente pela ciência, pelo direito e pela democracia. É razoável pensar que os mitos, muito bem aceitos como verdade no mundo antigo, moldaram o nome Jesus, adicionando-lhe e amplificando seus feitos, mas, apesar de sua convicção, ele foi humano como todos nós, capaz de cometer equívocos por um ideal como registra a Bíblia. Isso deveria ser motivo de reflexão para aqueles que hoje investem suas vidas, tempo e dinheiro no cristianismo, cujas esperanças estão sepultadas com Jesus e suas testemunhas oculares há quase 2.000 anos.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Gênesis - a Criação, o Paraíso, o Dilúvio, Caim e Abel, e a Torre de BabeI, e os seus antecedentes literários na Mesopotâmia

Civilização é uma palavra esplêndida sob muitos aspectos: para uns quer dizer grandes cidades e progresso tecnológico, enquanto para outros significa elevação moral, idéias éticas e primorosas criações artísticas. Por qualquer desses critérios a Mesopotâmia foi o berço da civilização, pois foi o primeiro lugar da terra onde o homem criou e manteve por mais de 3.000 anos uma sociedade urbana, letrada, tecnologicamente bem desenvolvida, na qual todo o povo aceitava os mesmos valores e linha a mesma concepção sobre a origem e a ordenação do mundo.

A Mesopotâmia, entre todas as outras regiões, veio a representar papel decisivo na ascensão do homem que emergia do barbarismo - não é coisa para se apreender com facilidade. Não era, certamente, uma terra de promissão para os começos da vida civilizada. Quente, requeimada e varrida pelos ventos, sem madeira, pedra ou minérios, não parecia destinada a guiar e a influenciar o mundo. O que transformou a Mesopotâmia num paraíso fecundo e fez dela uma força criadora foram os dons intelectuais e a índole do seu povo. Observador, ponderado e pragmático, tinha inclinação para apreender o que era fundamental e explorar o que era possível.

Ao contrário de quase todos os outros povos antigos, os mesopotâmicos estabeleceram um sistema de vida orientado por um senso de moderação e de equilíbrio. Em termos materiais e espirituais - em religião e em ética, em política e economia - adotavam um meio-termo viável entre a razão e a fantasia, a liberdade e a autoridade, o conhecido e o transcendental. A Mesopotâmia também era uma sociedade aberta. Embora seus habitantes se considerassem um "povo eleito", não eram em nada provincianos. Davam-se conta de que havia muitos outros povos no mundo e não se trancavam evitando contatos com o exterior. Assim, enquanto menosprezavam aqueles vizinhos que eram seus inimigos, olhavam com simpatia para outros povos, como o Egito no oeste e como a gente do vale do Indo, no leste. A Mesopotâmia, de fato, pode ter mesmo representado um importante papel no crescimento dessas duas civilizações.

No caso do Egito, a influência mesopotâmica patenteia-se no uso de selos cilíndricos e em certos motivos da arte. É evidente na arquitetura egípcia, notando-se que algumas de suas obras são construídas de tijolos com o tamanho e a forma peculiares da primeira fase mesopotâmica e são ornamentadas com pilastras de reforço semelhantes às da Suméria. O Egito pode também ter adquirido do seu vizinho oriental a idéia da escrita, embora os hieróglifos de um e os pictógrafos do outro sejam inteiramente diversos.

Mais ao leste, a cultura do vale do Indo, parece ter tido fortes laços comerciais com a Suméria - numerosos selos típicos do Indo foram encontrados nas ruínas mesopotâmicas. O povo do Indo habitava uma área maior que a Mesopotâmia e o Egito combinados, e floresceu mais ou menos entre 2.500 e 1.500 a.C. A sua cultura era também urbana. Passando da lavoura à criação de gado, esse povo formou artífices e artesãos, comerciantes e administradores. Suas casas eram construídas com tijolos de fino acabamento, cujas dimensões uniformes atestam uma padronização de pesos e medidas.

Fato mais importante: os mesopotâmicos tinham uma linguagem escrita, um sistema pictográfico que abrangia cerca de 400 caracteres. Como as duas culturas são similares nesses aspectos e se conheciam, parece lógico supor que a cultura mais velha da Suméria influenciou a mais jovem do Indo. Entre a Índia e a Mesopotâmia situa-se outra região cujo débito à cultura mesopotâmica é mais fácil de traçar. O Irã, ou Pérsia, fazia fronteira se com a Mesopotâmia e naturalmente estava em íntimo contato com ela. De acordo com uma narrativa sumeriana, a cidade-estado iraniana de Aratta teve organização política e crenças religiosas quase idênticas às da Suméria. De igual modo, o antigo reino iraniano de Elam, a despeito de constantes e renhidas lutas armadas com a Suméria, foi ainda assim profundamente influenciado por esta. A arte e a arquitetura dos elamitas, como também as suas leis, a sua literatura e religião, eram mesopotâmicas em muitos aspectos - uma das principais deidades do Elam tinha mesmo um nome sumeriano. Os elamitas também adotaram a escrita cuneiforme da Mesopotâmia, como ainda o seu sistema de educação e muito do seu currículo educacional.

Mas a influência da Mesopotâmia sobre os seus contemporâneos no Egito, Irã e Índia, embora tenha sido inspiradora, foi de pouca duração. Coisa curiosa, foi no Ocidente, e não na terra dos povos vizinhos, que mais se enraizou a sua semente. A visão racional, positiva, pragmática, do homem ocidental tem similitude com a concepção mesopotâmica do mundo. Transfigurados pelos hebreus monoteístas, transmudados pelos filósofos gregos, os conceitos mesopotâmicos impregnaram a consciência ocidental e são responsáveis, em muito, pela agitada história de tensão vivida pelo homem do ocidente, entre razão e fé, esperança e desespero, liberdade e autoritarismo, progresso e derrota.

O impacto da Mesopotâmia sobre os hebreus foi tanto direto como indireto. Se, como pensam alguns estudiosos, a narrativa bíblica contém um pouco de verdade, e se o patriarca hebreu vivia em Ur no tempo de Hamurábi, nesse caso ele e sua família podem ter assimilado a cultura sumeriana muito antes de os judeus se constituírem numa nação. Parece claro que os ancestrais dos hebreus viveram na Mesopotâmia desde tempos bem recuados no tempo.

Documentos cuneiformes, cujas datas vão desde 1700 a 1300 a.C., mencionam com freqüência um povo chamado Habiru, nome com afinidade bem próxima com a palavra bíblica "hebreus". Segundo tais textos, os hebreus eram erradios, nômades, mesmo salteadores e proscritos, que vendiam seus serviços como mercenários aos babilônios e assírios, hititas e hurrianos. Já em 1500 a.C. esses ancestrais do Judeu Errante encetavam a conquista da Palestina. Entraram em contato com os cananeus, um povo que assimilou muito da Mesopotâmia. Os cananeus tinham uma escrita cuneiforme, suas escolas adotavam o currículo mesopotâmicos e a sua cultura estava profundamente imbuída das idéias e da fé criadas na "terra entre os rios".

O contato mais importante dos hebreus com a cultura mesopotâmica principiou no ano 586 a.C. quando o rei Nebuchadrezzar destruiu Jerusalém e levou o seu povo para o cativeiro em Babilônia. A instrução e os grandes conhecimentos dos babilônios impregnaram a mente e o pensamento dos hebreus. Quando, depois, os exilados voltaram à sua terra para formar o estado judaico, trouxeram consigo muitas das práticas litúrgicas, educacionais e legais da Mesopotâmia. Algumas delas foram introduzidas no cristianismo e, por intermédio da tradição judaico-cristã, penetraram na civilização ocidental.

O segundo povo que absorveu a cultura mesopotâmica e a canalizou para o Ocidente foram os gregos. Ao contrário dos hebreus, não tiveram eles contato direto com a Mesopotâmia, mas, durante a idade micênica da Grécia, desde cerca de 1600 a 1100 a.C., mantiveram íntimos laços políticos e comerciais com os vizinhos da Mesopotâmia, os hititas e os cananeus. Por todas as cidades litorâneas da Anatólia meridional e Canaã, Chipre e Creta, circulavam não só mercadorias mas também pensamentos e idéias - que indubitavelmente mergulharam raízes na terra grega. O fato de se haver descoberto, na cidade grega de Tebas, ainda recentemente, um depósito secreto de selos babilônicos, não chegou a causar muita surpresa aos arqueólogos e sem dúvida o futuro revelará no solo helênico muitos outros achados de tal espécie. Este primeiro contato com o Oriente Próximo encerrou-se quando entrou em colapso a cultura micênica. E só no século VIII a.C., quando os gregos começaram a emergir do seu tempo obscuro" é que voltaram eles a receber estímulo e inspiração dos seus vizinhos orientais. Durante esse último período os fenícios de Cananéia deram aos gregos o alfabeto que posteriormente se tornou o de todo o mundo ocidental. No curso dessa fase, também, os filósofos gregos pré-socráticos na Anatólia descobriram as obras dos astrólogos babilônicos e deram início aos grandes estudos filosóficos de Atenas. Quando, no século V a.C ., a Grécia entrou em sua Idade de Ouro, diversas das suas criações na arte, na arquitetura, na filosofia e nas letras apresentaram vestígios de origem mesopotâmica.

Avançando para o Ocidente, pelos canais do helenismo, do judaísmo e do cristianismo, o legado da Mesopotâmia à humanidade atingiu finalmente o mundo moderno. Em tecnologia, esse legado inclui milagres prosaicos tais como o veículo de rodas e o arado. Na ciência, incluiu as primeiras noções de astronomia e o sistema numérico baseado em 60 - sistema ainda em uso atualmente, dividindo o círculo em graus e a hora em minutos e segundos.

As observações astronômicas da Mesopotâmia permitiram que fossem afinal descobertos os equinócios das estações e a regularidade das fases da Lua; o complemento pseudocientífico da astronomia, a astrologia, revelou através das suas interpretações do "escrito no céu" as relações fixas das estrelas. Foi a Mesopotâmia. que criou as designações pelas quais até hoje são conhecidos os signos do zodíaco Touro, Gêmeos, Leão, Escorpião c outros.

A Mesopotâmia também deu à civilização ocidental duas das suas mais importantes instituições políticas - a cidade-estado e o conceito de uma realeza por direito divino. A cidade-estado espaIhou-se por grande parte do mundo mediterrâneo e a realeza - a noção de que a autoridade real fora concedida pelos deuses e só a eles o seu detentor devia prestar conta - infiltrou-se profundamente na sociedade ocidental. Não é só por mera coincidência que os monarcas britânicos de hoje são consagrados em cerimônias de coroação que lembram as da Mesopotâmia. Nem pode ser obra do acaso a semelhança entre as atividades que exercem habitualmente os chefes de Estado do nosso tempo e as que são registradas nos mais velhos arquivos dos reis mesopotâmicos. Por meio de burocratas altamente eficazes, que empregavam bem desenvolvidos sistemas de escrituração e contabilidade, os governantes da Mesopotâmia administravam a construção e a conservação de estradas, a edificação de hospedarias para os viajantes, a navegação mercante dos mares, o arbitramento das disputas políticas e a assinatura de tratados internacionais.

Um dos mais preciosos legados políticos da Mesopotâmia foi a lei escrita. Tendo origem numa tomada de consciência dos direitos individuais ~ estimulada por uma propensão à controvérsia e à demanda – a lei mesopotâmica veio a ser idealizada, sendo concebida como obra de inspiração divina para benefício de toda a sociedade. Palavras provenientes de tradições legais babilônicas e sumerianas aparecem em todo o vasto e heterogêneo corpo de comentários sobre alei hebraica conhecido como o Talmude babilônico. " Até nossos dias", escreveu o estudioso E.A. Speiser, uma das maiores autoridades nos sistemas legais do mundo antigo " o judeu ortodoxo usa um termo sumeriano quando fala de divórcio. E quando lê a lição da Tora na sinagoga ele ainda roça o lugar pertinente ao pergaminho com a fímbria do seu xale de oração, sem nem de longe imaginar que está assim reproduzindo acena na qual o antigo mesopotâmio imprimia a orla da sua veste numa placa de argila, como testemunho da sua obediência aos comandos do texto legal." Provavelmente não será exagero dizer-se que alei mesopotâmica irradiou a sua luz sobre grande parte do mundo civilizado. A Grécia e Roma sofreram a sua influência através de seus contatos com o Oriente Próximo e o Islã só adquiriu um código formal de leis depois de haver conquistado a região que é o Iraque, a terra da antiga Mesopotâmia. Exatamente quantas das leis modernas têm origem que remontam à Mesopotâmia é assunto que ainda não foi determinado, mas o historiador britânico H.W.F. Saggs, no seu livro A Grandeza Que Foi Babilônia, observa que "é quase certo ter a lei sobre hipotecas a sua fonte remota no antigo Oriente Próximo".

Da mesma forma, um opulento conjunto de rituais e de mitos mesopotâmicos, instituídos por um notável grupo de teólogos que viveram 3.000 anos antes do nascimento de Cristo, influenciou profundamente as religiões ocidentais, sobretudo o judaísmo e o cristianismo. A idéia mesopotâmica de que da água nasceram todas as coisas, por exemplo, infiltrou-se na narrativa do Gênesis sobre a criação do mundo, e a noção bíblica de que o homem foi feito de barro e recebeu o "sopro de vida" brotou de raízes mesopotâmicas. Assim também o conceito bíblico de que o homem foi criado primordialmente para servir a Deus e o de que o poder criador da divindade está no Seu Verbo. A idéia de que as catástrofes são castigos celestes por más ações, como a de que a dor e a adversidade devem ser suportadas com paciência, também encontram analogia na Mesopotâmia. Até mesmo a região dos mortos, imaginada pelos mesopotâmios, a sua escura e lúgubre "terra de onde não se volta", tem a sua contrapartida no Sheol dos hebreus e no Hades dos gregos.

Até na atualidade a liturgia judaica está repleta de contribuições babilônicas. O Kol Nidre, o canto judaico recitado nas vésperas do Dia da Inspiração, em penitência pela quebra dos votos, é semelhante às preces que figuravam nas cerimônias mesopotâmicas do Ano Novo. O mesmo quanto à solene descrição do destino humano que é declamada no próprio Dia da Inspiração. Durante o seu exílio em Babilônia os hebreus também adquiriram a crença nos demônios e seu exorcismo, o que sem dúvida explica diversas passagens do Novo Testamento concernentes à expulsão dos espíritos malignos.

Desde os dias do cativeiro em Babilônia, e daí em diante, o judaísmo apresenta um enxame de místicos religiosos com visões apocalípticas sobre o futuro do homem. Por meio desses visionários, diz o eminente orientalista w. F. Albright, "elementos inumeráveis da fantasia pagã e até mitos inteiros entraram na literatura do judaísmo e do cristianismo". Por exemplo, o rito do batismo - diz ele remonta às religiões da Mesopotâmia, como também muitos dos elementos na história da vida de Cristo. Entre estes o Dr. Albright inclui a sua concepção por uma virgem, o seu nascimento relacionado com os astros, e os temas da prisão, da morte, descida aos infernos, o desaparecimento por três dias e posterior ascensão aos céus.

A religião mesopotâmica era, sem dúvida, pagã e politeísta, e portanto um profundo abismo espiritual a separa do monoteísmo judaico e cristão. Além disso, tanto o Velho como o Novo Testamento se impregnam de uma sensibilidade ética e de um fervor moral que não encontram correspondência nos textos mesopotàmicos. Nem a Suméria, nem Babilônia, nem a Assíria jamais chegaram à elevada crença de que o "coração puro" e "mãos limpas" tinham mais valor espiritual do que sacrifícios e rituais esmerados. O vínculo de amor entre Deus e o homem, embora não de todo alheio ao pensamento religioso da Mesopotâmia, decerto é nele de significação muito menor do que no judaísmo e no cristianismo. Todavia, os primitivos mesopotâmios cultivaram o conceito de um deus pessoal e familiar que teve o seu eco na Bíblia com o "deus de Abraão, Isaac e Jacó" - e entre essa divindade protetora e o seu devoto adorador há uma relação íntima, de ternura e confiança, em alguns aspectos, comparável, com a que existiu entre Jeová e os patriarcas.

A literatura da Mesopotâmia, assim como a sua religião e o seu direito, contaminaram também todo o mundo ocidental. Temas que figuram nos capítulos iniciais do Gênesis - a Criação, o Paraíso, o Dilúvio, a rivalidade de Cain e Abel, e a Torre de BabeI - todos têm antecedentes literários na Mesopotâmia. No Livro dos Salmos, muitos dentre eles lembram hinos do culto mesopotâmio, e o Livro das Lamentações copia um dos motes literários mais cultivados pelos escritores mesopotâmicos - na Suméria era comum se comporem lamentações formais sobre a destruição de uma cidade. Nas coleções sumerianas de brocardos, máximas e adágios, há também antecedentes estilísticos para o Livro dos Provérbios. Mesmo ao Cântico dos Cânticos, de Salomão, o livro diferente de quaisquer outros do Velho Testamento pode ser atribuído um precedente da Mesopotâmia, com os cantos de amor do culto sumeriano.

A literatura grega mostra igualmente inumeráveis indícios da influência mesopotâmica. A história mesopotâmica do dilúvio, por exemplo, corresponde na mitologia grega à história de Deucalião, que constrói um barco e nele sobrevive a uma inundação que destrui o resto da humanidade. O tema do combata ao dragão nos mitos mesopotâmicos encontra equivalência em algumas ficções. como as de Jasão e Héracles. os quais mataram diversos monstros.

Pragas lançadas como punição pelos deuses também figuram na mitologia da Grécia e na da Mesopotâmia. E há acentuada semelhança entre o inferno grego; o mesopotâmio, sendo ambos lugares tenebrosos. Separados do reino dos vivos por um rio sinistro que os mortos atravessavam de barca. Da mesma forma elegia para o morto. parece ter o seu prenúncio em duas composições sumerianas. Recentemente traduzidas de uma inscrição no Museu Pushkin de Moscou; nelas, um poeta mesopotâmio pranteia em Linguagem hiperbólica a morte do pai e da esposa. Até a forma da epopéia grega que conduziu à criação da Ilíada e da Odisséia, tem analogia com o estilo dos poemas épicos da Mesopotâmia.

Na área da literatura grega de cunho instrutivo e edificante os estudiosos também descobriram ultimamente uma série de equivalência mesopotâmicas.

Diversas fábulas de Esopo têm similitude com histórias anteriores da Suméria. e as instruções no almanaque do fazendeiro sumeriano. Segundo uma versão do século XVIII a.C.. parecem-se singularmente com as de Trabalhos e Dias, um manual do lavrador composto. cerca de mil anos depois. pelo poeta grego Hesíodo. Diversos diálogos sumerianos estão sendo agora reconstituídos e decifrados, e também estes poderão revelar-se como precursores estilísticos de obras-primas como os Diálogos, de Platão.

Em outro plano. o da música e da teoria musical, a contribuição mesopotâmica é descobrimento ainda bem recente. No entanto, já desde muitos anos os arqueólogos sabiam que a Mesopotâmia tivera instrumentos musicais, particularmente harpas e liras.

Por exemplo. Sir Leonard Woolley, nas suas escavações em Ur. desenterrou os remanescentes de nove liras e duas harpas. E um hino dedicado ao rei Shulgi, de Ur. proclama que o governante sabia tocar a harpa "a doce lira de três cravelhas, (um) instrumento de três cordas que desafoga o coração", e mais uns dez outros instrumentos musicais não identificados. Os músicos cursavam escolas de preparação e constituíam importante classe profissional na Mesopotâmia. tornando-se alguns altos funcionários da corte. Entretanto nada se conhecia sobre a música propriamente dita até há pouco tempo, quando Anne Darffkorn Kilner. da Universidade da Califórnia. uma cuneiformista, e Madame Duchesne-Guillemin. da Universidade de Liege, na Bélgica. uma musicóloga. se reuniram para interpretar o contexto de uma inscrição cuneiforme que por 70 anos havia desafiado os estudiosos.

A chave principal para o texto da inscrição era uma série de números que pareciam referir-se às cordas de um instrumento de nove cordas. Estabelecido este ponto, descobriu-se que os números eram dispostos numa progressão que sugeria a afinação desse instrumento, e também se apurou que outras notações indicavam o que parecia serem os intervalos de uma escala musical. As inscrições nessa placa de argila, que provavelmente data de 1500 a.C. mais ou menos, fazem a história da música e da teoria musical remontar há mais de um milênio antes das primeiras notações musicais da Grécia que se conhecem. É, de fato, o primeiro registro na história de uma escala musical e de um sistema musical coerente.

O muito que já se apurou da contribuição mesopotâmica para a civilização em todos os aspectos ainda constitui ínfima fração da sua totalidade; é como a parte visível de um iceberg. Não se torna fácil pesquisar idéias e técnicas, temas e motivos, através dos tempos, a fim de se chegar ao seu local de origem. Os fios de transmissão, tênues como os de.. uma teia de aranha, muitas vezes escapam ao olhar e ao espírito que os procuram. Sem dúvida novas descobertas virão enriquecer o quadro e trarão certamente muitas surpresas. Mas o futuro poderá tão-só confirmar o que já se patenteia isto é, que a Mesopotâmia, com sua conjugação singularmente feliz de fatores geográficos e gênio humano, criou uma cultura sem precedente. A terra entre o Tigre e o Eufrates será sempre considerada o Berço da Civilização.