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domingo, 26 de junho de 2016

O Mito do Paraíso nas Tradições Primitivas


Baumann resume desta maneira os mitos africanos que se referem à época paradisíaca primordial: nesse tempo, os homens não conheciam a morte; compreendiam a linguagem dos animais e viviam em paz com eles; não trabalhavam e encontravam ao alcance da mão uma alimentação abundante. Na seqüência de certo evento mítico – do qual não empreenderemos o estudo – essa fase paradisíaca chegou ao fim e a humanidade transformou-se naquilo que hoje conhecemos.

Sob uma forma mais ou menos complexa, o mito paradisíaco encontra-se um pouco por toda a parte no mundo. Comporta sempre um certo número de elementos característicos, para além do toque paradisíaco por excelência, a imortalidade. Poderiam classificar-se estes mitos em duas grandes categorias; 1ª) os que falam da extrema proximidade primordial entre a Terra e o Céu; 2ª) os que se referem a um meio concreto de comunicação entre Céu e Terra. Não será oportuno analisar aqui as múltiplas variantes que cada um destes tipos apresenta, nem precisar-lhes as áreas respectivas de difusão e a sua cronologia. Para a nossa finalidade, um só aspecto nos interessa: descrevendo a situação primordial, os mitos revelam o seu caráter paradisíaco pelo próprio facto de o Céu estar, in illo tempore, muito próximo da Terra, ou de se poder facilmente ter acesso ao Céu escalando uma árvore, uma liana, uma escada, ou escalando uma montanha. Quando o Céu foi brutalmente separado da Terra, isto é, quando se tornou longínquo, como nos nossos dias, quando a árvore ou a liana que ligava Terra e Céu foram cortadas, ou a montanha que tocava no Céu aplanada, terminou o estado paradisíaco e a humanidade adquiriu a sua actual condição. 

Com efeito, todos esses mitos apresentam o homem primitivo como desfrutando de uma beatitude, de uma espontaneidade e de uma liberdade que lamentavelmente perdeu em conseqüência da queda, isto é, como resultado do acontecimento mítico que provocou a ruptura entre o Céu e a Terra. In illo tempore, naquele tempo paradisíaco, os deuses desciam à Terra e misturavam-se com os humanos: por seu turno, os homens podiam subir ao Céu, escalando uma montanha, uma árvore, uma liana ou uma escada, ou ainda deixando-se transportar pelas aves.

Uma análise etnológica atenta trará à luz o contexto cultural de cada um destes tipos de mitos. Poderá demonstrar-se, por exemplo, que os mitos de extrema proximidade primordial Céu-Terra, difundidos sobretudo na Oceania e no Sudeste Asiático são, de alguma forma, solidários com uma ideologia matriarcal. Da mesma forma se poderia dizer que a imagem mítica de um axis mundi – montanha, árvore, liana – que se encontrava no centro do mundo e ligava Terra e Céu, imagem já encontrada nas tribos mais primitivas (Austrália, Pigmeus, regiões árcticas, etc.) foi sobretudo elaborada pelas culturas pastoris e sedentárias, e transmitiu-se até às grandes culturas urbanas da Antiguidade Oriental. Mas a análise etnológica não nos restará aqui: para o objectivo deste capitulo, bastar-nos-á a apologia dos mitos.

Enumeremos as características especificas do homem da época paradisíaca, sem levar em conta os seus contextos respectivos: imortalidade, espontaneidade, liberdade: possibilidade de ascensão ao céu e fácil encontro com os deuses: amizade com os animais e conhecimento da sua linguagem. Este conjunto de liberdade e de poderes perdeu-se em conseqüência de um acontecimento antigo; a *queda+ do homem traduz-se tanto por uma mutação ontológica da sua própria condição, como por uma ruptura cósmica.

Ora não é desprovido de interesse verificar que, por técnicas especiais, o xamã se esforça por abolir a actual condição humana – a do homem caído em desgraça - e reintegrar a condição do homem primordial de que nos falam os mitos paradisíacos. Sabe-se que, entre outros manipuladores do sagrado das sociedades arcaicas, o xamã é o especialista do êxtase por excelência. É graças às suas capacidades extáticas – isto é, graças ao facto de poder abandonar à vontade o seu corpo e empreender viagens místicas em todas as regiões cósmicas – que o xamã tanto é curandeiro e condutos de almas, como místico e visionário. Só ele pode perseguir a alma perdida do doente, capturá-la e reintegrá-la no seu corpo: acompanha as almas dos mortos às suas novas moradas; é sempre ele que empreende longas viagens extáticas ao Céu, para apresentar aos deuses a alma do animal sacrificado e implorar a bênção divina. Numa só palavra, o xamã é o grande especialista das questões espirituais, isto é, aquele que conhece melhor que qualquer outro os múltiplos dramas, riscos e perigos da alma. O complexo xamânístico representa, para as sociedades *primitivas+, o que, nas religiões mais elaboradas, se costuma designar por místico e experiência mística.

Uma sessão xamanística comporta os seguintes elementos: 1) chamamento dos espíritos auxiliares, a maior parte das vezes de animais, e diálogos com eles numa linguagem secreta; 2) jogo de tambor e dança, preparativos da viagem mística; 3) transe (fingindo ou real), durante o qual se presume que a alma abandonou o corpo. A finalidade de qualquer sessão xamanística é a obtenção do êxtase, porque só em êxtase o xamante pode voar nos ares e descer aos infernos, quer dizer, pode cumprir a sua missão de curandeiro ou de condutor de almas.

Ora é significativo que, para preparar o seu transe, o xamane utilize a linguagem secreta ou, como se lhe chama noutras religiões, a linguagem dos animais. Ele imita, por um lado, o comportamento dos animais e, por outro, esforça-se por imitar os seus gritos, sobretudo os das aves. Shieroszewski verificou isso, entre os xamanes iacutes: *Tanto por cima, como por baixo; tanto pela frente, como por trás do xamane se fazem ouvir ruídos misteriosos...Julgaríamos escutar o grito lamentoso da abetarda, misturado com o crocitar do falcão que interrompe o assobio da galinhola: é o xamane que grita assim, variando as entonações da sua voz...Ouve-se o grasnido da águias, ao qual se misturam os lamentos da abetardas e o coro dos cucos+. Castagné descreve-nos o baqça quirguiztânico *imitando com precisão notável os gritos dos animais, os cantos das aves, o ruído do seu vôo+. Como fez notar Lethisalo, uma boa parte das palavras utilizadas durante a sessão xamanística tem como origem a imitação das aves e outros animais. Isto é verdadeiro sobretudo para os estribilhos e gritos modulados, constituídos na maior parte das vezes por onomatopéias, fonemas e trilos cuja origem se pode sem dificuldade adivinhar: a imitação dos gritos e cantos de aves. Em geral, xamã fala, durante a sessão com uma voz aguda, projetada, em falsete, querendo marcar com isso que não é ele que fala, mas sim um espírito ou um deus. Mas há que fazer notar que a mesma voz aguda é geralmente utilizada quando se canta fórmulas mágicas. Magia e canto – especialmente o canto à maneira das aves - designa-se inúmeras vezes pelo mesmo termo. O vocabulário germânico para fórmula mágica é galdr, que se utiliza com o verbo galan – cantar - termo que se aplica especialmente aos gritos da aves.

Se se levar em conta o facto de que se crê que, durante a sua iniciação, o xamane encontra um animal que lhe revela certos segredos do oficio, que lhe ensina a linguagem dos animais ou que se torna no seu espírito auxiliar (familiar), compreende-se ainda melhor as relações de amizade e de familiaridade que se estabelecem entre os animais e o xamane: este fala a sua linguagem e torna-se amigo e mestre deles. Reparemos em seguida que obter a amizade dos animais e, espontaneamente, o seu domínio, não implica, no horizonte da mentalidade arcaica, uma regressão a uma condição biológica inferior. Por um lado, os animais estão carregados de um simbolismo e de uma mitologia muito importantes para a vida religiosa; por conseguintes, comunicar com eles, falar a sua linguagem, tornar-se seu amigo e mestre, equivale a apropriar-se de uma vida espiritual muito mais rica do que a vida simplesmente humana do comum dos mortais. Por outro lado, os animais possuem, aos olhos do *primitivo+, um prestígio considerável: conhecem os segredos da vida e da natureza, sabem mesmo o segredo da longevidade e da imortalidade. Reintegrando-se na condição de animal, o xamane participa nos seus segredos e desfruta da plenitude da sua vida.

Sublinhemos este facto: amizade com os animais e o conhecimento da sua língua representam uma síndroma paradisíaca. In illo tempore, antes de queda, essa amizade fazia parte da condição humana primordial. O xamane recupera em parte a situação paradisíaca de homem primitivo, e isto graças à redescoberta da espontaneidade animal (imitação do seu comportamento) e à linguagem dos animais (imitação dos seus gritos). É importante observar que o diálogo com os animais ou a sua incorporação pelo xamane (fenômeno místico que se deve evitar confundir com a possessão) constituem a fase pré-extática da sessão . O xamane só pode abandonar o seu corpo e começar a sua viagem mística depois de ter recuperado, pela sua intimidade com os animais, uma beatitude e uma espontaneidade inacessíveis na sua situação profana ou quotidiana. A experiência vital desta amizade com os animais projecta-o para fora da condição geral de humanidade em *desgraça+, permitindo-lhe alcançar o illud tempus de que nos falam os mitos paradisíacos.

No que diz respeito ao êxtase em si mesmo, implica, como já afirmamos, o abandono do corpo e a vigem mística ao céu ou aos infernos. Para os nossos objetivos uma coisa sobretudo nos interessa: o facto de a ascensão celestial do xamane se realizar por intermédio de uma árvore ou de um mastro, que simbolizam a Árvore ou Pilar cósmicos. É assim, por exemplo, que o xamane altaico utiliza para a sessão uma jovem bétula desprovida dos seus ramos baixos e sobre cujo tronco se marca sete, nove ou doze degraus. A bétula simboliza a Árvore do Mundo; os sete, nove ou doze degraus representam os sete, nove ou doze céus, isto é, os diferentes níveis celestiais. Após ter sacrificado um cavalo, o xamane serve-se sucessivamente dos degraus para penetrar até ao nono céu, onde se encontra Bai Ulgän, o Deus supremo; descreve ao auditório, com inúmeros pormenores, tudo o que vê e tudo o que se passa em cada um dos céus. Finalmente, no nono Céu, prosterna-se diante de Bai Ulgän e oferece-lhe a alma do cavalo sacrificado. Este episódio marca o ponto culminante de ascensão extática do xamane: deixa-se cair extenuado e, passado um bocado, esfrega os olhos, parece despertar de um sono profundo e saúda os presentes como após uma longa ausência.

O simbolismo da ascensão celestial por intermédio de uma árvore é igualmente ilustrado de forma muito clara pela cerimônia iniciática dos xamanes buriatas. O candidato sobe a uma bétula que se encontra no interior de uma cabana, atinge o cimo e sai pela abertura por onde sai o fumo. Mas sabe-se que a abertura superior por onde o fumo se esvai é comparada ao *buraco+ feito pela Estrela Polar na abóbada celeste. (entre outros povos, o pau da tenda é chamado Pilar do Céu e comparado à Estrela Polar que, também ela, fixa a tenda celeste como se uma estaca e é, aliás, denominada Chave do Céu). Assim, a bétula ritual que se encontra no interior da tenda é uma imagem da Árvore cósmica que está no Centro do Mundo e no cimo da qual brilha a Estrela Polar. Escalando-a, o candidato penetra no Céu: é por isso que, tendo saído da tenda pela abertura, grita com força, invocando o auxilio dos deuses: lá em cima, encontra-se na sua presença.

Um simbolismo similar explica o papel importante do tambor xamanístico. Emsheimer demonstrou que os sonhos ou êxtases iniciáticos dos futuros xamanes comportam uma viagem mística à Árvore cósmica, no alto da qual se encontra o Senhor do Mundo. É num dos ramos dessa árvore, que ele deixa cair par esse efeito, que o xamane talha a caixa do seu tambor. Mas sabemos que se supõe que a Árvore Cósmica se encontra no Centro do Mundo e que liga a Terra ao Céu. Pelo facto de a caixa do seu tambor ser proveniente da própria madeira da Árvore Cósmica, o xamane, quando toca, é projetado magicamente para essa Árvore, isto é, para o Centro do Mundo, onde existe a possibilidade de passar de um nível cósmico para outro.

Assim, seja escalando os sete ou nove entalhes da bétula cerimonial, seja trabalhando com o seu tambor, o xamane empreende uma viagem ao Céu. No primeiro caso, mima laboriosamente a ascensão da Árvore Cósmica; no segundo caso, voa para ela pela magia do tambor. O vôo xamanístico é, aliás, muito freqüente: muitas vezes confunde-se com o próprio êxtase . Entre numerosas variantes do vôo xamanístico, é sobretudo o vôo para o Centro do Mundo que nos interessa; é lá que se encontram a Árvore, a montanha, o Pilar cósmico que ligam a Terra ao Céu; é sempre lá que está o *buraco+ feito pela Estrela Polar. Escalando a Montanha, trepando à Árvore, voando ou penetrando pelo *buraco+ no cimo da abóbada celeste, o xamane realiza a sua ascensão ao Céu.

Ora, sabemos que in illo tempore, na época mítica do Paraíso, uma Montanha, uma Árvore, um Pilar ou uma Liana, ligavam a Terra ao Céu e que o homem primordial podia facilmente subir, escalando-os. A comunicação com o Céu era, in illo tempore, fácil e o encontro com os deuses tinha lugar in concreto. A recordação desse tempo paradisíaco está ainda muita viva entre os primitivos. Os Koriaks lembram-se da era mítica do heroico Grande-Corvo, quando os homens podiam sem custo subir ao Céu; nos nossos dias, acrescentam eles, só os xamanes são ainda capazes de o fazer. Os Bacairi do Brasil pensam que, para o xamane, o Céu não é mais alto que uma casa: é por isso que lá chega num abrir e fechar de olhos.

Isto é o mesmo que dizer que o xamane recupera, durante o seu êxtase, a situação paradisíaca: restabelece a capacidade de comunicação que existia in illo tempore entre o Céu e a Terra; para ele, a Montanha ou Árvore Cósmica tornam-se os meios concretos de acesso ao Céu, tal como eram antes da queda. Para o xamane, Céu aproxima-se novamente da Terra: não está mais alto que uma casa, tal como antes da ruptura primitiva. Por fim, o xamane reencontra a amizade com os animais. Por outras palavras, o êxtase reutiliza, provisoriamente e para um número restrito de sujeitos – os místicos – o estado inicial da humanidade inteira. Neste aspecto, a experiência mística dos primitivos equivale a um regresso às origens, a um recuar ao tempo mítico do paraíso perdido. Para o xamane em êxtase, este mundo, o mundo em desgraça – que, para utilizar a terminologia moderna, se encontra sob a lei do Tempo da História – é abolido. É verdade que existe uma grande diferença entre a situação do homem primordial e a que é recuperada pelo xamane durante o seu êxtase: este só temporariamente faz abolir a ruptura entre Céu e Terra – sobe ao Céu em espírito e já não in concreto, como o homem antigo; não anula a morte (todas a noções de *imortalidade+ que se poderia registar entre os primitivos implicam – da mesma forma que entre os civilizados – a morte prévia; quer dizer que se trata sempre de uma *imortalidade+ post mortem, espiritual).

Para resumir, a experiência mística por excelência das sociedades arcaicas, xamanismo, patenteia a nostalgia do paraíso, o desejo de reencontrar o estado da liberdade e beatitude anteriores à *queda+, a vontade de restaurar a comunicação entre Terra e Céu; numa só palavra, a vontade de abolir tudo o que foi modificado na própria estrutura do cosmos e na forma de existir do homem em seguida à ruptura primordial. O êxtase do xamane recupera em grande parte a condição paradisíaca: ele recuperou a amizade dos animais; pelo seu vôo ou pela sua ascensão, o xamane volta a ligar a Terra ao Céu; lá, encontra-se de novo, face a face ao deus celeste e fala-lhe da viva voz, como sucedia in illo tempore.

Podemos detectar uma situação análoga na mística mais recente e mais elaborada de todas: a mística cristã. O cristianismo está dominado pela nostalgia do paraíso. *A oração voltada para o Oriente relaciona-se com os temas paradisíacos...Voltar-se para o Oriente surge como a nostalgia do paraíso.+ Verifica-se o mesmo simbolismo paradisíaco nos ritos do batismo: *Perante Adão, caindo sob o domínio de Satã expulso do Paraíso, o catecúmeno aparece como libertado pelo Novo Adão do domínio de Satã e reintroduzido no paraíso.+* O cristianismo surge assim como a realização do paraíso. Cristo é a Árvore e vida (Ambrósio, De Isaac, 5, 43) ou a Fonte do Paraíso (Ambrosio De Paradiso, III: 272, 10). Mas essa realização do paraíso processa-se em três planos sucessivos. O batismo é a porta do paraíso (Cirilo de Jerusalém, Procatech; P. G. XXXIII, 357 A); a vida mística é uma entrada mais profunda no Paraíso (Ambrósio, De Paradiso, I, 1); por fim, morte introduz os mártires no Paraíso (Passio Perpet.,I;P.L. III, 28A). É notável, com efeito, que encontremos o vocabulário paradisíaco aplicado a esses três aspectos da vida cristã.+ 

Bem entendido, é a mística que melhor revela a restauração da vida paradisíaca. A primeira síndroma dessa restauração é o domínio reencontrado sobre os animais. Como é sabido, na origem, Adão tinha sido encarregado de atribuir nomes aos animais (Gênesis, II, 19); ora dar nomes aos animais equivale a dominá-los. São Tomás explicava assim o poder de Adão sobre a criatura não racional: *A alma domina, pelo sue comando, as potências sensitivas, como o apetite irascível e concupiscente que, de uma certa forma, obedecem à razão. Daí, no estado de inocência, o homem dominava pela sua vontade os outros animais+ .[13] Mas *o facto de dar nomes ou de mudar nomes desempenha paralelamente um grande papel nos tema s escatológicos ...O reino messiânico provoca uma conversão moral da humanidade mesmo uma transformação dos animais...que caracterizam o mundo saído das mão de Deus+. E, no estado místico, os animais são por vezes submissos ao santo como estavam submissos a Adão. *As histórias dos antigos padres do monaquismo mostram-no-los – o facto não é raro – obedecidos pelas feras que alimentam tal como se fossem animais domésticos.+[15] São Francisco de Assis segue os padres do deserto. A amizade com a feras e o domínio espontâneo sobre os animais são os sinais evidentes da recuperação de uma situação paradisíaca.

Poderia igualmente fazer-se referências ao simbolismo paradisíaco das igrejas e dos jardins dos mosteiros. A paisagem que rodeia o monge reflete o paraíso terrestre: de alguma forma, antecipa-o. Mas é sobretudo a experiência mística, enquanto tal, que nos interessa. 

Ora, como Stolz muito bem demonstrou, a experiência mística cristã exemplar é a ascensão celeste de São Paulo: *Conheço um homem em Cristo que, há catorze anos, foi levado ao terceiro céu (se foi em corpo, ignoro-o). E sei que esse homem (se foi em corpo ou desincorporado, não sei, Deus é que sabe) foi conduzido ao Paraíso e escutou palavras inefáveis, que não é permitido ao homem revelar+ (segunda epístola aos Coríntios, XII, (1-4). Não se insistirá aqui no simbolismo ascensional da mística cristã: a Escada do Paraíso desempenha nele um papel primordial. Os degraus da contemplação designam as fases da ascensão da alma em direção a Deus. Mas São Paulo precisou que essa ascensão mística transporta o homem para o paraíso: as *palavras inefáveis+ que ouviu não serão as do próprio Deus? Porque Adão, no paraíso, *desfrutava habitualmente de colóquios com Deus+, segundo nos garante São Gregório. 

Assim, mesmo sendo o cristianismo dominado pela nostalgia do Paraíso, só os místicos obtém, em parte, a restauração paradisíaca: amizade com os animais, ascensão ao Céu e encontro com Deus. A mesma situação se apresenta nas religiões arcaicas: uma certa nostalgia do Paraíso é detectada a todos os níveis da vida religiosa, mas afirma-se sobretudo na experiência mística, isto é, no êxtase dos xamanes. E as características específicas da restauração do illud tempus são as mesmas: amizade com os animais, ascensão ao Céu, diálogo com Deus celestial. Tal côo para o santo cristão, a recuperação do Paraíso pelo xamane em êxtase é provisória: porque nem um, nem outro conseguem abolir a morte, quer dizer, não podem restabelecer totalmente a situação do homem primordial.

Por fim, poderia ainda referir que, para a tradição cristã, o Paraíso se tornou inacessível por causa do fogo que o rodeia. *O Paraíso é tanto mais inacessível, quanto mais certo é que está rodeado por um círculo de fogo ou, o que vem dar ao mesmo, a sua entrada é guardada por anjos com gládios inflamados. “Deus – diz Lactante (divin. Instit., II, 12), - expulsou o homem do Paraíso, que rodeou de fogo, para que a ele não pudesse ter acesso.” São Tomás faz alusão a isso quando explica que o Paraíso não nos é acessível, sobretudo por causa do calor que o mantém distante dos nossos países.+ E por isso que aquele que quiser penetrar no Paraíso deve atravessar primeiro o fogo que o rodeia. *Por outras palavras, apenas aquele que foi purificado pelo fogo pode, a partir daí, entrar no Paraíso. Ora a via purgativa precede a união mística e os místicos não hesitam em situar essa purificação da alma no mesmo plano que o fogo purificador que conduz ao Paraíso..+

Estes poucos textos nos bastam: resumem e justificam toda uma doutrina do fogo purificador que guarda o acesso ao Paraíso. Não entraremos aqui na discussão do simbolismo do fogo na mística e na teologia cristãs. Mas é significativo verificar que semelhante simbolismo se deixa entrever em todo um grupo de técnicas xamanísticas: é o bem conhecido domínio do fogo. Com efeito, por todo o mundo, os xamanes são considerados como mestres do fogo: durante as sessões, engolem tições incandescentes, tocam em objetos ao rubro, marcham sobre brasas. Este domínio do fogo foi já testemunhado entre xamanes das sociedades mais arcaicas; faz parte do xamanismo no mesmo grau que o êxtase, a ascensão ao Céu ou linguagem dos animais. A ideologia que o domínio do fogo implica não é difícil de esclarecer: para o mundo primitivo ( como aliás para todas as sociedades populares em geral), os espíritos distinguem-se dos humanos pela sua incombustibilidade, quer dizer, pela sua capacidade de resistir à temperatura das brasas; julga-se que os xamanes ultrapassam a condição humana e participaram na condição dos espíritos: tal como eles, tornam-se invisíveis, voam pelos ares, sobem ao Céu, descem aos Infernos; dispõem, enfim, da incombustibilidade. O domínio do fogo equivale em termos perceptíveis à transcendência da condição humana; o xamane demonstra, também desta vez, que se integrou numa condição espiritual, que se tornou – ou pode tornar-se durante a sessão – um espírito.

Se compararmos o fogo purificador das tradições cristãs que rodeia o Paraíso, com o domínio do fogo dos xamanes, reparamos pelo menos num ponto comum: tanto num caso como no outro, atravessar impunemente o fogo é sinal de que se aboliu a condição humana. Mas, para o cristianismo, bem como para as tradições arcaicas, a atual condição humana é o resultado da *queda+. Por conseguinte, abolir, mesmo provisoriamente, essa condição equivale a reintegrar a situação do homem primordial; por outras palavras, anular o Tempo, regressar atrás, recuperar o illud tempus paradisíaco. A que ponto essa recuperação da situação primordial é precária, é o que revela sobretudo o facto de o xamane a obter imitando a condição dos espíritos. Aliás, já o fizemos notar a propósito das outras técnicas xamanisticas: durante o transe não é o xamane que voa para os Céus, é apenas o seu espírito. A mística cristã apresenta uma situação análoga: é só a alma que, purificada pelo fogo, penetra no Paraíso.

As analogias que acabamos de estabelecer parecem-nos importantes: segue-se daí que não existe solução de continuidade entre a ideologia da experiência mística primitiva e a mística judaico-cristã. Entre os primitivos, tal como entre os santos e os teólogos cristãos, o êxtase místico é um regresso ao Paraíso, quer dizer que se caracteriza pela abolição do Tempo e da História (a queda), e a recuperação da situação do homem primordial.

Compreendam-nos bem: cotejando estas analogias, não pretendemos, de forma alguma, emitir um juízo de valor relativamente ao conteúdo das diversas experiências místicas, primitivas ou outras; limitamo-nos a observar que as suas ideologias comportam, como nódulo central, a nostalgia do Paraíso. Isso não exclui, bem entendido, as múltiplas diferenças que existem, não só entre as místicas primitivas e as místicas judaico-cristãs, mas também entre as diversas escolar místicas cristãs. Por outro lado, escolhemos de propósito a comparação ente o tipo de experiência mística mais arcaica e o cristianismo,deixando de lado as grandes tradições orientais: mesmo que a saída do Tempo e a abolição da História constituam o elemento essencial de toda a experiência mística, e por conseguinte, também das místicas orientais, parece-nos que a característica paradisíaca é mais bem conservada pelos místicos arcaicos. Num certo sentido, as comparações entre os tipos de mística primitivas e a mística cristã são mais válidas do que entre esta última e as místicas indiana, chinesa ou japonesa.

Mas, mesmo não pretendendo esboçar, nesta poucas páginas, um estudo de mística comparada, importa sublinhar o principal resultado do nosso inquérito: a perfeita continuidade ideológica entre a experiência mística mais elementar e o cristianismo. No principio como o fim da história religiosa da humanidade, encontra-se mesma nostalgia do Paraíso. Se nos dermos conta do facto de ele se deixar igualmente entrever no comportamento religioso em geral, do homem das sociedades arcaicas, estamos no nosso direito de supor que a recordação mítica de uma beatitude sem história assedia a humanidade desde o momento em que o homem tomou consciência da sua situação no cosmos. Abres-se uma nova perspectiva, por conseqüência, no estudo da antropologia arcaica. Não é aqui o lugar adequado para empreender este estudo. Será suficiente afirmar que, à luz de tudo o que acabámos de observar, certos aspectos da espiritualidade primitiva que considerava aberrantes, não o são em absoluto. A imitação dos gritos dos animais pelo xamanes, que não deixava de impressionar os observadores e que foi considerada muitas vezes pelos etnólogos como a manifestação de uma possessão patológica revela, na realidade, o desejo de reencontrar a amizade dos animais e, por conseguinte, reintegrar-se no Paraíso primordial. O transe extático, seja qual for a sua fenomenologia, só é aberrante se não levarmos em conta o seu significado espiritual: na realidade, como vimos, o xamane esforça-se por restabelecer as comunicações entre a Terra e o Céu, interrompidas pela *queda+. O domínio do fogo também não é uma superstição de selvagens: demonstra, pelo contrário, a participação do xamane na condição dos espíritos.

Considerados sob o ângulo que lhes é próprio, todos os comportamento estranhos do xamane revelam a mais alta espiritualidade: estão de facto, dependentes de uma ideologia coerente e de grande nobreza. Os mitos que constituem essa ideologia contam-se entre os mais belos e ricos que existem: são os mitos do Paraíso e da queda, da imortalidade do homem primordial e da sua relação com Deus, da origem da morte e da descoberta do espírito (em todos os sentidos deste termo). Isto não deixa de ter conseqüências na compreensão e valorização do primitivo e, de um modo geral, do homem não-europeu; demasiadas vezes o ocidental se deixa impressionar pela manifestação de uma ideologia, ignorando justamente a única coisa que interessa, antes de mais, conhecer: a própria ideologia, em primeiro lugar, dos modos locais e dos estilos culturais e estes podem ou não ser imediatamente acessíveis. Julgamos, então, a partir das impressões colhidas: uma cerimônia das máscaras é bela, uma certa dança é sinistra, um rito de iniciação é selvagem ou aberrante. Mas se nos dermos ao trabalho de compreender a ideologia subjacentes a todas estas manifestações, se estudarmos os mitos e os símbolos que as condicionam, descartamo-nos do subjetivismo das impressões e ascendemos a uma perspectiva mais objectiva . por vezes, a compreensão da ideologia basta para restabelecer a *normalidade+ de um comportamento. Recordemos um único exemplo: a imitação dos gritos dos animais. Durante mais de um século, acreditou-se que esses gritos estranhos do xamane eram prova do seu desequilíbrio mental. Porem, tratava-se de coisa muito diferente: da nostalgia do Paraíso que assediava já Isaías e Virgílio, que alimentava a santidade dos padres da Igreja e que desabrochava, vitoriosa, na vida de São Francisco de Assis.