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terça-feira, 11 de outubro de 2011

A presença do Diabo no ciclo da vida das comunidades judaicas medievais



O Diabo foi tema de vasta literatura no período medieval. Desde a patrística grega e latina, e por todas as crônicas e relatos do mundo medieval, o Diabo era onipresente e exercia uma influência notável, no mundo dos vivos sendo referenciado como atuante e proselitista. Um aceso debate ocorria entre teólogos e pensadores da Igreja que, ao mesmo tempo, tratavam de delinear os limites de seu poder, para evitar que o Cristianismo adotasse doutrinas dualistas, já que a onipotência divina, não podia ser igualada pelo exército satânico e, por outro, lado faziam uso cotidiano de sua presença e malignidade em prédicas, cultos e exorcismos, de todos os tipos.

Como a História se relacionou com este tema nos últimos séculos?


A historiografia de influência iluminista adotou uma postura cética e de estrito racionalismo. A escola metódica enfocando temas de conteúdo político, diplomático e militar, envidou poucos esforços em abordar tal tema. Grassava certo repúdio por um tema obscuro, que era impregnado de crendices tolas e superstições. Tais temas não seriam dignos de estudo. O Romantismo, por sua vez, retomou o interesse pelo medievo e pelos temas religiosos. Em meados do séc. XIX reaparece esta temática. A primeira obra digna de menção foi de autoria de Michelet, que em seu clássico livro La sorciére1 retomou de maneira pioneira o interesse, da história nos estudos do sobrenatural e das relações entre o mundo natural e o sobrenatural.

No século XX, vemos uma retomada lenta do interesse no estudo do sobrenatural e em particular no Diabo. Em seu livro clássico O Declínio da Idade Média, editado pela primeira vez em 1919, o celebrado autor Johan Huizinga dedica algumas palavras e referências, à presença marcante do Demônio ou Diabo no cotidiano medieval. O autor em diversos aspectos seria um dos “ancestrais” do gênero histórico

denominado como História das Mentalidades ou dos Comportamentos, que floresceu na segunda metade do século passado. Huizinga percebeu que o Demônio estava muito “vivo” no cotidiano das pessoas que viveram e descrevem os séculos XIV e XV.

Na seqüência, já em meados do séc. XX, houve contribuições interessantes neste tema, mas somente na terceira geração da escola de Annales é que os estudos se ampliaram e aprofundaram. Temos algumas obras de expressão: Delumeau, Áries, Duby, Le Goff, Richards, entre muitos mais. Essa tendência se espalhou e gerou obras diversas.

No Brasil podemos citar a obra de Carlos Roberto Nogueira, tanto sobre as bruxas e feiticeiras, quanto sobre o Diabo.

O Diabo e Deus: dilemas do monoteísmo

Como as religiões monoteístas se colocavam diante da temática do Diabo? A posição da Igreja é contraditória, mas, apesar de criticar certos exageros, é uma instituição que aceitou e utilizou-se de conceitos ligados ao Diabo. Desde a Antiguidade Tardia, os autores da Patrística, que definiram e conceituaram a teologia clássica cristã, debateram e advertiram sobre o Diabo. S. Jerônimo é uma das mais fortes referências. João Crisóstomo em Antioquia advertia seus paroquianos sobre os riscos do Diabo.

Isidoro de Sevilha falava intensamente e extensamente sobre o Diabo. Agostinho não tem dúvidas, na sua ótica neo-platônica e cristã, de que o Diabo transita no mundo inferior, na Cidade dos homens. Cria-se o conceito de que se travava uma batalha entre as forças do Bem e do mal. Nas palavras de Nogueira: “[...] os cristãos concordavam em que a queda do homem não foi mais que um episódio na história de um prodigioso combate cósmico, iniciado antes da Criação [...]”. A queda do homem teria sido precedida por uma revolta de algumas das falanges celestiais contra Deus e estes haviam sido precipitados do céu por Deus. Portanto, transitavam na terra e seduziam os humanos para obter adeptos a seu partido.

Até mesmo gente culta como os teólogos e pensadores S. Tomás de Aquino, fundamentado e autorizado por Santo Agostinho, determina que: “Omnes quae visibiliter fiunt in hoc mundo possunt fieri per daemones”. Muitos dos autores e pensadores medievais demonstram certa dose de crítica a esta postura da Igreja, mas nunca negam a existência e a presença do Diabo. Os opositores mais ferrenhos da Igreja, no medievo, foram os heréticos dualistas também denominados maniqueus. Foram sendo reprimidos através do tempo e do espaço: maniqueísmo, mazdeísmo, os paulicianos, os bogomilos e os albigenses. Acreditavam na existência de dois poderes antagônicos e contradiziam o monoteísmo trinitário. Isso era a negação de dogmas fundamentais da Cristandade e sugeria a necessidade de repressão. Eram, portanto, mais adeptos de presença do mal, como entidade independente, do que a própria Igreja que criticavam.

A construção e a manutenção das crenças do imaginário se dão num processo de longa duração. O imaginário se constrói dentro e em função de um determinado contexto social. O Diabo surge no Cristianismo primitivo como uma faceta do intenso dualismo que marca a luta da Igreja para se afirmar nos séculos III e IV. O medievo é uma sucessão de confrontos entre o bem (encarnado pela Igreja) e o mal (encarnado pelo Diabo e seus aliados).

O belicismo, o simbolismo e o contratualismo vigentes neste período são facetas do confronto contínuo entre Deus e a Igreja que o representa contra o Diabo. No dizer de autores como Hilário Franco Jr. o que predominava era “[...] a visão sobrenatural que se tinha do Universo”. O “sobrenatural se mostrando no natural” era um fato cotidiano e corriqueiro, já que a hierofania (manifestações do sagrado no profano) era parte da crença aceita. Até os inimigos da Igreja têm esta visão dualista. Mesmo sendo críticos da Igreja, muitos grupos heréticos tinham uma visão dualista do mundo e enxergavam o confronto entre o espírito e a matéria, entre o bem e o mal, Deus e o Diabo, no cotidiano e dentro de uma visão hierofânica. Isso pode ser visto entre as heresias dualistas e maniqueístas tais como os bogomílios, os albigenses, e os cátaros de uma maneira ampla, como já frisamos antes. O que muda é que a Igreja passa ser a encarnação do mal e que deve ser combatida. Os dualistas foram severamente perseguidos.

Para a Igreja católica, o Diabo não podia ser nivelado no mesmo patamar que Deus. Sendo essa premissa teológica respeitada, o Diabo tinha “salvo conduto”, para atuar entre os humanos e tentá-los. Sua atuação no cotidiano cristão medieval é completa. Está em tudo e em todos os lugares e situações. Seus seguidores são numerosos e ativos.

A Igreja com todo o seu poder político, religioso e social era a maior formadora de opinião, apesar da crítica das heresias e da contestação social vigente na baixa Idade Média. A Igreja comanda a luta contra o mal e seu líder: Satã. A ordem de Cluny comanda a luta a partir do século X. A Inquisição medieval encabeçada pelos dominicanos se tornará a vanguarda da luta contra o mal encarnado nas heresias, já no século XIII. Grande número de textos foram escritos sobre o assunto. A Igreja autorizou a publicação e deu divulgação através da ordem dos dominicanos de uma obra clássica do tema da bruxaria e da demonologia, o assim chamado Malleus Maleficarum, também popularmente conhecido como O Manual da Caça as Bruxas, que foi editado no final do século XV, por dois freis dominicanos, Heinrich Kramer e Jacob Sprenger. O seu uso declarado era para servir como guia aos Inquisidores que interrogavam e torturavam bruxas e seguidores de heresias satanistas. Exorcismos e formas de identificar bruxas e demônios povoam suas páginas.

Além de bruxos e feiticeiras, uma minoria era tradicionalmente discriminada e perseguida em épocas de crise durante a Idade Média européia: a minoria judaica.

A sociedade medieval cristã associava os judeus ao Demônio. Discriminava os judeus, excluía-os de determinadas ramos da produção econômica e marcava-os como perigosamente envolvidos com a magia e o poder satânico. A Igreja decretou inúmeras leis e regras para isolar os judeus do mundo cristão. As mais famosas regras foram determinadas, por Inocêncio III em 1215, no quarto concílio de Latrão. O objetivo era separar e isolar os judeus do mundo cristão. Os judeus deviam portar a “marca infame” nas suas roupas e habitar em bairros segregados para evitar que contaminassem os cristãos. Percebemos que se trata do mesmo concílio que colocou o maior empenho na guerra contra a heresia maniqueísta. Os judeus também eram considerados um perigo e deviam ser separados da sociedade cristã de maneira radical.

O Diabo no imaginário judaico

Contudo, essa separação não impediu os contatos entre judeus e cristãos. Apesar desta discriminação havia trocas entre o mundo cristão e a minoria judaica. O professor Joshua Trachtenberg, num trabalho pioneiro e pouco divulgado, percebeu em seus estudos o relacionamento e a influência mútua entre o Judaísmo e o Cristianismo no período medieval. Em ambas o imaginário coletivo era muito fértil no que tange ao mundo satânico. Trachtenberg mostra a aparição de uma religião popular (Folk Religion) que aparece paralelamente a religião judaica oficial, com todo o seu legalismo, regras e normas da Halachá (lei judaica). Permitimo-nos ampliar sua reflexão. O Judaísmo “oficial’ era erudito e se fundamentava em estudos metódicos e constantes que exigiam um elevado nível material, para se dedicar de maneira intensa aos profundos e demorados estudos talmúdicos”. Em locais e períodos nos quais havia estabilidade e plena tolerância aos judeus por parte da Igreja e das autoridades seculares, os judeus podiam fundar suas academias talmúdicas (ieshivot). Assim se deu na Espanha muçulmana na Idade de Ouro (séc. IX a XI); na Espanha cristã na Idade de Prata (séc. XII e XIII); em Ashkenaz (séc. X e XI) e na Polônia moderna (séc. XVI e XVII) em certos períodos isolados. No geral havia períodos de crise e perseguição, nos quais a religiosidade popular predominava no seio da população judaica: uma intersecção de religiosidade erudita na superfície e na liderança religiosa, lado a lado com crendices e religiosidade popular no seio da massa judaica, que se via diante de perseguições e preconceito. Certa “circularidade das idéias e da cultura” do topo à base e desta ao topo.

Nesta religião popular ocorrem influências do meio circundante, mesmo se este seja hostil ao Judaísmo. Os judeus influenciam e são influenciados pelo mundo cristão: contaminados com as crenças e crendices, com os mitos e superstições existentes no mundo medieval, como um todo. Trachtenberg distingue entre o cotidiano judaico e a forma pelas quais os grandes sábios e rabinos se opunham às superstições vigentes na sociedade judaica. Os rabinos tentavam manter a racionalidade do judaísmo e “esconder” as crendices. O pesquisador deve usar uma leitura crítica dos textos rabínicos. É óbvio que não se pode escrever história do imaginário, fazendo-se apenas uma leitura superficial dos escritos dos rabinos e sábios. Estes usaram pelo menos dois recursos bem definidos para combater as crendices. Num primeiro estágio as combatiam e condenavam. Numa segunda etapa, ao dar-se conta de que não podiam vencê-las, tratavam de dar-lhes uma vestimenta “mais racional e culta”, e encontraram explicações belas e diferentes para as diversas reações que a sociedade judaica criava na luta contra os demônios e espíritos malignos.

Utilizando nossa experiência no projeto “Heranças e Lembranças”, realizado no Rio de Janeiro, do qual participamos, constatamos a enorme quantidade de amuletos e objetos usados no combate a Satã, mesmo quando a religião judaica o ignore ou dê ao mesmo pouca importância. A religião popular sobrevive às pressões e a tentativa de torná-la culta e racional. No âmbito externo, os judeus que vivem isolados e discriminados, no seio da sociedade cristã (por exemplo) e são acusados de serem aliados do demônio, também acreditam no seu poder maligno. Os “aliados do demônio” (judeus) também o temem e se protegem dele com amuletos, exorcismos, rezas e proteções.

A partir daqui nos propomos a descrever a aparição do tema do demônio e dos espíritos malignos tal com aparece nos séculos XII a XV, entre os judeus da Europa Ocidental (denominada Ashkenaz = Alemanha). O tema também é válido e deve aparecer na Península Ibérica (Sefarad), no norte da África e na Europa Oriental (Polônia). Centralizaremos nossas observações do ciclo da vida judaico e a aparição do elemento satânico em Ashkenaz, mas quando pudermos ofereceremos exemplos de outras regiões a título de ampliação do foco. A guerra contra o mundo satânico e suas ferramentas, será nosso tema daqui por diante. Dividiremos o ciclo da vida em nascimento, casamento e morte, não dando importância à maioridade religiosa (Bar Mitzvá) por não ser um rito de passagem, todavia consolidado na Baixa Idade Média (até o séc. XV).

O nascimento

a) O período anterior ao parto

A mulher que estava grávida era um ser sensível e inspirava cuidados e atenções especiais. Cuidava-se de forma meticulosa da parturiente através de rezas, amuletos cabalísticos com textos mágicos. Escreviam-se nomes de anjos, fórmulas mágicas e orações. Usavam-se freqüentemente objetos metálicos como a chave da sinagoga e até da Igreja e facas, pois se acreditava que os metais tinham a capacidade de distanciar os maus espíritos. Um ser, em especial, era temido: a primeira mulher criada junto com o homem no sexto dia – Lilith. Esta mulher continha poderes malignos e competia com as descendentes de Eva, a primeira mulher. Há diversos amuletos que a exorcizam e rituais se sucedem para mantê-la afastada.

b) O período posterior ao parto e anterior à circuncisão

Acreditava-se que a criança depois de circuncidada e tendo ingressado no pacto de Abraão estaria “imunizada” diante da ameaça dos espíritos malignos. O mesmo é válido, apenas como comparação, na sociedade cristã, na qual o batismo “salvava a alma” e impedia sua queda nas mãos do maligno. Desta maneira a comunidade judaica se mobilizava e todo o arsenal anti-satânico era mobilizado também. Velas acesas dia e noite, o uso de objetos metálicos, textos e amuletos cabalísticos, rezas e vigílias que eram utilizadas na semana que separa o nascimento do menino da sua circuncisão. Em Ashkenaz (Alemanha) existe um costume neste período denominado Wachnacht. Seria uma noite de vigília total na qual não se deixava a mãe, tampouco o recém nascido por nem um segundo desacompanhados, durante a noite que antecede a circuncisão (Brit Milá). Um costume semelhante ocorre entre os judeus marroquinos que trazem cinco meninos já alfabetizados que escrevem uma carta cada um, com um texto que distancia a figura de Lilith que pretende roubar o futuro homem que acabou de nascer. Isso é semelhante aos judeus de origem sefaradita (Espanha), entre os quais o mohel (pessoa que realiza a circuncisão) traz um amuleto metálico e o coloca sob o travesseiro do recém nascido. Outro hábito comum em muitas comunidades judaicas medievais e que observamos em Ashkenaz é a mulher trocar de roupas com seu esposo durante a semana anterior a circuncisão, para que o Diabo e seus servidores se confundissem e pensassem que se trata de um homem e não da parturiente. Isso apesar do mandamento bíblico que proíbe mulheres de vestir roupas de homens e vice versa. Em Ashkenaz havia também a cerimônia de concessão do nome não judaico do recém nascido. O nome judaico era dado no oitavo dia, já o nome alemão era dado no trigésimo dia de vida. O nome da cerimônia era Hollekreisch. Os pesquisadores não entram em acordo sobre a explicação deste costume, mas concordam que deve estar relacionado com as questões dos perigos oriundos do Satã e seus aliados. Alguns dizem se tratar da Frau Holle ou senhora Holle, uma espécie de raptora de bebês que os leva para o interior da Terra.

Em alguns locais em Ashkenaz, se colocavam presentes para a “estrela da criança”, numa clara expressão de presentes para as almas e divindades. O mesmo hábito da achnacht aparece entre os judeus marroquinos, de forma semelhante, durante sete noites de vigília ao bebê e a parturiente para evitar “olho ruim” (semelhante ao popular olho gordo, usado no Brasil). O costume se denomina Tahdid. O uso de velas, muita luz, orações, metais, amuletos servem para espantar os demônios e almas, se assemelhando nos dois casos e mostrando que o hábito era comum em muitas comunidades. A convocação do profeta Elias (Eliahu Hanavi) era, e é, todavia comum a muitas comunidades judaicas. Ele seria um defensor da fé, dos oprimidos e também dos recém nascidos, visto a presença de uma cadeira especial para Elias nas cerimônias de circuncisão. A crença medieval era que Elias realmente se sentava nela, invisível aos mortais comuns. Conta-se que o rabi Iehudá Hachassid, renomado místico ashkenazi, cancelou uma cerimônia de circuncisão por não ter vislumbrado o profeta no seu local tradicional.

O casamento

Num célebre artigo, publicado pela primeira vez em 1925, Jacob Lauterbach levantou enorme polêmica ao afirmar que a quebra do copo no casamento tinha um significado original diferente, da “vestimenta racional” colocada nele pelos rabinos. Usa-se dizer que a quebra do copo, simboliza a destruição e as ruínas do Templo de Jerusalém e a esperança messiânica de reconstruí-lo. Há outras explicações racionais e cultas, tais como a necessidade de não se destruir, visto a impossibilidade de refazer as ruínas de um copo.

Lauterbach demonstra que o sentido medieval era outro, remontando a trechos talmúdicos e a hábitos medievais. Trata-se de mais uma arma anti-satânica. Os rabinos “vestiram” de forma culta, tal costume popular. As técnicas do combate seriam através de três caminhos: a) lutar contra os demônios; b) suborná-los com presentes; c) enganálos fazendo-os crer que as pessoas que aparentavam ser felizes, eram na verdade infelizes e não precisavam ser invejadas.

A quebra do copo durante a cerimônia do casamento não seria por recordação das ruínas do Templo de Jerusalém, mas sim um método de espantar ou até melhor desviar a atenção dos demônios. São frisados como métodos para afastar os demônios do casamento, o uso de tochas, ruídos, pitadas de sal, de pedaços de metal, alguns métodos semelhantes aos já citados no nascimento e muitos deles também usados pelos cristãos.

Havia também presentes ou subornos aos demônios e almas na forma de grãos de trigo, amêndoas, peixe e carne secos. O terceiro e último caso seria enganar ou iludir os demônios e almas. Além da quebra do copo, havia a troca de roupas entre o noivo e noiva, o uso do véu pela noiva com métodos de iludir. Havia é claro o uso do círculo mágico, através do qual se isolava o casal de influências maléficas. Entre outras comunidades, podemos citar a tradição que persiste até hoje entre os judeus de origem marroquina e algumas comunidades orientais de usar o tingimento de cabelos e/ou dedos com hena e o uso de amuletos em forma de uma mão com trechos cabalísticos (a denominada hamsa).

É comum usar a hamsa em outras ocasiões, mas o seu uso é sempre no sentido de proteger seus portadores do mau olhado e de espíritos malignos.

A morte e o sepultamento

É bastante conhecida dos estudiosos da Idade Média a dança macabra (França) ou a dança dos mortos (Inglaterra). O tema foi vastamente descrito através de textos, pinturas e músicas, em especial nos séculos que seguiram a Peste Negra (1348). Em todas as formas de expressão artística a ênfase era na luta do homem para viver diante das doenças, espíritos malignos, o demônio e a morte.

É evidente que o temor dos demônios e almas cresce quando se aproxima o tema da morte. As mesmas armas que vimos nos casos anteriores eram utilizadas para cuidar do corpo do falecido: profusão de velas e luzes, vigílias e orações sem cessar, pedaços de metal com ou sem inscrições, abundância de sal sobre o cadáver.

Quando a pessoa aparentava estar agonizando, ocorria uma reunião de todos os parentes próximos junto ao seu leito, muitos de seus melhores amigos e conhecidos, e ocorria uma cerimônia repleta de etiqueta e regras. Isso foi mais acentuado nos séculos XIV e XV. Entre estes se instituiu a extrema unção (Vidui), bastante assemelhado a mesma cerimônia existente no Cristianismo. O objetivo era salvar a alma do moribundo antes que este perdesse sua consciência e blasfemasse ou fizesse alguma afirmativa contrária à salvação de sua alma, que talvez pudesse ser colocada no seu ouvido por algum demônio ou alma penada.

O uso de orações tais como o Ana Becoach na qual existe um acróstico com os nomes de Deus era considerado muito útil para a salvação do moribundo.

Acostumava-se jogar fora toda a água armazenada na casa do falecido. Havia muitas explicações. Numa diziam que o Anjo da Morte limpara sua espada na água. Outras explicações salientam a utilização da água por demônios e espíritos e a possível permanência de alguns deles nesta água. As rezas se prolongavam até o sepultamento. O féretro era feito sob um ritual minucioso de estações e orações com o objetivo de defender o defunto dos demônios e almas. A crença dizia que o caixão deveria sair antes do que qualquer ser vivo de dentro da casa do defunto ou do local aonde se encontrava para evitar que por engano, os demônios se precipitassem sobre alguém vivo e o vitimassem.

Algumas comunidades do Norte da África costumavam atirar moedas de ouro para todas as direções a fim de afastar o Satã do caixão e do morto, pois o maligno é profundamente ambicioso e deseja riquezas e materialismo. Na Europa Ocidental (Ashkenaz) imitaram os cristãos, ao tomar de porções de terra e grama e atirá-los por detrás dos ombros, proferindo dizeres para espantar e confundir os demônios.

O tradicional costume judaico de lavar as mãos depois de um enterro ao sair do cemitério e/ou ao entrar na sua casa novamente é explicado como sendo um ato de purificação ritual ou como um símbolo de sermos inocentes diante desta morte. Há contudo, quem relacione com demônios e almas.

Conclusões

A imagem do judeu no período medieval era bastante manipulada pela Igreja que construiu uma “mídia” bastante ostensiva contra os “assassinos” de Cristo e aliados do Demônio. A relação Diabo-Judeu é um tema de muita reflexão. Por seu lado, o judaísmo era rigidamente monoteísta e não poderia permitir em seu seio a presença de entidades satânicas que existissem à revelia da vontade divina. Trata-se de uma contradição que acreditamos seja fruto do meio circundante: tanto a Cristandade, quanto o Islã aceitavam e apontavam para existência de hostes do mal e dos riscos de ser seduzido pelos seus representantes. O Judaísmo não era imune a estas idéias e foi fortemente influenciado por elas ainda no período do segundo Templo (entre 530 a.C. e 70 d.C.), quando se escreveram alguns dos livros canônicos, que tratam da existência do Mal. O mais marcante é o livro de Jó, no qual Satã é um servo da corte de Deus. Uma espécie de promotor do reino celeste, que fustiga a humanidade com acusações e reprimendas.

Nos livros externos (apócrifos), não incorporados ao cânone judaico, tampouco ao cristão, se configura a figura do Mal. E há uma interpretação de diversos textos canônicos sob uma ótica mais dualista, que acaba formatando a malignidade através de seres diversos encabeçados pelo Diabo ou Lúcifer, o anjo decaído.