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sábado, 17 de setembro de 2011

John J.Collins: Flávio Josefo, a literatura apocalíptica e a revolta de 70 na Judéia


Este artigo discute as relações entre escatologia e concepção de história na obra do historiador judeu Flávio Josefo, tomando-se por eixos de análise tanto a relação por ele estabelecida entre as expectativas messiânicas dos judeus quanto às concepções meta históricas de sua obra, em si mesmas credoras da literatura apocalíptica.


Entre 74 e 79 d.C., o historiador judeu Flávio Josefo redigiu uma obra que teria lugar assegurado postumamente como um dos textos historiográficos mais famosos da Antigüidade - a Guerra dos judeus.

Pretendendo dar à Judéia do séc. I o mesmo tratamento historiográfico que Tucídides deu à Grécia do séc. V a.C., Josefo acabou indo além da mera cópia, fornecendo um quadro muito mais diversificado, em termos de abordagens explicativas, do que a mera imitação de Tucídides poderia supor. Este artigo pretende ser uma reflexão sobre uma das conexões causais estabelecidas por Josefo para explicar a guerra; farei aqui apenas considerações gerais que deverão ser aprofundadas oportunamente.

A Guerra dos judeus, daqui para frente apenas BJ, compõe-se de sete livros, que lhe conferem um tamanho comparável ao da Guerra do Peloponeso de Tucídides. Foi redigida, na forma em que nos chegou, em grego, ainda que tenha tido um original aramaico hoje perdido (BJ 1.1). Josefo deixou-nos ainda outras três obras, que serão de escasso interesse para o tema deste artigo: as Antigüidades judaicas (AJ, 20 livros, escritas após 93-94), o Contra Apião (CA, obra de apologética judaica em molde grego, posterior a 95), e uma Autobiografia (V, também escrita depois de 95). O peso da literatura apocalíptica na revolta judaica de 67 d.C. tem sido objeto de pouca discussão, ainda que as citações ligeiras abundem. Com exceção de um artigo importante de Per Bilde, o tema ainda não foi tratado de modo independente, ainda que sejam freqüentes referências ligeiras à relação apocalíptica / guerra da Judéia, tanto em autores antigos como modernos.

Este não é o lugar indicado para um tratamento da discussão moderna acerca da literatura apocalíptica; na verdade, não há o mínimo consenso sobre os termos essenciais de sua definição. Todavia, os elementos levantados por John J.Collins parecem suficientemente amplos para cobrir uma definição operacional útil da apocalíptica judaica. Segundo ele,

Apocalipse é um gênero de literatura revelatória com uma estrutura narrativa, na qual a revelação é mediada por um ser do outro mundo a um receptor humano, revelando uma realidade transcendente que é simultaneamente temporal, na medida em que busca salvação escatológica, e também espacial, na medida em que envolve outro mundo.

Collins pretende assim definir a apocalíptica tanto em termos da forma quanto do gênero. Nesse sentido, os apocalipses podem ser, na qualidade de textos literários, de dois tipos básicos:

1. Apocalipses com viagem ao outro mundo (extramundanos);

2. Apocalipses históricos.

Como gênero, é impróprio falar-se de “apocalipses”; somente poucos textos recebem esse rótulo nos manuscritos. Convém ainda distinguir entre “apocalipses” (textos de um gênero literário identificado tardiamente), “apocalipsismo” (movimentos religiosos que têm por base de identificação elementos encontráveis na literatura apocalíptica, mas que não se utilizam necessariamente da leitura dos textos apocalípticos) e “escatologia apocalíptica” (o conteúdo escatológico dos textos, i.e. sua composição teológica.

Não há acordo quanto aos elementos constitutivos da apocalíptica: no séc.XX foram feitas várias tentativas de sistematização, nenhuma delas totalmente satisfatória - como de resto não pode ser exaustiva ou perfeita qualquer classificação de elementos constitutivos de um gênero literário. Mesmo assim a definição de Collins parece a menos excludente e arbitrária.

Seja a apocalíptica entendida como gênero literário ou como movimento religioso, sua importância no mundo judaico do séc. I d.C. e no Mediterrâneo oriental como um todo é inegável. Josefo identifica o ardor messiânico com grupos políticos rebeldes da Judéia, ainda que freqüentemente de modo confuso. Os preconceitos do historiador judeu evidenciam-se de modo especialmente claro no mais eloqüente discurso de toda a sua obra, onde vincula um grupo político em particular à disseminação do crime pela Judéia:

[...] como poderíamos nós [os zelotes, grupo particularmente belicoso] esperar sermos os únicos sobreviventes de toda a nação dos judeus, como se diante de Deus fôssemos inocentes e isentos de crime - nós, que o ensinamos aos demais? (BJ 7.330)

Além disso, Josefo identifica um grupo particularmente violento de ativistas, os sicarii, com a militância religiosa, ao descrevê-los em termos semelhantes e consecutivamente:

[...] uma nova espécie de bandidos estava surgindo em Jerusalém, os chamados sicarii, que cometiam assassinatos à luz do dia, dentro da cidade [e, tendo cometido seus crimes com adagas curtas que traziam escondidas], juntavam-se ao choro e indignação gerais, nunca sendo descobertos [...] E além desses havia outro grupo de malfeitores, de mãos mais puras e intenções mais ímpias, que contribuíram tanto quanto os assassinos para o fim da paz na cidade. Mentirosos e impostores fingiam inspiração divina ao pretenderem mudanças revolucionárias, e persuadiram a multidão a agir de modo insensato, guiando-a ao deserto sob a crença de que lá Deus lhes mostraria os sinais da salvação. Félix, considerando isso o prenúncio de uma insurreição, enviou contra eles cavalaria e infantes pesadamente armados, e matou muitos (BJ 2.254-260).

A repulsa de Josefo pela apocalíptica ou inspiração profética manifesta-se de modo intenso quando se trata de denegrir indivíduos das camadas mais baixas da população, como no trecho subseqüente ao anterior:

Um golpe ainda mais duro foi dado aos judeus pelo falso profeta egípcio. Um charlatão, que tinha obtido para si próprio a reputação de profeta, esse homem apareceu no país e reuniu atrás de si uns 30 mil tolos, e liderou-os por um caminho tortuoso do deserto até o monte denominado das Oliveiras. Dali pretendeu entrar à força em Jerusalém e, após dominar a guarnição romana, tornar-se tirano do povo, empregando os que o tivessem acompanhado na invasão como sua guarda pessoal [...] Como resultado, o egípcio escapou com alguns de seus seguidores, a maior parte da força que o acompanhava foi morta ou tomada como prisioneira; o restante dispersou-se e voltou discretamente aos seus lares (BJ 2.261-263).

Estas são algumas das passagens de BJ mais importantes para a relação que Josefo estabelece entre o ardor messiânico e a guerra contra Roma. Neste artigo, discuto as relações entre a literatura apocalíptica e Josefo em torno de dois eixos centrais - a presença da apocalíptica como elemento constitutivo na obra de Josefo, e o que ele tem a dizer sobre a apocalíptica como combustível para a revolta. Na verdade o próprio Josefo não tem essa distinção posta com tanta clareza, uma vez que ele tanto se compara, envaidecido, a Daniel como repudia os rebeldes pela pretensão de interpretarem oráculos e trechos apocalípticos. Uma questão adicional se coloca pelo fato de que, como vimos acima, “literatura apocalíptica” como gênero é uma categoria moderna (e das mais recentes); não é sinônimo de expectativa messiânica, mas torna-se impossível distinguir uma de outra no mundo que Josefo descreve. É bem verdade também que nem todo líder com pretensões religiosas à realeza era necessariamente um líder messiânico - por exemplo, os casos do pastor Atronges em 4 a.C. (BJ 2.60-5 e AJ 17.278-84) e o do “falso profeta” egípcio surgido durante o governo de Félix, citado acima.


Em suma, mesmo não sendo categorias idênticas, profetas falsos e verdadeiros, livros apocalípticos, oráculos sibilinos e o texto bíblico reconhecido como sagrado na época de Josefo misturam-se. Longe de indicar confusão mental por parte de Josefo, essa mescla sublinha apenas a artificialidade das categorias que nós impomos à religiosidade judaica da época da revolta - artificialidade que, se não temos como evitar podemos ao menos olhar com suspeição.

As dificuldades que as afirmações de Josefo sobre o peso dos apocalipses e assemelhados nos colocam são muitas, mas não são de forma alguma incontornáveis. Devemos ter em conta, antes de tudo, duas coisas: Josefo não concebe a apocalíptica como gênero literário próprio, e nem leva em conta a noção de pseudepigrafia - i.e. não aborda Daniel criticamente, considerando-o um profeta do séc.VI a.C. e não como um apocalipse redigido em nome do personagem Daniel, muito posteriormente (séc.II a.C.). Mas são dificuldades que não se pode evitar; vejamos dois artigos que tratam mais detidamente da relação Josefo-apocalíptica, os de Per Bilde e de Arnaldo Momigliano.

Começemos pela análise do artigo de Momigliano, “What Josephus did not see”. A idéia central do autor é a de que o judaísmo de Josefo é apenas retórico, sendo “insosso e sem cor”, já que Josefo ignora duas das principais instituições judaicas da época, a sinagoga e a literatura apocalíptica.

Quanto à sinagoga, ela aparece efetivamente na obra de Josefo, ainda que en passant: ao ter de visitar uma na Galiléia, subitamente Josefo se vê ameaçado de morte e tem de fugir (V 293 ss.). Mas para a outra ausência, que nos interessa mais detidamente, não há como defender o ponto de vista de Momigliano.

Josefo não discute a literatura apocalíptica (seria excessivo pedir que o fizesse), mas a conhece, e de modo bastante completo: cita um apocalipse extensamente (Dn) e dá indicações de conhecer bem o livro 3 dos Oráculos sibilinos, que não são propriamente um apocalipse, mas têm muito em comum com eles (e que repetem um tema clássico na Antigüidade, o da vingança da Ásia sobre o Ocidente). A questão da ausência de referências precisas dos apocalipses em Josefo não deve conduzir à idéia de que ele os desconhecia. Momigliano opta aqui pelo caminho mais fácil, não levando em conta as complexidades do problema.

O artigo de Per Bilde é, sob todos os aspectos, melhor informado que o de Momigliano. Bilde pretende um exame mais criterioso dos termos relacionados aos apocalipses, tal como aparecem na obra de Josefo.

O termo apokalypsis não aparece na obra de Josefo, embora o verbo apokalyptein surja em quatro oportunidades (BJ 1.297, 5.350; AJ 12.90, 14.406 = BJ 1.297). Josefo usa outros termos para falar das revelações do oculto que lhe são feitas por Deus; Para a “revelação” do divino usa outros termos (p.ex. a)dh/lwn para falar de Dn, em AJ 10.210 ou deiknymi - e)pideiknu\j - em AJ 10.271; 277; no mesmo sentido apocalíptico, dhlw=n é usado em AJ 4.105; 10.177, 195, 198, 201, 202, 205, 208, 272. Mesmo quando se trata da revelação por meio de sonhos (algo que Josefo e Daniel têm em comum), o termo utilizado pelo historiador é proesêmanen para indicar aquilo que Deus havia lhe mostrado em sonhos.

Convém ressaltar aqui uma das afirmações do artigo de Bilde: Momigliano parece entender por apocalíptica apenas a escatologia militante que supõe ter sido combustível na revolta contra Roma. Se ela foi determinante na eclosão da revolta ou não, é questão que deixo em aberto; todavia, não se pode tratá-la de modo tão uniforme. O fato de a apocalíptica ser prolífica em imprecações anti-gregas ou anti-romanas não faz dela um gênero panfletário, ou pelo menos não a reduz a isso. Na verdade, ao colocar tanta ênfase na correção das mazelas terrenas por meios sobrenaturais, a apocalíptica pode conduzir antes ao quietismo místico do que à ação política direta. Além disso, a apocalíptica é solidária do desenvolvimento da idéia da ressurreição dos mortos (logo, da possibilidade de salvação individual); não se tem como avaliar o impacto da mudança de expectativa com a idéia de uma ressurreição individual - mas o gerado pela noção de era messiânica foi enorme. É de se supor, no entanto, que a precipitação do Juízo por meio da ação direta contra Roma não fosse a única via de atuação aberta aos apocalípticos. Retomarei o tema adiante.

Josefo possui três grandes “modelos” estilísticos e de conduta, que ele busca imitar: Tucídides, Daniel e Jeremias. A comparação de si mesmo aos profetas inspirados surge em vários pontos de BJ, destacando-se 3.350-354; 400-402. Posta sob a luz da imitação de profetas e personagens bíblicos em geral por Josefo, a relação entre ele e a apocalíptica reveste-se de outros problemas - o das concepções metahistóricas em geral na historiografia antiga, ou mais simplesmente do peso do judaísmo na formação da idéia de história em Josefo. Mas isso já nos leva além do escopo deste artigo e nos faria incorrer nas mesmas falhas de Momigliano e Bilde - não se trata aqui de discutir a natureza das relações entre apocalíptica e historiografia e Josefo do ponto de vista da estrutura da obra, mas de verificar o peso da apocalíptica nos eventos que Josefo descreve - e não na forma pela qual eles são descritos. Vista como a atividade profética viva no tempo de Josefo, a apocalíptica acaba por envolvê-lo também, na medida em que ele possui certos dons em comum com os heróis dos apocalipses - recebe a missão de revelar segredos por parte de Deus, é exímio em interpretar sonhos e tem a chave para o entendimento da história dos homens.

Dentro da indistinção que Josefo mantém entre profecia e apocalipses, um elemento soa particularmente estranho. Nos livros proféticos, as nações dos gentios são instrumentos divinos para a punição dos judeus (ex. Is 41; Jr 25); nos apocalipses, pelo contrário, são adversários da divindade. Josefo une esses dois pontos de vista, aparentemente contraditórios entre si, ao afirmar que Roma é potência mundial pela graça de Deus (ponto de vista profético), ao mesmo tempo em que evita falar da interpretação de Dn que define Roma como a quarta e última monarquia (ponto de vista apocalíptico). Portanto, mesmo pretendendo seguir Tucídides tão de perto quanto possível, Josefo repete o padrão de compreensão da história deuteronômico - pecado - punição - perdão.

De todo modo, misturar os elementos apocalípticos com os historiográficos em Josefo só faz adicionar complicadores à questão: apocalipses tratam da história em termos de seu sentido geral e não da análise racional de eventos particulares do passado. Um texto historiográfico, ainda que não tenha como se isentar de concepções metahistóricas, religiosas ou seculares, apóia-se nas evidências de que o historiador dispõe, e que lhe impõem limites. Nesse sentido, não há como considerar Josefo, Daniel ou o apocalipse siríaco de Baruch (2Br) como semelhantes. Foi feita uma tentativa particularmente desastrada nesse sentido por parte de Pierre Vidal-Naquet, o qual afirma que o discurso de Eleazar ben Yair aos defensores de Masada (última fortaleza a ceder aos romanos) seria um apocalipse. O discurso consiste numa longa e erudita exortação ao suicídio, tido por Eleazar como preferível à desonra da captura; sob qualquer ângulo que se analise, um discurso típico da historiografia antiga. Não se tem como levar a sério a afirmação de Vidal-Naquet - a menos que esvaziemos o termo “apocalipse” de qualquer significação precisa, e o utilizemos em sentido vulgar. Nesse caso, qualquer texto de tom mais sombrio passa a ser um “apocalipse”; tal é a conseqüência lógica do raciocínio de Vidal-Naquet, que no entanto admite a semelhança essencial do discurso de Masada com outros na historiografia antiga.

Para o outro aspecto da discussão (o da culpa que Josefo atribui à expectativa messiânica), faz-se necessária uma análise das relações que Josefo estabelece entre a dissensão civil na Judéia (stasis), a guerra contra Roma e a referida literatura apocalíptica produzida até o final do séc.I d.C., já que por vezes todo esse conjunto de referências parece se entrecortar na perspectiva de Josefo. Apesar do esforço para fazer dialogar entre si conceitos tão diferentes como stasis e messianismo, deve-se ter em mente que Josefo foi virtualmente ignorado tanto pelo público greco-romano quanto pelos judeus, tendo sido catapultado para a divulgação universal pela patrística; o público judeu a que Josefo parece endereçar-se no começo de BJ acabou lendo-o de modo imprevisto, em termos de exortação à piedade religiosa e resistência cultural. Um fenômeno de difícil explicação a esse respeito é o fato do único manuscrito completo do Apocalipse siríaco de Baruch (2Br), o Ambrosiano, ter junto de si o livro 6 de BJ - que trata da queda de Jerusalém. Mais bizarro ainda é o fato desse trecho de Josefo ser apresentado, no Ambrosiano, com o título de Quinto livro dos Macabeus (5Mc).

As primeiras referências que encontrei para o estudo do tema deste artigo surgiram com as leituras das obras de Martin Goodman, Mireille Hadas-Lebel e Norman Cohn, autores que tratam, todos, dos vínculos entre apocalíptica e a guerra. O ponto de vista de Hadas-Lebel e Cohn é o mais comum, escusando de maiores discussões: para eles, a apocalíptica possui inequivocamente uma parcela de responsabilidade nos eventos que culminarão com a destruição do Templo.

Todos os autores que tratam do tema têm, com pequenas variações, admitido a análise de Josefo relacionando a eclosão da revolta à expectativa apocalíptica como verdadeira e sincera. A exceção notável é a obra de Martin Goodman supracitada. Para ele, a revolta foi apenas uma tentativa de golpe das elites judaicas sobre Roma; Josefo, ele próprio mais comprometido com a revolta do que gostaria de admitir aos seus novos amigos romanos, trata simplesmente de isentar a elite judaica da responsabilidade pela guerra, preferindo atribuí-la às camadas mais baixas da população e aos líderes rebeldes que, em seu desvario, inflamaram o populacho contra Roma. Em linhas gerais, a tese de Goodman consiste em relativizar a importância da apocalíptica como instrumento de propaganda política anti-romana - e apóia-se para isso no argumento lógico de que, ao supor uma salvação transcendente, a apocalíptica revela-se muito mais quietista do que revolucionária.

Outro caminho para a avaliação do peso das expectativas de iminência escatológica presentes na revolta de 70 é o estudo comparativo dos diversos personagens proféticos, leigos ou sacerdotais, que surgem na obra de Josefo, mas a indistinção que o historiador mantém entre gêneros literários diferentes não diminui a relevância do estudo da presença apocalíptica na sua obra.

Um tema correlato que merece tratamento individual é a relação que Josefo estabelece entre a chamada “Quarta Filosofia” e a revolta. Para efeitos didáticos, Josefo oferece aos seus leitores um quadro sinótico da religiosidade judaica de seu tempo, afirmando existirem quatro “filosofias” - fariseus, saduceus, essênios e a “Quarta Filosofia”. As definições dos três primeiros segmentos não nos dizem respeito aqui, mas esse último grupo, segundo Josefo, iguala-se aos fariseus em suas concepções teológicas – com a diferença importante de nutrir um amor à liberdade extremado e não aceitar, em hipótese alguma, a dominação romana.

Mas além da honestidade de Josefo ser questionável (aqui como em todas as passagens em que ele descreve seus opositores, ou os que não compartilham de suas idéias), há um argumento adicional a ser considerado, levantado por Martin Goodman. A expectativa messiânica e seu veículo de divulgação, a literatura apocalíptica, não foram “inventados” nos anos que antecederam a revolta. Em 70, ambos já têm mais de dois séculos de desenvolvimento atrás de si, sem contar suas raízes mais distantes no AT. Tudo isso sugere que a expectativa messiânica que envolvia as tribulações da era imediatamente anterior ao Messias não era o principal fator de agitação das massas - antes baseava-se na aceitação plena e passiva dos males do momento como etapas antecipadoras da vinda do Messias.

Fervorosa expectativa milenar podia coexistir com lealdade completa à ordem política: como em círculos cristãos do século II, assim também na Judéia tais esperanças poderiam provocar apenas quietismo político.

Contra essa tese, pode-se objetar que a formulação teológica de um conceito não exige sua aplicação prática imediata, e que teriam sido necessários todos os demais fatores étnicos, econômicos e administrativos citados por Josefo para fazer com que a apocalíptica se tornasse, finalmente, uma força explosiva na Judéia do séc.I.

Os “falsos profetas”, denunciados com tanto vigor por Josefo, podem igualmente constituir um canal para se entender a penetração popular da literatura apocalíptica no seio dos revoltosos (AJ 17.278-284;20.171 e BJ 2.60-65,262,263;6.283-285); novamente coloca-se a indistinção, pelo historiador, entre profetas, apocalípticos e divinadores em geral. Como elemento diferenciador básico entre literatura profética e apocalíptica, modernamente adota-se o critério de considerar a primeira um tipo de literatura originário da tradição oral e a segunda, um gênero que desde o seu surgimento veicula-se sob a forma de livro. Outras características da apocalíptica, como a pseudonímia, as viagens pelos céus etc. não têm como ser analisadas em detalhe aqui. Mas algumas das referências de Josefo aos falsos profetas merecem ser consideradas ainda que brevemente, uma vez que o tipo de atitude que descrevem está muitas vezes em conformidade com outras evidências para o profetismo da época (NT, Qumran, apocalíptica). Um caso dos mais notáveis em sua obra é o dos judeus mortos no Templo, aguardando o Messias (BJ 6.283-285):

Eles devem sua destruição a um falso profeta, que naquele dia proclamou ao povo da cidade que Deus lhes mandara subir ao Monte do Templo, para receber os sinais de sua salvação. Vários profetas, naquela época, foram subornados pelos tiranos [termo pelo qual Josefo designa ofensivamente os líderes rebeldes] para iludir o povo, exortando-o a aguardar o socorro divino, com o intuito de desencorajar as deserções e exortar os que estavam acima do medo e da precaução a terem esperança. Na adversidade os homens são persuadidos com facilidade; mas quando o impostor promete alívio das tribulações, então os que sofrem entregam-se por completo à expectativa (BJ 6.285-287).

Esse é um tema que merece atenção especial. Com todo o seu cinismo, Josefo não chega ao extremo de Políbio, que diz explicitamente que a religião é um instrumento de controle das massas; porém, a vinculação feita por Josefo entre oportunismo político e ativismo messiânico é única entre os grandes historiadores antigos. Em casos mais recentes, essa associação é moeda-comum - em seu estudo sobre movimentos milenaristas e messiânicos no norte da Europa ao longo da Idade Média e até o séc.XVII, Norman Cohn fornece exemplos à exaustão de indivíduos que buscaram, na predição do milênio, o proveito pessoal. O testemunho de Josefo, todavia, deve ser tomado com grande reserva, uma vez que sua parcialidade para com os líderes rebeldes é notória e a alegação de suborno pode ser apenas mais um insulto lançado sem cuidado ou compromisso com as evidências lançado por Josefo contra os revoltosos. Talvez seja apenas, como resmunga Vidal-Naquet, o “feroz espírito de classe de Josefo” em ação.

Outro aspecto que se manifesta tanto na apocalíptica strictu sensu quanto nas formulações metahistóricas de Josefo é o da adivinhação onírica; têm sido publicados diversos estudos acerca do papel das práticas divinatórias ligadas ao sono e aos sonhos. Eles representam elementos fundamentais da cadeia explicativa concebida por Josefo para explicar tanto o curso da história em geral como sua deserção individual para o campo romano - o episódio do sonho que o historiador teve em Jotapata é decisivo; nele, fica claro que o “governante do mundo” de que falam certos textos - Josefo não nos diz quais, talvez os Oráculos sibilinos 3.350-380 - é o imperador Vespasiano, e não o messias de Israel:

Refletindo sobre essas coisas [a morte de um certo Jesus, tido como louco e que passava os dias a apregoar aos berros a ruína de Jerusalém] vemos que Deus se importa com os homens, mostra ao Seu povo, por meio de todo tipo de sinais, o caminho da salvação, enquanto a sua destruição é devida à loucura e calamidades geradas por eles mesmos [...] Mas o que os incitou à guerra mais do que tudo foi um oráculo ambíguo, encontrado em seus livros sagrados, que dizia que naquele tempo alguém do seu país tornar-se-ia governante do mundo. Eles entenderam isso como dizendo respeito a alguém de sua própria raça, e muitos sábios se perderam com essa interpretação. O oráculo, na verdade, dizia respeito à ascensão de Vespasiano, proclamado imperador em solo judaico. Por tudo isso, é impossível aos homens escaparem ao próprio destino, mesmo quando podem antevê-lo (BJ 6.310-315).

Na literatura apocalíptica a referência a sonhos e processos onírico-divinatórios é também freqüente; o próprio Josefo tem pelo menos um sonho de importância crucial para a obra e para o desenvolvimento de sua concepção providencial de história:

[...] subitamente vieram à sua mente aqueles sonhos noturnos, nos quais Deus lhe tinha revelado o destino iminente dos judeus e dos soberanos romanos. Ele [Josefo] era um intérprete de sonhos e hábil em adivinhar os proferimentos ambíguos da divindade; ele mesmo era sacerdote, e descendente de sacerdotes, e ele não ignorava as profecias dos livros sagrados. Naquele momento teve a inspiração de ler seu significado, e, lembrando-se das imagens recentes de sonhos terríveis, rezou em silêncio a Deus. ‘Já que Te agrada’, ele disse, ‘a Ti que criaste a nação dos judeus, destruir a Tua obra, já que a fortuna passou para os romanos, e já que Escolheste meu espírito para anunciar o que está por vir, rendo-me de boa vontade aos romanos e me permitirei viver; mas És testemunha de que não vou como traidor, mas como Teu ministro (BJ 3.352-354).

Mais do que isso, Josefo possui uma concepção meta-histórica semelhante à do livro de Daniel - mesmo a divergência no que respeita à interpretação de Roma como a última monarquia não pode ser computada como diferença quanto a Daniel, já que a identificação com Roma é tardia e não da época da redação efetiva do livro. Ambas supõem que o governo do mundo só pode ser exercido por consentimento ou comando divino - embora a coexistência da “fortuna” com Deus forneça um toque exótico à argumentação de Josefo.

Não obstante, não são apenas algumas tradições recentes que associam Roma à quarta monarquia; é o entendimento corrente em São Jerônimo e na patrística, embora a interpretação que nega que o quarto reino seja Roma e sim a Grécia seja mais antiga (e correta) - 4Esd 12:10-12 e OrSib 3.397. É também a da versão siríaca (Dn 7:7 peshitta).


O papel de Roma como potência estrangeira, pagã, inimiga de Deus etc. é virtualmente eliminado pelo historiador judeu como elemento causador ou potencializador da revolta, uma vez que Josefo não está particularmente interessado nas causas da guerra, mas antes no que conduziu à destruição do Templo; nesse sentido, Josefo lista os erros dos rebeldes, responsáveis pela queda da cidade: essencialmente a crueldade, o pecado e o autoritarismo. E por “pecado” os apologetas cristãos entenderam tratar-se da morte de Jesus - um trecho de AJ que, interpolação parcial ou total, merece atenção mínima de Josefo (AJ 18.63-64).

A ênfase na herança clássica de Josefo, minimizando as conexões judaicas de sua formação e de sua obra, pode ainda levar o pesquisador a questões errôneas ou mal formuladas, como a da aparente incompatibilidade da noção pagã de tyché (empréstimo de Políbio) e o papel de Deus na história; nesse caso não há qualquer complicação maior, já que, ainda que o historiador judeu use os dois termos indistintamente, a ação da Fortuna permanece sempre subordinada aos planos divinos, e não chega a haver contradição, na ótica de Josefo, em se servir simultaneamente do instrumental clássico da historiografia grega e da tradição judaica. Mas o uso do termo grego não deixa de manter o monoteísmo essencial de sua reflexão sobre a história, veiculado muitas vezes sob a forma de discursos postos na boca de generais romanos.

Evidentemente, é mais fácil discutir a presença de concepções apocalípticas em Josefo do que definir o papel da apocalíptica e da expectativa messiânica que lhe corresponde como fatores decisivos na guerra (na realidade a escassez documental é tão grande que o máximo que se pode tentar fazer é aquilatar o papel da apocalíptica como elemento explicativo em Josefo, e não na guerra em si. A limitação do objeto é tanto mais necessária pelo fato de Josefo ser muitas vezes a única evidência de que dispomos para a revolta de 70).

A questão da relevância da literatura apocalíptica na eclosão e desenvolvimento da guerra contra os romanos insere-se no âmbito mais geral das condições de leitura dos apocalipses no mundo antigo. E à semelhança da questão inicial que motivou este artigo, esta última também é de difícil encaminhamento.

Um exame inicial dos textos apocalípticos que chegaram até nós leva à conclusão de que se trata de textos consumidos oralmente, segundo alguns por grupos marginais dentro do cristianismo e/ou do judaísmo. Mesmo Qumran, onde os textos de teor apocalíptico são tão comuns, muitas vezes é definida como “seita apocalíptica”. A princípio nada de falso ao definir os qumranitas e cristãos primitivos desse modo, mas ao mesmo tempo é um modo demasiado simplista de colocar a questão.

Enxergamos a apocalíptica como marginal na época de Josefo por vermos seu desenvolvimento à luz de exclusões sucessivas, tanto para a formação do cânon judaico quanto do cristão. Para o que se denomina Antigo Testamento entre os cristãos e Tanak para os judeus resta, como evidência da enorme produção apocalíptica, apenas o livro de Daniel (significativamente não incluído entre os Profetas no cânon judaico, mas posto entre os Escritos); e no Novo Testamento, apenas o Apocalipse de João. No entanto, os processos de exclusão desses textos (que se pode presumir tivessem efetivamente potencial explosivo no séc.I) não conduzem à conclusão de que fossem consumidos por grupos sectários. Na verdade qualquer conclusão sobre quem consumia, e em que condições se dava o consumo da literatura apocalíptica entre judeus e cristãos é extremamente arriscada.

À medida que avançamos no tempo, torna-se relativamente mais fácil tratar da questão das condições de consumo da apocalíptica. Particularmente notável, nesse sentido, é o artigo recente de David Frankfurter, “The legacy of Jewish Apocalypses in early Christianity: regional trajectories”. O autor começa perguntando-se se a questão das condições específicas de leitura dos apocalipses não estaria mal formulada, posto que talvez não diferissem muito das condições de leitura da Bíblia em geral; em 4Esd 14:45-47 há evidências de que alguns apocalipses eram mais reverenciados do que a torah. Não sendo possível resolver a questão do consumo da apocalíptica “no atacado”, i.e. em todo o Mediterrâneo, Frankfurter opta pelo approach regional, tratando basicamente de Ásia Menor e Egito, locais onde a documentação é mais abundante para o problema.

Talvez a contribuição mais original de Frankfurter resida no fato de que, ao contrário de Bilde (que considera a apocalíptica uma apresentação literária de conhecimento esotérico) e de Collins (para quem a apocalíptica é, antes de tudo, um gênero literário com características bem definidas), ele trata a apocalíptica como uma experiência visionária. Ao fazê-lo, questões como a da interpolação de trechos, remissões ao AT ou NT ou da identificação do grupo consumidor básico tornam-se secundárias, e nosso ângulo de observação torna-se mais cômodo.

Frankfurter trata basicamente da sobrevivência da apocalíptica em grupos cristãos do séc.II em diante, o que nos afasta do tema deste artigo. No entanto, o raciocínio geral do autor pode ser transposto para o universo específico que nos interessa aqui, o da Judéia de Flávio Josefo. Segundo Frankfurter, a propaganda milenarista anterior a 116 deve ter circulado muito mais como tradição oral do que como literatura. O mesmo autor nos lembra ainda que a freqüência com que ocorre o termo “apocalipse” na biblioteca de Nag Hammadi não deve nos iludir, pois o termo só entrou em uso corrente no séc.II d.C. e é utilizado apenas retrospectivamente para tratar da apocalíptica judaica. O termo surge em Nag Hammadi como mais um elemento na tendência mediterrânea de nomear textos e bibliotecas.

Em suma, não se pode afirmar categoricamente que a apocalíptica judaica do tempo de Josefo fosse um complexo fechado e acabado de textos, leitores e militantes; nem a leitura atenta dos apocalipses nem Josefo permitem tirar essa conclusão, muito próxima do raciocínio preconceituoso que enxerga a apocalíptica à luz de sua exclusão canônica. A analogia com os apocalípticos de Frankfurter ou de Cohn leva-nos à mesma conclusão, favorável à diversidade de leitores, condições de consumo e à possibilidade de opção militante ou quietista. Resta um problema apontado por Josefo, ao qual nem sempre se tem prestado a devida atenção e que pode ser decisivo para um melhor entendimento do papel da apocalíptica nos eventos que conduziriam à destruição do Templo em 70.

Embora adote um ponto de vista teológico quanto ao sentido da história, como investigador Josefo fornece explicações absolutamente racionais para a eclosão da revolta; poderíamos sintetizar no seguinte quadro as causas listadas pelo historiador judeu como responsáveis pela guerra:

1. A malignidade dos governadores romanos;

2. A opressão anormal do domínio romano (as rebeliões de 57, 55 e 49 a.C seriam prova disso); lembremos que em 40 a.C., a invasão parta foi bem vista pelos judeus. Tácito registrou queixas graves contra os impostos em 17 d.C. (Anais. 2.42);

3. As suscetibilidades religiosas dos judeus

4. As tensões de classe (Josefo refere-se a uma “doença” que teria feito pobres e ricos se antagonizarem de modo nunca antes visto nos anos que antecederam a revolta (BJ 7.260-261);

5. As desavenças com os não-judeus locais; os asmoneus não conseguiram converter seus súditos gregos, ao contrário do que ocorria na Galiléia e na Iduméia, onde foram feitas inúmeras conversões ao judaísmo.

Devemos sempre ser cautelosos quando Josefo coloca a culpa nos ombros de outrem; como bem lembra Martin Goodman, “[...] Josefo, quando quer enganar [mente] com mentiras não sobre os fatos, mas sobre a interpretação dos mesmos”. Portanto, atacar os procuradores romanos é demasiado fácil para Josefo (não são senadores, mas membros da ordem eqüestre, parvenus e arrivistas que Josefo adora ofender); questionar os valores gregos justificando as peculiaridades religiosas dos judeus também é simples (na verdade Josefo já faria isso de modo exímio no Contra Apião); resta a questão de classe que, em última análise, é apenas uma forma diferente de definir quem é o público consumidor da literatura apocalíptica. Josefo, ao responsabilizar os radicais judeus (“Quarta Filosofia”, zelotes, sicarii), joga para as camadas mais baixas da população a responsabilidade pelo desvario da guerra - manifestando mais uma vez o “feroz espírito de classe” de que fala Vidal-Naquet e procurando isentar as elites da Judéia de culpa no episódio (tese geral de Goodman).

A maior parte da teologia judaica no período nutria a esperança de independência política em alguma época futura indefinida, e não considerava obrigatória qualquer ação concreta para alcançar tal liberdade. Nesse sentido os judeus eram semelhantes a outras civilizações antigas, que pretendiam que seus deuses nacionais as defendiam de outros povos. É portanto difícil relacionar as críticas apocalípticas ao helenismo com a revolta, pois a helenização sob Roma não estava sendo mais intensa do que a que já vinha sendo praticada anteriormente. Prova disso é que inúmeros elementos gregos foram incorporados à vida judaica, deliberadamente e sem traumas; mesmo os textos que narram a epopéia judaica de resistência ao helenismo estão redigidos em grego (os livros dos Macabeus).

Mas ainda que Josefo tenha exagerado em seus ataques aos procuradores romanos, ou retratado de modo demasiado ofensivo os que interpretavam os apocalipses em termos de redenção nacional judaica, o quadro de anomia por ele descrito não deve, em seu conjunto, ser falso; supor que seja torna obrigatório nutrir a mesma desconfiança com relação a todo e qualquer historiador da Antigüidade. Não temos como saber com exatidão quais eram as condições de consumo da apocalíptica em sua época, nem quem se servia desses textos, nem mesmo qual a proporção de judeus que alimentava a expectativa messiânica ao tempo da guerra. Também aqui podemos proceder por analogia com movimentos posteriores que possuem elementos em comum com os fornecidos por Josefo. O quadro que emerge, tomando-se por base as considerações estabelecidas por inúmeros autores de peso no campo dos estudos ligados ao messianismo - como Queiroz, Cohn, Lanternari e Worsley, para citar apenas quatro - é francamente favorável à sinceridade de Josefo; condições de anomia são o solo ideal para o surgimento e desenvolvimento de expectativas de transformação súbita, completa e sobrenatural do mundo em que se vive.

Os apocalípticos, ao interpretarem os sinais de modo equivocado, efetuaram uma operação em tudo muito semelhante à que o próprio Josefo fez e descreveu em BJ 6.315 - obtendo, em seu otimismo, um resultado tão desastroso quanto o que os índios americanos de Tzvetan Todorov conseguiram ao interpretar pessimisticamente seus próprios oráculos, face à invasão espanhola.

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