Mostrando postagens com marcador Torá. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Torá. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Rabi Akiva: o maior dos rabinos da história judaica

RABI AKIVA, UMA HISTÓRIA DE CORAGEM E AMOR

É o que se pode chamar de uma verdadeira história de amor. Uma história de coragem, heroísmo e sacrifício que, ao mesmo tempo, aquece o coração e o arrebata; inspira-nos, provocando júbilo e lágrimas. É a história do pastor humilde que se torna o maior dos rabinos da história judaica.

Akiva, filho de José, trabalhava para Kalba Savua, um dos homens mais ricos de Jerusalém, conhecido por sua generosidade. Rachel, sua bela filha, tomou-se de amores por Akiva, prometendo tornar-se mulher dele se ele concordasse em dedicar sua vida ao estudo da Torá. Mas, além de pobre, ele, aos 40 anos, era analfabeto. Certo dia, Akiva percebeu que as gotas d'água que caíam sobre uma pedra conseguiam perfurá-la. E lhe ocorreu um pensamento: "Se a água, que é tão mole, pode furar uma pedra dura, as palavras da Torá - que são tão concretas - certamente poderão deixar sua marca em meu coração sensível". Concorda, então, com a exigência de Rachel e os dois se casam. Kalba Savua, horrorizado com a escolha da filha, a rejeita e faz votos de deserdá-la. E, assim, acompanhado de sua dedicada esposa, que deixara para trás uma vida de luxo para estar a seu lado, Akiva começa a estudar a Torá cercado da mais cruel pobreza. O casal se mantinha juntando toras de madeira que Akiva, em parte, vendia, e ficava com o remanescente para fazer gravetos. Acesos, serviam para iluminar a casa durante suas prolongadas horas de estudo. Apesar de trabalharem, ainda lhes faltava alimento, em casa, e Raquel cortou suas lindas tranças e as vendeu. Com isso, seu marido podia devotar mais tempo a estudar a Lei.

Rabi Akiva deixou sua casa para estudar na Academia de Yavne, que, após a destruição de Jerusalém, tornara-se a sede do Sanhedrin e da erudição judaica. Lá, estudou sob a orientação de dois luminares talmúdicos - Rabi Eliezer e Rabi Yoshua. Após uma ausência de doze anos, voltou à sua cidade natal, acompanhado de 12 mil alunos. Ao se aproximar de casa, ouviu sua mulher que conversava com uma vizinha. Esta lhe perguntava: "Quanto tempo ainda você viverá como viúva?" Ao que ela respondeu que agüentaria outros doze anos de solidão para que seu marido se dedicasse por completo ao estudo da Torá. Ao ouvir aquilo, Rabi Akiva retrocede, voltando à yeshivá. Decorridos mais doze anos, ele finalmente volta a casa, acompanhado, desta vez, de 24 mil doutos estudiosos da Lei de Moisés. Rachel corre até ele, prostrando-se a seus pés. Seus discípulos, desconhecendo de quem se tratava, tentaram afastá-la, mas seu mestre os deteve com as palavras que ficaram imortalizadas: "O que hoje possuo e do qual todos vocês desfrutam, somente pude conquistar graças a ela".

Nesse ínterim, Kalba Savua tendo sabido da chegada à cidade de um notável erudito judeu, decide procurá-lo para conseguir a anulação dos votos que fizera contra a filha. Arrependia-se de ter permitido que Rachel passasse fome durante 24 anos e queria o seu perdão. E o grande erudito não era outro senão seu próprio genro, a quem rejeitara. Os dois se reconciliam e Kalba Savua dá a metade de sua fortuna a Rabi Akiva.

"Quem estuda a Torá na pobreza um dia o fará na riqueza", ensinam nossos Sábios. E foi o que ocorreu a Akiva. O Talmud revela que a partir de então, ele se tornou um homem abastado. Em sua casa havia mesas de ouro e prata. Para sua esposa, que tanto sofrera, que vendera o lindo cabelo para que ele estudasse, Rabi Akiva comprava os mais belos adornos. Um destes era uma reprodução de Jerusalém gravada em ouro.

A Torá de Rabi Akiva

O mestre ensinava que a Torá, por ter sido escrita pelo Criador, é completa, nada lhe faltando e, por outro lado, não contendo sequer uma letra supérflua. Em sua inteireza, é toda conteúdo, sem filigranas retóricas nem palavras vãs. Cada uma de suas letras e de suas pontuações abriga um significado profundo e, com freqüência, misterioso.

Até a época de Rabi Akiva, a Torá Oral, cuja transcrição era proibida, não era classificada nem organizada segundo seu conteúdo. Conseqüentemente, um erudito tinha que possuir tremenda capacidade de memorização para conseguir lembrar-se de todos os seus preceitos e ensinamentos. Para evitar que o povo judeu pudesse, algum dia, esquecer-se da Torá Oral, Rabi Akiva iniciou um trabalho de classificação de cada uma de suas leis de acordo com o teor. Assim, estabelecia as fundações para as compilações da Mishná - núcleo do Talmud - que acabou sendo transcrito e editado, anos mais tarde, pelo Rabi Yehudá HaNassi. Ao assim proceder, o sábio Akiva preservou a Torá Oral, assegurando, destarte, a sobrevivência do judaísmo.

Rabi Akiva dirigia uma academia de Torá em Bnei Brak. Com freqüência, assistia as sessões do Sanhedrin - a Suprema Corte Judaica - na cidade de Yavne. Esta corte jamais adotou uma lei importante de cuja redação ele não tivesse participado. Certa vez, chegando atrasado para uma sessão, permaneceu aguardando do lado de fora. Ouviu-se, então, alguém dizer, no recinto, que "a Torá se encontrava fora"; e enquanto o mestre não entrou, não se tomou interpretação judicial ou decisão qualquer.

Rabi Akiva também era versado em diferentes ciências, como medicina e astronomia. Falava vários idiomas e, a miúde, acompanhava um de seus mestres, Raban Gamliel, a Roma, levados pela causa do povo judeu.


Durante suas palestras, o estudioso mestre moralizava os ouvintes de forma inspiradora. Suas lições eram relatadas em todas as casas judias e todo judeu empenhava-se em regular sua vida segundo os preceitos morais de Rabi Akiva.

Seus professores, seus colegas e seus ensinamentos atestavam ser ele a personificação do amor e da generosidade. O mestre gostava de repetir que tudo o que D'us fizesse, era para o bem, "Gamzu le-tová". Dizia que o mundo deveria ser julgado segundo suas virtudes e o bem que aqui se recebia era apenas uma pequena parcela da recompensa que nos aguardava no Mundo Vindouro. Acreditava que até o mais simplório dos judeus se deveria considerar um aristocrata, por ser filho de Abrahão, Isaac e Jacob. Rabi Akiva também costumava dizer que o povo judeu atestava a grandeza de D'us: o Criador libertara os filhos de Israel do cativeiro para Se redimir juntamente com eles. E Akiva oferecia um ensinamento profético e assustador que acabou sendo aplicável a ele próprio: era em benefício do próprio D'us que Ele escolhera os judeus, entre todas as nações, pois que os outros povos louvavam seus deuses na prosperidade e os amaldiçoavam quando sua sorte lhes dava as costas. Mas os judeus, ensinava o Rabi, sempre louvam a D'us, quer na prosperidade quer na penúria. Não surpreende, pois, que de todos os livros da Torá, Rabi Akiva mais apreciasse o Cântico dos Cânticos. Foi dos primeiros a nele perceber a descrição do amor entre D'us e o povo judeu. E era, de fato, o amor o tema central de sua vida e de seus ensinamentos. Em seu entender, a essência de todo o judaísmo, o todo abrangente mandamento da Torá, pode ser encontrado em um de seus versos: "E amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Levítico, 19:18).

O Talmud nos descortina inúmeras revelações sobre o homem Akiva - que ele pedia ajuda para os pobres, que reverenciava os Sábios e rejubilava no cumprimento dos mandamentos da Torá; que visitava pessoalmente um discípulo enfermo e varria seu quarto quando outros não o faziam. Ao orar, perdia-se por completo; o conceito de tempo e espaço deixava de existir para ele, quando se deixava enlevar pelo Divino. E, a despeito de sua grandiosidade, continuava humilde. Sabemos de sua generosidade e do quanto valorizava a vida, tendo declarado, em certa ocasião, que se porventura fosse um magistrado, homem algum jamais seria condenado à pena capital. Rabi Akiva era um homem do mundo - verdadeiro legislador da Torá, preocupavam-no as filigranas da lei - mas, ainda assim, um místico. Foi um dos quatro Sábios que, ainda em vida, adentrou o Pardêss - o Jardim Místico - vivenciando o Mundo Vindouro, ha-Olam Habá. Foi o único a voltar com vida e em paz consigo mesmo, pois fora o único a aprender a harmonizar sua existência física com a espiritual.

É famosa a seguinte história sobre sua pessoa. Seu mestre, Rabi Eliezer ben Hircano, levantou-se de um dia de jejum para entoar a prece pela chuva. Recitou 24 bênçãos, mas nenhum pingo se viu. Rabi Akiva acercou-se, então, do púlpito e exclamou: ""Avinu Malkenu, nosso Pai, nosso Rei: não temos outro rei além de Ti. Nosso Pai, nosso Rei, age por Tua causa e tem misericórdia de nós". De imediato, os pingos de chuva caem sobre eles. Mas a história não termina aí. O povo judeu adotou sua prece e, até os dias de hoje, recitamos o mesmo rogo nos jejuns coletivos, em Rosh Hashaná e durante os Dez Dias de Penitência, que culminam em Yom Kipur.

Rabi Akiva também leva a reputação de ter composto o Kadish - a oração recitada pelas almas dos que partiram deste mundo. Mas, curiosamente, o Kadish não fala em morte - nem uma vez sequer. Pelo contrário, é comprovadamente o texto mais lindo, mais emocionante em toda a liturgia judaica de louvor a D'us. Somente uma alma nobre como Akiva para encontrar significado e conforto mesmo na morte.

Seu sacrifício e morte

Sua vida foi sempre pontilhada pela tragédia, mas ele a superava, vez após vez, com seu amor infinito. Durante a epidemia que terminou em Lag Ba'Omer, 24 mil de seus discípulos pereceram. [O fim dessa peste é uma das razões que fazem do 33º dia de Omer uma data festiva]. Como teria qualquer outro ser humano, professor ou rabino, reagido a uma tal catástrofe? Abandonariam o ofício, afogar-se-iam em depressão, buscariam o exílio; quiçá almejassem a morte. Mas não Rabi Akiva. Armou-se de novas forças e, começou de novo, conquistou novos alunos a quem guiou pelos meandros do judaísmo. Seu amor pelo povo judeu, pela Torá e por D'us não se deixavam vergar pela tragédia. Nunca se desesperava e jamais, durante toda a sua vida - nem mesmo nos momentos mais sombrios - desistiu. Sequer titubeou. Como mérito por sua coragem e perseverança, ele legou ao povo judeu dois de seus maiores Sábios: Rabi Meir Baal HaNess - o Mestre dos Milagres - e Rabi Shimon Bar Yochai, autor do Zohar, o Livro do Esplendor, que sistematizou e começou a divulgar a sabedoria da Cabalá.

Rabi Akiva estava vivo quando o Segundo Templo foi destruído. Testemunhou, também, um dos holocaustos do povo judeu: em Betar, uma cidade em Eretz Israel, um general judeu de nome Shimon Bar Kochba iniciou uma revolta contra Roma. Bar Kochba, a princípio, teve êxito em sua campanha, levando Rabi Akiva a crer - e proclamar - que o grande guerreiro era o Messias. Mas a revolta judaica terminou vencida e os romanos capturaram e deram cabo à vida de Bar Kochba. Após a destruição de Betar, o Imperador romano, Adriano, anti-semita e assassino, decidiu aniquilar todo o povo judeu. Se os romanos capturassem algum judeu importante, este era torturado antes de ser exterminado. A brutalidade imposta a cada judeu de renome era proporcional à sua grandeza e importância.

Após a queda de Betar, Rabi Akiva foi preso e condenado à morte pelos romanos. Foi sentenciado à pena capital por ter violado o decreto romano que proibia o ensino da Torá. Em total desprezo a Roma, Akiva desafiadoramente ensinava a Lei de Moisés em público, agrupando os alunos onde os encontrasse. E por assim agir - e salvar o judaísmo - Roma exigia mais que a sua morte. Teria que ser barbaramente torturado - não na cruz, como o tinham sido outros 250 mil judeus. Para ele, Roma escolhera uma forma mais horripilante ainda de morte: Rabi Akiva seria esfolado vivo com rastelos de ferro. O algoz romano o rasgaria, pedaço por pedaço, até seu último suspiro.

E agora, voltemos ao Talmud e ao Midrash para conhecer seus momentos finais na Terra.

Uma história do Talmud. Nos Céus, Moisés viu um homem e o ouviu interpretar a Torá para seus discípulos. Dirigindo-se ao Eterno, perguntou Moisés: "Senhor de todo o mundo! Tendo tão grande homem na Terra, a mim caberia receber Tua Torá?" Ao que D'us respondeu: "Foi este o Meu desejo". Moisés retrucou, então: "Mostraste-me o homem; agora revela-me o seu fim". E D'us disse a Moisés que se virasse para testemunhar a tortura e morte de Akiva. "Senhor do Universo!", protestou Moisés, "tanto conhecimento da Torá e esta é a recompensa que lhe toca?" E D'us lhe ordena: "Cala-te! Pois é este o Meu desejo".

Há outra história semelhante, também do Talmud. D'us revelou a Adão todo o registro das gerações que o sucederiam - os futuros eruditos e líderes judeus que comporiam a sua descendência. O Criador também fez ver ao primeiro homem a geração de Rabi Akiva. Adão apreciou deveras tais informações, mas ficou profundamente entristecido com a visão da morte que aguardava Rabi Akiva. Tentou, por todas as maneiras, obter uma morte mais suave para o grande rabi, mas viu seu pedido negado.

Os anjos nos Céus também tentaram anular tal decreto. Uma lenda mística do Midrash nos conta que enquanto Akiva estava sendo destroçado pelos romanos, os anjos choravam amargamente e suas lágrimas caíram no grande mar e o fizeram ferver, enquanto o mundo todo era sacudido pela voz angelical que questionava D'us: "É esta a Tua recompensa a um homem que cumpriu tão fielmente a Tua Torá?"

Mas, na Terra, abaixo, um homem - um dos maiores a tocar seu solo, caminhava, com bravura, em direção à morte, sem que um som saísse de sua garganta, em protesto, nem uma lágrima de seus olhos escapasse. Rabi Akiva foi julgado e condenado à morte pelo governador romano na Terra de Israel, o maléfico Tirano Rufo. No dia de Kipur, Akiva foi conduzido ao local da execução. Era cedo, o dia começava; hora de recitar o Shemá. O povo judeu reuniu-se em torno de seu líder, acompanhando-o em seus derradeiros momentos. A execução era pública e presenciada por toda a população.

Mas, para choque e surpresa de todos os presentes, ao começarem a despedaçá-lo, Rabi Akiva tinha um sorriso nos lábios, prestes a desatar em riso. Exasperado, o governador romano grita-lhe: "Mesmo nesta hora, zombas de mim! Deves ser o demônio. Não há como um ser humano agüentar tanto sofrimento físico com tua calma e teu sorriso!". Seus alunos indagavam: "Mestre, o que está ocorrendo? Como podes rir numa hora destas?"

E o que lhes respondeu Akiva? Foi isto o que lhes declarou o maior rabino na história judaica: "Por que sorrio? Pois este é o momento mais glorioso de minha vida! Dia após dia, dia e noite, recitei as palavras do Shemá: 'e amarás o Eterno, Teu D'us, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu vigor'. Entendia as palavras 'com toda a tua alma' como sendo 'mesmo às custas de toda a tua alma', e sempre imaginava se mereceria a oportunidade de cumprir esse mandamento - o de abrir mão de minha própria alma em nome de D'us".

E Rabi Akiva continuou: "Hoje, isto está acontecendo. Hoje estou sendo morto por ser judeu. Hoje estou sendo morto por minha fé em D'us e por tê-la fortalecido entre os outros. Não é, pois, este, o momento supremo de minha vida - em que posso oferecer minha vida a D'us?" A seguir, recitou as palavras: "Shemá Israel, Ad-nai Elo-enu, Ad-nai Echad"- Escuta, ó Israel, o Eterno é nosso D'us, o Eterno é Um". Deteve-se na pronúncia da palavra Echad - "Um", como afirmação da Absoluta Unicidade de D'us - até que sua alma foi recolhida e devolvida ao Criador.

Foi enterrado em Tiberíades, assim como o foram outros grandes Sábios. Seus despojos físicos lá estão, mas sua alma está também em outras partes, talvez em todas as partes onde haja judeus. O Talmud ensina que uma pessoa que perde a vida por ser judeu torna-se santificada e não há quem a ela se iguale, em mérito. Um dos maiores sábios do Talmud, Rabi Yehoshua ben Levi, revelou que o Paraíso tem sete níveis e que a alma de Rabi Akiva está no mais alto deles, ao lado de todos os judeus de todas as gerações que foram mortos por serem judeus.

Sua grandeza e seu legado

Rabi Akiva, pastor pobre e analfabeto que começou a estudar a Torá aos quarenta anos, tornou-se o maior sábio de sua era - um homem que seria chamado de "pai do mundo". Foi odiado e admirado por seus inimigos romanos e reverenciado pelos judeus. Certa vez, debatia com um colega, o sábio Rabi Tarfon, sobre a lei que exigia dos sacerdotes condutores dos serviços no Templo não ter imperfeições físicas. A posição do colega era mais flexível que a de Rabi Akiva. "Lembro-me", disse Rabi Tarfon, "de ter visto meu tio, que era manco, tocar o shofar no pátio do Templo". Rabi Akiva não estava convencido e explicou que Rabi Tarfon presenciara uma assembléia - não um ritual de sacrifício - já que qualquer imperfeição física desqualificaria um sacerdote de realizar os sacrifícios. Ao que Rabi Tarfon retrucou: "Eu estava lá! Vi e ouvi tudo, ao passo que você nem lá esteve! Tudo o que tem é esse seu poder de interpretar a lei da Torá. E mesmo assim, sabe mais do que eu. Akiva, Akiva: afastar-se de você é afastar-se da própria vida!"

Assim como Moisés, Rabi Akiva, morreu aos 120 anos. Os dois - o maior dos profetas e o maior dos rabinos da história judaica - tiveram caminhos semelhantes. Ambos eram pastores. Seus primeiros quarenta anos foram isentos de Torá: Moisés vivia no palácio do Faraó, enquanto Akiva nem sabia ler. Os quarenta anos seguintes foram vividos longe de casa - um vivenciou a Revelação Divina e se tornou o maior profeta da história. O outro encontrou o Divino através do estudo, tornando-se o mais destacado mestre da Torá. E, por último, os derradeiros quarenta anos na vida de ambos foram vividos liderando o povo judeu e lhes transmitindo a Divina Torá.

Como Moisés, que constantemente colocava sua vida e seus méritos na posição de pleitear em nome do povo judeu, Akiva encontrava maneiras de eximir os outros de qualquer culpa por suas falhas ou transgressões. Com sua coragem e brilhantismo, o Rabi servia de inspiração a quem o conhecesse. Onde os demais viam tragédia e desespero, via esperança. Certa vez, enquanto ele e três outros grandes Sábios subiam a Jerusalém, ao Monte do Templo, viu uma raposa que saía do local do Santo Santíssimo, que era a câmara mais sagrada do Templo. Os três Sábios se puseram a chorar e Akiva a rir. Quando lhe perguntaram o motivo do riso, explicou: duas profecias tinham sido feitas acerca do Templo Sagrado - uma por Uriá e a outra por Zechariá. O primeiro previu sua total destruição; o segundo, aludindo à Era Messiânica, prometeu que os anciãos voltariam às ruas de Jerusalém. E explicou que enquanto a profecia de Uriá não se tinha cumprido, ele temia que a de Zechariá não se concretizaria. Mas agora, tendo presenciado a ocorrência do pior, ele estava certo de que haveria de chegar o dia em que o Terceiro Templo - e definitivo - seria erguido. Os Rabinos, aceitando seu raciocínio, disseram-lhe: "Akiva, tu nos confortaste. Akiva, tu nos confortaste".

O sol não se põe sem haver outro nascente, ensinam os Sábios. D'us não deixa este nosso mundo totalmente destituído de luz. O dia em que Rabi Akiva ascendeu aos Céus, naquele dramático Yom Kipur, nascia um grande líder do povo judeu - um homem cuja liderança e erudição em Torá são comparadas, pelo Talmud, com as de Moisés. Esse homem, Rabi Yehudá HaNassi, continuou a obra de Rabi Akiva; compilou e redigiu a Torá Oral, para que o povo judeu nunca a olvidasse, destarte salvaguardando o judaísmo para todo o sempre. Mas isto é uma outra história...

Rabi Akiva foi o exemplo supremo do Baal Teshuvá - o judeu que "retorna", voltando a abraçar o judaísmo. Sua trajetória até a grandiosidade não foi rápida nem fácil. Praticou a arte do silêncio antes de começar a falar a língua da sabedoria da Torá. Quando começou a aprender e a praticar os seus mandamentos, errava, às vezes, chegando até a ser repreendido por mestres e colegas. Ele nos faz lembrar que nunca é tarde demais, nunca há total desalento, pois que até o mais desinteressado dos judeus pode voltar à sua religião e à sua herança, e até o mais inculto dos judeus pode não apenas estudar a Torá, mas também a dominar e difundir. Rabi Akiva legou ao povo judeu a sua coragem, o seu heroísmo e o seu amor. Sua execução invoca uma imagem, tragicamente exibida muitas vezes na história de nosso povo: inúmeros judeus a caminho da morte certa - da fogueira, das câmaras de gás - rezando, recitando o Shemá, proclamando a unidade de seu Criador; e eis que de súbito irrompem em cantos. Teriam sido inspirados pelo amor de Rabi Akiva? Teria sido a sua coragem que os carregara quando desceram ao vale da morte e ascenderam à Eternidade?

Ele permanece como nosso grande herói. É difícil contar sua história com os olhos secos, ausentes. É difícil ouvir falar dele sem se curvar em humildade e gratidão. Akiva foi um pergaminho vivo da Torá, um ser que caminhava e respirava como nós, mortais. Foi Moisés quem nos trouxe a Torá dos Céus. Mas foi Rabi Akiva quem assegurou que a Lei de Moisés continuaria a imperar, para sempre, na Terra. Como rabino e mestre, ele continua sem paralelo, jamais igualado na história de nosso povo.

Um grande Sábio do Talmud, Rabi Dosa ben Harkinas, assim se referia a Rabi Akiva: "Seu nome ressoa de uma extremidade a outra do mundo". E assim continua a ressoar, reverberando, para sempre, através dos tempos. Seu nome se tornou uma bênção, um cântico, uma prece. Sim, foi Rabi Tarfon quem melhor o colocou em palavras: "Akiva, Akiva, afastar-se de ti é afastar-se da própria vida".

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

As concepções sobre os mistérios da Vida, da Morte e do Além, nos textos Midráshicos, Torá, e no Livro da Sabedoria

Independentemente da catequese divina, vertical, na qual insistimos, também é verdade que se verificaram e verificam influências horizontais, a história assim o atesta (ambas se complementam em direção a um mesmo Alto Desígno!), e por isso não tem nada de singular o fato de certas crenças egípcias terem passado para os Hebreus, embora com um faseamento histórico diferente e até com significativas modificações de conteúdo.

No hebraísmo primitivo, a que poderíamos chamar período patriarcal, e durante bastantes séculos da história judaica, o destino post-mortem praticamente não existia (cf. supra, pp. 100-102), de modo que a justiça de Jahvé, para poder ser aceita e reconhecida, tinha de se exercer, com seus prémios e castigos, enquanto os seres humanos viviam neste mundo como nos testemunha, por exemplo, uma das seções mais antigas do livro de Jó, redigida provavelmente antes do século VIII a. C. mas que teria fixado uma tradição oral remontando aos séculos XII ou XIII a. C. Nesse trecho se estabelece um confronto entre a árvore, que mesmo cortada pode reverdecer, e o homem para o qual tudo termina com a morte:

Há sempre esperança para uma árvore:
mesmo caída, pode recomeçar a viver…
Mas um ser humano? Morre, e morto permanece,
solta o último suspiro, e para onde vai?…
Um ser humano, uma vez caído, nunca mais se reergue,
os céus desaparecerão e ele não despertará…
Acaso podem os mortos voltar à vida? - Jó 14, 7.10.12.14.

Como é que na mentalidade hebreia surgiu e se desenvolveu a fé numa vida após a morte e numa justiça retributiva ultraterrena ?

Sugerem alguns historiadores que esta crença se formou durante a helenização do Médio Oriente e se consolidou sobretudo a partir do século II a. C. com as perseguições religiosas praticadas pelo selêucida Antíoco IV, o Epífano (215-164 a. C.), monarca do reino helenístico da Síria.

Depois de ter invadido e ocupado o Egipto, Antíoco virou os seus apetites para Israel que tentou igualmente absorver, e desta musculada tentativa da sua ambição e dos seus exércitos resultou um extenso rol de destruições e pilhagens bem como a chacina dos Judeus mais ortodoxos que se lhe opunham, sobretudo os Hasidim .

Antíoco assolou Jerusalém e decretou a pena de morte para quem prestasse culto a Jahvé; ergueu no Templo da cidade um altar a Zeus Olímpico e ordenou que se fizessem sacrifícios diante dum ídolo à sua própria imagem. Judas Macabeu, chefe da oposição judaica à ocupação sírio-helénica, pôs-se à frente dos Hasidim e empenhou-se numa guerra sem quartel contra o invasor.

A tradicional teodiceia judaica, patente nos mais antigos livros da Bíblia, em que as penalidades e as recompensas sobrevinham por deliberação e intervenção divinas durante a vida terrena, sofreu um vigoroso abalo com estas perseguições de Antíoco e das suas tropas. Com efeito, aquele conceito de uma divina justiça atuando regularmente e diretamente no mundo físico revelou-se incapaz de dar conta do que se passava e de consolar as piedosas vítimas: nesses conturbados tempos eram precisamente os bons e os justos que padeciam os mais duros castigos, enquanto os apóstatas floresciam e prosperavam!

Os textos do Antigo Testamento vão-nos testemunhando como estes e outros fatos históricos igualmente escandalosos para os Israelitas (o exílio babilónico, por exemplo, no século VI a. C.) foram induzindo no ânimo dos perseguidos a ideia dum futuro prémio para os bons, que sacrificaram a vida pela causa de Israel, e dum futuro castigo para os ímpios perseguidores.

No primitivo hebraísmo, tal como nos testemunha por exemplo o Gênesis, o ser humano era uma "unidade de força vital", porque o seu corpo de carne (bâsâr) não só tinha um alento vital (nephesh) - por vezes apressadamente identificado com a "alma" - mas também um sopro espiritual (ruach) provindo de Deus. Aliás, o Prof. Sid Z. Leiman, catedrático de História e Literatura Judaicas na Universidade de Brooklyn, chama a atenção para um pormenor significativo: o ser humano não possuía um nephesh, diz ele, mas era um nephesh, e cita o Génesis: "…Wayehi ha-adam le-nephesh hayya" ("… e o homem tornou-se um ser vivente") (Génesis 2, 7).

Na prática, e nesses antiquíssimos tempos, nephesh e ruach quase se indistinguiam, e não podiam ter uma existência separada, fora do corpo; por conseguinte, com a morte, todo o conjunto se dissolvia e apenas uma vaga sombra permanecia no sheol. Foi só a partir do momento em que os Hebreus sentiram a tal necessidade dum futuro prêmio ou castigo, sobretudo a partir do século II a. C., como vimos, que o termo nephesh começou a ser encarado como uma entidade psíquica com existência independente do corpo.

Porém, já nesse tempo e mais ainda posteriormente, as diferentes escolas judaicas não se entendiam nem se coadunavam quanto ao que deveria acontecer após a morte, havendo mesmo sérias rivalidades, em algumas delas, quanto à validez de se irem buscar as velhas ideias egípcias de ressurreição e concomitante retorno dos corpos…

Vejamos um caso típico registado por Flávio Josefo no Bellum Judaicum, respeitante às disputas doutrinais do seu tempo (primeiro século da era cristã) sobre a morte e a vida após a morte, por exemplo entre os saduceus e os fariseus.

Estes últimos, que expressavam as ideias duma classe média mais liberal, seguiam a Lei escrita de Moisés - a Torah - mas complementavam-na com a tradição oral e admitiam, por exemplo, a ressurreição dos mortos e até, em certos casos, a reencarnação das almas em vários corpos sucessivos (cf. Epifânio de Salamina, Panarion I, 16).

Em contrapartida os saduceus, que se reclamavam da linhagem de Sadoq, sumo-sacerdote de Salomão (1 Reis 2, 35) e contemporâneo do célebre Iniciado Nathan da Irmandade dos Profetas, recusavam seguir outra Lei que não fosse a Torah (os cinco primeiros livros do Antigo Testamento, ou Pentateuco) e negavam a imortalidade da alma, a ressurreição dos corpos após a morte e a existência de espíritos angélicos.

Por sua vez a comunidade essênia, não deixou textos exotéricos, explícitos, sobre essa matéria: "A bem-aventurança dos eleitos tal como vem descrita na Regra da Comunidade ou no Documento de Damasco está muito mais próxima da "imortalidade da alma" do que da "ressurreição da carne" […] São surpreendentes a ambiguidade e a imprecisão, para não dizer a falta de provas, na literatura da seita de Qumrân sobre a ressurreição, individual ou geral" .

A ideia de uma futura "ressurreição dos corpos" constituiu, no Judaísmo, uma novidade teológica que começou a tomar forma sobretudo a partir do século II a. C., como nos testemunham alguns textos bíblicos dessa época:

Daniel 12, 2-3, Isaías 26, 9 ou o 2.º livro dos Macabeus (cf. supra, pp. 105-106).

Certos estudiosos admitem que esta ideia pode ter tido origem, também, na antiga religião Iraniana em que a Grande Batalha Cósmica, dualística, entre a vida e a morte, acabará por ser ganha pela vida através da ressurreição dos mortos. Por outro lado a influência grega, na época helenística, ajudou a transformar a sombras do sheol em verdadeiras "almas", com uma existência imortal à margem e independentemente do corpo .

Aliás, certos passos do 2.º livro dos Macabeus deixam alguma dúvida se se tratará do conceito de "ressurreição dos mortos", ou, antes, de alguma forma de "reencarnação", isto é, de renascimento num novo corpo, naturalmente humano e por isso semelhante ao atual.

No capítulo 7, que narra o martírio dos sete irmãos Macabeus às mãos do tirano Antíoco IV, deparamos com as seguintes frases:

"Ímpio brutal, podes arrebatar-nos a vida presente, mas o Rei do mundo reerguer-nos-á a fim de vivermos de novo para sempre, visto que morremos pelas suas leis" (2 Macabeus 7, 9).

"O céu deu-me estes membros; por amor às suas leis não me preocupo com eles; e dele espero recebê-los de novo" (7, 11).

"A nossa é a melhor escolha, encontrar a morte pelas mãos dos homens, confiando na promessa de Deus que seremos reerguidos por ele; ao passo que para ti não haverá ressurgimento para uma nova vida" (7, 14).

Por sua vez a mãe dos heróis encoraja os filhos a sofrerem varonilmente o martírio, dizendo-lhes:

"Não sei como aparecestes no meu ventre; não fui eu quem vos dotou de respiro e de vida, nem formei os vossos membros. Mas o Criador do mundo que fez os homens e ordenou a origem de todas as coisas, restituir-vos-á, na sua misericórdia, o vosso respiro e a vossa vida, visto que por amor das suas leis não vos preocupais convosco" (7, 22-23).

A ambiguidade deste conceito reflete-se mais adiante quando a mãe afirma que Deus criou o mundo ex nihilo , contrariando a tradição judaica, do Gênesis, bem como as concepções do nascente Judaísmo helenístico, antecipando de certo modo o gnosticismo de Basilides (meados do século II d. C.):

"Imploro-te, meu filho, olha para a terra e para o céu e tudo o que há neles, e de como Deus os fez a partir do nada, e de como os humanos vieram à existência da mesma maneira" (7, 28).

Alguns teólogos - como por exemplo o professor Willem B. Drees da Universidade de Groningen, Holanda (cf. Beyond the Big Bang, 1990) - admitem que este versículo acusa uma nítida influência grega no contexto judaico do século II a. C. Essa influência das ideias gregas sobre o conjunto das concepções judaicas do mundo e da morte poderá igualmente observar-se na maneira de conceber a doutrina da reencarnação, ou preexistência das almas com sucessivos renascimentos, como parece confirmar o livro bíblico da Sabedoria, escrito no séc. I a. C. por um judeu culto da diáspora e que naturalmente reflecte as ideias do seu autor. Nele podemos ler:

"Recebi por lote uma alma excelente, ou antes, por ser bom, entrei num corpo sem defeito" (Sabedoria 8, 19-20).

"Porque um corpo corruptível pesa sobre a alma, e essa tenda de barro sobrecarrega o espírito com os seus cuidados" (Sabedoria 9, 15)

Os teólogos mais conservadores tentam demonstrar que estes passos não se referem a nenhuma forma de reencarnacionismo, e que a escatologia do livro da Sabedoria pode ser explicada por categorias exclusivamente judaicas sem recorrer às (óbvias) influências helenísticas que nele existem.

Os exegetas laicos contra-argumentam que os teólogos bem podem considerar que não se trata de preexistência das almas, mas o que os teólogos consideram não anula o que lá está por mais que se empenham em demonstrar o indemonstrável, isto é, a não influência grega sobre o Judaísmo intertestamentário.

O problema reside em que o livro da Sabedoria, considerado apócrifo pelo cânone judaico (e luterano) foi aceito como canônico pela Igreja católica no Concílio de Trento (1545-1563) ao mesmo nível dos restantes livros inspirados da Bíblia - e este é um ponto absolutamente indisputável para um teólogo católico. Daí os malabarismos retóricos e dialéticos a que a teologia católica mainstream se vê obrigada a recorrer, a fim de analisar, reler e reinterpretar aqueles textos e subjacentes conceitos até fazê-los encaixar no corpus dos dogmas da Igreja - nomeadamente, neste caso, o dogma da ressurreição da carne.

Para o Judaísmo farisaico a crença na ressurreição dos corpos é um artigo de fé da Mishnah:

Todos os Israelitas terão a sua parte no mundo vindouro […] E não terão parte no mundo vindouro aqueles que dizem que não há ressurreição dos mortos prescrita na Lei, e os que dizem que a Lei não é do Céu, e os epicuristas. (Sanhedrin X, 1).

Já vimos que os saduceus rejeitavam a ressurreição dos mortos por não a encontrarem na Lei de Moisés (Torah), discordância que deu origem a muitas discussões e controvérsias: na literatura rabínica, talmúdica e midráshica podemos deparar com inúmeras opiniões diferentes sobre o destino da alma após a morte, a redenção messiânica, a ressurreição dos mortos, o mundo vindouro… como por exemplo se os mortos se recordam ou não do mundo que deixaram, com que corpo é que os ressuscitados (se é que ressuscitam!) irão eternizar-se, sobretudo os que em vida tiveram corpos malformados e doentes, ou se esses corpos se tornarão perfeitos, ou ainda se aparecerão nus ou vestidos, etc.

Um dos textos midráshicos chega ao ponto de afirmar:

"A única diferença entre os vivos e os mortos é o poder da fala" (Pesikta Rabbati XII, 46).

Acerca daqueles de entre os fariseus que acreditavam na reencarnação, diz-nos Flávio Josefo:

"… Concebem a alma como imperecível, mas só as almas dos bons passam para outro corpo, enquanto as dos maus sofrem um castigo eterno".

O filósofo judeu Fílon de Alexandria, contemporâneo de Jesus, argumentava que o corpo é uma coisa morta e um "conspirador contra a alma", e que a doutrina da ressurreição é secundária à da imortalidade da alma, e que no fundo o conceito de ressurreição não passa de uma maneira figurada de representar a verdadeira imortalidade espiritual. Modernamente, certas versões atuais do Judaísmo negam a crença na ressurreição a favor da doutrina da simples imortalidade, ou seja, afirmam que a ressurreição não deve ser tomada literalmente mas simbolicamente.

Enfim, não vale a pena adiantar muito mais para se perceber que já no tempo de Cristo vigoravam as concepções mais díspares e até opostas sobre os mistérios da vida, da morte e do além. Como os ensinamentos de Jesus sobre tais mistérios têm sido diversamente interpretados ao longo dos séculos - e ainda hoje -, importa ver um pouco mais de perto como é que esses ensinamentos ficaram registrados e que precauções exigem para a sua plausível decifração.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

O Talmud

O Talmud define e dá forma ao judaísmo, alicerçando todas as leis e rituais judaicos. Enquanto o Chumash (o Pentateuco, ou os cinco livros de Moisés) apenas alude aos Mandamentos, o Talmud os explica, discute e esclarece. Não fosse este, não entenderíamos e muito menos cumpriríamos a maioria das leis e tradições da Torá e o judaísmo não existiria. Historicamente, os judeus que, individualmente ou em grupo, negaram sua validade, acabaram por se assimilar ou desaparecer. E, como outras religiões adotaram o texto da Torá Escrita - Torá she-bichtav, mesmo a tendo traduzido de forma errada, adicionando ou removendo partes da mesma e a interpretando de forma proibida pelo judaísmo, é o Talmud o verdadeiro divisor de águas, o texto sagrado que diferencia os judeus das outras nações do mundo.

Nós, judeus, sempre tivemos consciência de que nossa sobrevivência como grupo dependia do estudo deste trabalho. Os inimigos históricos de nosso povo, que devido a interesses teológicos ou nacionais quiseram converter ou destruir o judaísmo, também estavam cientes dessa realidade. No passado, quem se aventurava a declarar guerra à religião judaica, começava por proibir o estudo do Talmud, sob risco de pena de morte. Através do curso da história, em diferentes países e períodos, esta magna obra foi queimada, em praça pública. Muitos de seus trechos foram removidos por aqueles que se sentiam ameaçados por sua genuína interpretação da Torá, pela elucidação clara e inequívoca que dava aos Mandamentos Divinos e por seu repúdio absoluto a qualquer forma de idolatria ou imoralidade.

Mas, o que vem a ser esta obra monumental? Pode-se dizer, com segurança, que a maioria dos judeus de nossos dias já ouviu menção ao mesmo, mas apenas uma pequena minoria o estudou. Sua definição formal é a de ser a compilação da Lei Oral, que foi transmitida por D’us a Moisés, no Monte Sinai, tendo sido estudada e dissecada, através dos séculos, pelos sábios que viviam em Israel e na Babilônia, até o início da Idade Média. O Talmud tem dois componentes principais: a Mishná, um livro sobre a lei judaica, escrito em hebraico, e a Guemará, comentário e elucidação do primeiro, escrita no jargão hebraico-aramaico.

Um olhar superficial sobre a Guemará pode induzir alguém a pensar que se trate apenas de explicações e elaborações sobre as leis e ensinamentos da Mishná. Mas, na realidade, trata-se de algo muito mais abrangente um conglomerado de milhares de anos de sabedoria, história, legislação, lendas e filosofia judaica. Sua santidade e autoridade, como veículos para a Revelação Divina, em nada são inferiores à da Torá Escrita. Ademais, mistura - entre outras áreas do conhecimento - as ciências à lógica, aconselhamento prático, lições e relatos extraordinários, palavras de perspicácia e inspiração e, até mesmo, ocasionais toques de humor. O Talmud é uma mescla de arte e ciências: é o livro da legislação judaica - técnico e preciso - mas é também uma enciclopédia e uma obra magistral de sabedoria, jamais igualada na história da humanidade.

Para um iniciante no estudo do Talmud, a Guemará pode parecer que foi escrita com total liberdade de pensamento. Geralmente envereda por apartes tangenciais ao assunto em pauta, daí partindo para a discussão de um mandamento, o relato de uma história ou simplesmente oferecendo pérolas de sabedoria que, de uma maneira ou de outra, têm alguma relação com o assunto tratado. No entanto, a bem da verdade, todo o seu arcabouço é extraordinariamente bem ordenado e lógico. Cada uma de suas palavras foi submetida à meticulosa revisão antes de ser transcrita.

É irônico que esta fonte básica e fundamental da lei judaica sirva muito raramente como autoridade final e definitiva para as discussões sobre o que a Torá nos ordena. Seguimos este Pentateuco de acordo com os ditames do Shulchan Aruch (o Código da Lei Judaica) e dos sábios contemporâneos que interpretam as aplicações de suas leis. Mas o Talmud permanece sendo o alicerce imutável para praticamente todas as leis que emanam da Torá.

A Torá Oral

O Talmud cobre uma ampla variedade de assuntos, seguindo, no entanto, um plano coerente e muito bem estruturado a dizer, a Mishná, pilar central da Lei Oral. Comparada à Guemará, é concisa e objetiva. Compõe-se de uma série de declarações, organizadas por assunto e tópico, que ensinam as leis, a tradição e a história judaica. Apesar de seu conteúdo se originar do Monte Sinai, algumas de suas declarações são atribuídas ao mestre ou à escola de pensamento que as elucidou e difundiu. Os sábios talmúdicos foram mais do que a simples “cadeia de transmissão” que remonta a Moshé Rabeinu. Pois está escrito que cada um deles tinha atingido tão elevado nível espiritual que conseguia até mesmo ressuscitar os mortos. Esses mestres da Torá personificavam a Vontade de D’us e, assim sendo, cada aspecto de sua conduta e cada uma de suas palavras foram marcadas por absoluta precisão e orientação Divina.

É a Mishná que provê a Guemará de sua base organizacional e factual. Cada uma das leis talmúdicas precisa ter uma fonte e esta é encontrada na Mishná. A Guemará pode dissecar e divagar sobre os ditames da Mishná, estabelecer conexões entre seus diferentes assuntos e esclarecer aparentes contradições, mas não pode abertamente discordar da mesma. A Mishná surge como o árbitro final em qualquer litígio talmúdico.

Há outras coletâneas de diretrizes e ensinamentos, que são parte integrante da Torá Oral: Sifra e Sifri, Tosefta e Bareitot, além dos Midrashim, que também foram preservados por escrito, muitos dos quais dentro da própria Guemará. No entanto, a Mishná tem precedência sobre os demais ensinamentos da Torá Oral. Isto significa que sempre que houver uma aparente contradição entre um ditado da Mishná e qualquer outro ensinamento da Lei Oral, caberá à Guemará buscar a verdade na qual se fundamenta o tema, com base na própria Mishná.

É importante mencionar que quando as pessoas falam no Talmud, geralmente estão-se referindo ao Babilônico. No entanto, há outro que foi escrito em Israel. Conhecido como o de Jerusalém o Talmud Yerushalmi foi revisado pelo Rabi Yochanan 300 anos após a destruição do Segundo Templo. É bem mais conciso que o Talmud Bavli, o Babilônico, pois, de fato, trata principalmente das leis referentes à Terra de Israel. Via de regra, os judeus que viviam na diáspora negligenciavam a obra compilada em Jerusalém, mas, nos últimos anos, vimos renascer o interesse por essa obra, devido grandemente ao retorno de milhões de judeus à Terra de Israel.

Desde o Monte Sinai, a Torá Oral - ou Torá she-be’alpê - como seu nome bem o indica, só foi transmitida oralmente. Por razões várias, nossos sábios nunca permitiram que fosse escrita. Mas, uma vez destruído o Segundo Templo, os líderes judeus começaram a se preocupar que a Torá Oral, sendo tão maciça e complexa, cairia no esquecimento em virtude da opressão romana e a conseqüente dispersão do povo judeu. No ano de 188 a.E.C., o Rabi Yehudá ha-Nassi, sábio cuja inigualável liderança e vastidão de conhecimentos sobre a Torá lhe valeram o título de o “Rabi (do Talmud)”, finalmente terminou de compilar a Mishná. Centenas de anos mais tarde, já no final do séc. IV da E.C., Rav Ashi, importante sábio babilônico, iniciou a compilação de todo o Talmud. Seus discípulos e os alunos destes deram continuidade à gigantesca obra de redigi-lo. No entanto, diferentemente da Mishná, o Talmud foi oficialmente completado por nenhum erudito em particular; daí dizer-se que “ainda está por ser terminado”. Através dos séculos, suas palavras e ensinamentos foram meticulosamente analisados, interpretados e explicados por incontáveis sábios, estudiosos e mestres. É geralmente comparado ao oceano sua vastidão é tremenda, mas sua profundidade é incomensuravelmente maior. De fato, é um fiel testamento da Infinita Torá de D’us.

O estudo do Talmud

Em hebraico, esta palavra significa literalmente “estudo” ou “aprendizado”. É a incorporação do fundamental mandamento judaico de “estudar a Torá” - Talmud Torá. Ao contrário de quase todos os outros campos do saber, o estudo do Pentateuco tem propósitos que vão muito além da simples aquisição de conhecimentos. É um meio e um fim, por si só; seu objetivo é o próprio aprendizado. Portanto, o grau de importância e aplicação prática da matéria em discussão tem importância secundária. Isto não significa que não tenha relevância. Pois como aprendemos com nossos mestres, o estudo da Torá é o maior de todos os mandamentos judaicos, uma vez que faz com que se evitem os pecados e se pratiquem atos positivos e boas ações que beneficiem nossos semelhantes. É óbvio que para aprender as leis do judaísmo - e os princípios e detalhamentos necessários para cumpri-las - é imprescindível estudar a Torá. Segundo esta perspectiva, este estudo tem um propósito prático. No entanto, o simples fato de a estudar - mesmo que não haja nenhuma aplicação prática ou razão para fazê-lo - é extraordinariamente precioso aos olhos dos Céus. Alguns de nossos mestres foram ainda mais longe, ao dizer que o estudo da Torá, apenas, é mais importante do que o cumprimento dos outros mandamentos, apesar de nenhum deles ter o poder de substituir o outro. Pois como está escrito nas preces matinais que recitamos todos os dias,...”Elu devarim…São estes os mandamentos que, se os praticar, o homem colherá os frutos neste mundo, enquanto que a sua recompensa final o esperará na vida futura: honrar pai e mãe, praticar atos de bondade, ...promover a paz entre os homens; mas, acima de tudo, reina soberano o estudo da Torá, cujo valor a todos eles se equipara” (Mishná: Peá 1:1).

A raiz da palavra hebraica Torá é hora’á - ensinamento. O Pentateuco ensina ao homem o caminho que terá que seguir se optar por viver de acordo com os desejos e diretrizes de D’us. Aquele que estuda a Torá precisa viver de uma forma que honre e eleve o judaísmo e o povo judeu. Sua vida e conduta devem refletir a sabedoria, piedade, compaixão e todos os outros ideais incorporados pela Torá. Pois, caso contrário, diziam nossos sábios, “melhor seria nunca ter vindo a este mundo”. Afirmavam, também, categoricamente, que aquele que alega ter adquirido a sabedoria da Torá, mas não cumpre os seus mandamentos nem pratica boas ações, não a incorporou, de fato, dentro de si.

Existe uma concepção errônea generalizada de que a Torá é simplesmente um livro de lei e história judaica-divina, mas, ainda assim, apenas isto. A verdade é que representa a Vontade e a Sabedoria do Criador. O Talmud discute uma grande variedade de assuntos - uns sublimes, outros mundanos - mas todos, de alguma forma, refletem o relacionamento e envolvimento de D’us com este Seu mundo. Diferentemente das obras da Cabalá, preocupa-se, sobretudo, com o terreno e o mundano. Discute o que há de mais intrincado e, às vezes, o que aparenta ser totalmente irrelevante na lei judaica. Porém, oculto em suas lições e ditames, escondem-se profundos segredos e ensinamentos espirituais e místicos.

A Torá abarca todos os assuntos e a estudamos para entender como nos relacionar e agir diante de cada um destes. Nas palavras do Rabino Steinsaltz: “Os mandamentos e as aplicações práticas das leis da Torá estão subordinados à busca pela verdade que se esconde por trás de todas as coisas. O propósito sublime do Talmud não é utilitário, de forma alguma - mas unicamente a busca da verdade”. É por esta razão, como vimos acima, que a aplicação prática de qualquer tema nele discutido é de importância secundária. O que esta obra busca é a verdade e a visão da Torá sobre qualquer assunto ou matéria, quer seja legal, histórico ou filosófico. Portanto, uma prova ou declaração que possa dar a impressão de ser auto-evidenciada poderá ser questionada ou mesmo rejeitada pelo Talmud - pois pode conter alguma falha sutil, quase imperceptível em sua lógica ou argumentação. Este apenas aceita a argumentação mais convincente. Simboliza a busca do judaísmo pela verdade absoluta. Não há dogmas na religião judaica: quase tudo pode e deve ser questionado, apesar de que a pessoa conscienciosa deve entender que a alma humana ainda não está preparada e, portanto, não pode pretender compreender, em toda a sua plenitude, a Vontade e a Sabedoria do Criador.

Como o objetivo primordial do Talmud é essa busca da verdade, esta obra é praticamente toda estruturada em perguntas e respostas. E mesmo quando as perguntas não são explicitamente articuladas, encontram-se por trás de cada afirmação e ensinamento. Talvez seja o único livro sagrado, no mundo, que não apenas permite, mas estimula os que o estudam a questioná-lo. A Sabedoria de D’us está oculta em suas palavras, cabendo a cada um dos que o estudam, seja este sábio ou iniciante, tentar desenterrá-la. No entanto, é preciso lembrar-se que a Torá, em sua plenitude, originou-se de D’us; cada um de seus ensinamentos que já foi ou venha a ser praticado, foi transmitido a Moisés no Monte Sinai. Assim sendo, quando um sábio Talmudista faz uma afirmação, ele não está agregando ou opinando sobre algo, mas sim revelando um assunto da lei ou da sabedoria Divina. Aquele que domina as matérias acerca da lei judaica precisa ser um verdadeiro mestre em Torá. E deve entender que carrega consigo a tremenda responsabilidade de discernir e transmitir a Vontade de D’us ao povo judeu. Seus ensinamentos devem ser firmemente arraigados no Talmud e no Código da Lei Judaica, devendo ser uma extensão viva da Torá, originalmente entregue a Moisés.

É bem verdade que há diferenças de opinião no Talmud e isto, infelizmente, tem sido usado como desculpa para interpretações pessoais e aplicações impróprias ou tentativas de “reformular” as leis da Torá. Estas concepções errôneas geralmente são oriundas da falta de entendimento da dimensão espiritual da lei judaica. Diferentemente dos campos de conhecimento secular, pontos de vista diferentes sobre a Torá não constituem imprecisão ou erro. Pelo contrário, os mandamentos aparentemente contraditórios - que na prática, são raros - refletem as diferentes maneiras pelas quais D’us se relaciona com o mundo: por vezes com flexibilidade e condescendência, por vezes, com maior severidade. Uma das maiores polêmicas históricas no Talmud ocorre entre as escolas de dois grandes sábios: Hillel e Shammai. Suas disputas acabaram sendo resolvidas por uma voz que emanou dos Céus, afirmando: “Ambos transmitem as palavras do D’us Vivo, mas a decisão está alinhada com a escola de Hillel”. O fato de um método ser preferível ao outro não invalida o outro nem significa que seja impreciso, de forma alguma. Os místicos judeus ensinaram que Hillel personificava o atributo Divino da flexibilidade e condescendência, enquanto que Shammai incorporava as qualidades Divinas da precisão e do rigor. Explicam que como vivemos em um mundo imperfeito, necessitando constantemente de misericórdia, seguimos, quase que sem exceção, os mandamentos da Torá de acordo com os ditames da escola de Hillel. Na era messiânica, no entanto, quando o mundo atingir um estado de perfeição, iremos seguir a Torá como a ensinava Shammai. Por isso, devemos sempre lembrar que não há ensinamento alheio, não pertinente, no Talmud. Ainda que não sejam seguidos os ensinamentos de um determinado sábio - qualquer que seja a razão para tal - não podem, de forma alguma, ser depreciados, pois também esses preceitos são oriundos do Monte Sinai. Há uma história sobre um sábio que afirmou que um certo ensinamento não era de seu agrado, sendo repreendido por seus colegas que lhe disseram ser errado afirmar que “isto é bom e isto não é”, em se tratando da Torá.

O Pentateuco, em sua totalidade, é perfeito e aquele que o estuda com o espírito preparado - e com todo o respeito que merece - conecta-se de imediato com D’us. Pois o Senhor de Tudo, cujo Saber é Infinito, “condensou” Sua Sabedoria em Sua Torá, para que o homem possa entender o pouco sobre Ele que pode ser compreendido pela mente humana. O mérito no estudo da Lei de Moisés, por si só - não com o intuito de conquistar honras e louvores - tem inestimável valor para os Céus. Sobre o estudo do Talmud, especificamente, declarou o Rabi Yehudá ha-Nassi: “Não há medida maior de recompensa do que esta”.

Através dos séculos, o povo judeu fez muitos sacrifício, para poder estudar e ensinar e, desta forma, preservar o Talmud. Entenderam - da mesma forma, como, infelizmente, o fizeram seus inimigos - que, de fato, era o que os preservava. Não há antídoto maior contra a assimilação judaica do que o estudo da Torá. E esta é uma das razões pelas quais, juntamente com a prática da caridade, constitui o maior dos mandamentos Divinos. Mas este estudo serve como uma confirmação disso, ainda maior do que a sobrevivência coletiva do povo judeu. Ensinam os nossos sábios que o estudo adequado da Torá “salva e protege” e é fonte de bênçãos para uma vida longa, com fartura e benesses. Pois está escrito: “O alongar-se da vida está na sua mão direita; na sua esquerda, riquezas e honra” (Provérbios, 3:16). Mesmo se apenas um único indivíduo estudar a Torá, são tantos e tão grandes os seus méritos, que têm o poder de acarretar bênçãos para o mundo inteiro. O judaísmo ensina que toda a existência física é sustentada pela força da oração, pelo estudo da Torá e pela prática de atos de bondade e justiça. Aquele que estuda a Lei de Moisés, torna-se, portanto, parceiro d’Aquele que sustenta o Universo por Ele criado.

Os sábios talmúdicos e mestres da Cabalá revelam que o estudo da Torá serve como escudo para a alma humana, protegendo-a após a vida. E, como “não há esquecimento diante do Trono de Glória do Senhor”, mesmo se uma pessoa esquecer parte da sabedoria da Torá que adquiriu, sua alma a recorda e a transporta para a eternidade. Contanto que a pessoa se mantenha fiel a seus preceitos, aprofundando-se nos mesmos e andando por seus caminhos, esta mesma Torá sempre implorará diante da Corte Celestial por essa pessoa e por todo o povo judeu. Por isso, afirmamos na prece que celebra o término de um tratado do Talmud: “A ti voltaremos e tu retornarás a nós; nossos pensamentos estão fixos em ti, assim como os teus estão fixos em nós; não te esqueceremos assim como tu não nos esquecerás - nem neste mundo, nem no Mundo Vindouro!”