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terça-feira, 27 de março de 2012

Raymond E. Brown, “como se deve entender o beijo de Judas?"


Madrugada de quinta para sexta-feira, arredores de Jerusalém, Palestina ocupada. Lá vem ele. Acompanha-o uma turba armada “de espadas e paus”, segundo um dos principais cronistas do evento. Sua vítima o espera, cheia de angústia. Quando os dois se encontrarem, vai se dado a mais desprestigiosa utilização que uma saudação geralmente tida por amistosa já conheceu. O mesmo cronista informa que o homem vinha chegando combinara com a turba: “É aquele que eu beijar. Prendei-o e levai-o bem guardado”. Num beijo se concentrará a torpeza sem nome da traição! Nosso cronista, conhecido apenas por prenome, Marcos, prossegue: “Tão logo chegou, aproximando-se dele, disse:” Rabi!”E o beijou. Eles lançaram a mão sobre ele e o prenderam.”

Que havia nesse beijo, o mais escandaloso da História do mundo, ocorrido há mais ou menos 1.965 anos com o qual o vil aventureiro chamado Judas entrega Jesus? Ou, para colocar a questão nos termos de um dos maiores especialistas nos evangelhos, o padre americano Raymond E. Brown, no nível da História ou da verossimilitude, como se deve entender o beijo de Judas? Brown responde:

“Se o beijo era uma saudação normal, que podia ser usado por qualquer conhecido, ou numa saudação costumeira entre Jesus e os discípulos, então ele poderia convir à trama daqueles que tinham pagado Judas para evitar uma resistência ruidosa e conseqüentemente ao desejo de Judas de parecer normal. Se não era uma saudação normal, mas um gesto incomum, implicando especial afeição, então Judas era um hipócrita malévolo”.

Em nenhum outro lugar dos evangelhos Jesus e os discípulos são mostrados trocando beijos, mas esse silêncio “pode ser acidental”, escreve Brown. Ele se inclina para a hipótese de que o beijo era uma saudação normal, e Judas o aplicou para não parecer suspeito. Contra essa tese há uma objeção forte: se Judas acabara de estar com Jesus, na última ceia, por que saudá-lo de novo? Mas, conclui Brown, “a freqüência das saudações normais, por exemplo, o aperto de mão, varia grandemente entre os povos; e temos muito pouca idéia de quão freqüentemente os palestinos as trocavam”.

Transcrevem-se aqui as conjeturas sobre o beijo para exemplificar o nível de minúcia a que podem chegar os estudiosos de um texto como o de Marcos. Qualquer texto oferece a possibilidade de discussão. Quanto mais valha a pena, mais fecunda será sua dissecação, seja por que a ótica for - gramatical, literária, histórica, filosófica, sociológica, psicológica, antropológica ou teológica. Ao longo dos últimos vinte séculos, no entanto, nenhum texto foi objeto de tanta dissecação, e tanta discussão, quanto os evangelhos Marcos, Mateus, Lucas e João., os autores canônicos, ou seja “oficiais” da cristandade. E, dentro dos evangelhos, nenhum trecho despertou tanto interesse, tanta emoção e discussão quanto a paixão e a morte de Jesus que os cristãos comemoram a partis de quinta-feira, na Semana Santa.

Não há relato tão longo e detalhado, nos evangelhos. A infância só é abordada por dois evangelistas, Mateus e Lucas, e sumariamente. A parte do ministério de Jesus é uma coleção de pequenos episódios biográficos, milagres e parábolas. Já a paixão tem começo, meio e fim. Cada evangelista apresenta detalhes exclusivos - só Mateus dá conta da morte de Judas, por exemplo, e só João reproduz um longo diálogo entre Jesus e Pilatos. Apesar disso, com ligeiros desvios em João, que é o evangelho mais diferente, há uma seqüência comum delação, prisão, julgamento pelas autoridades religiosas judaicas, julgamento pela autoridade romana, execução e enterro, com episódios de zombaria de Jesus intercalando algumas dessas cenas. Tudo somado mostra-se uma peça de insuperável força dramática.

Com o beijo de Judas, estamos entrando nesse universo misterioso. E logo se impõe a pergunta: o beijo existiu de verdade? Acompanhe-se o raciocínio de um segundo autor, o israelense Haim Cohn. Jesus tomara-se conhecido em Jerusalém, onde tinha entrado triunfalmente, montado num asno. Diariamente estava no Templo, pregando. Então, por que alguém precisaria identificá-lo e entregá-lo? Prossegue Cohn: "A explicação em geral apresentada para tornar plausível a história é a de que os principais sacerdotes tinham muito medo do clamor popular". Por isso, determinaram prendê-lo à noite, e fora da cidade. No entanto, argumenta o autor, o evangelho de Lucas informa que toda noite Jesus ia ao "monte chamado das Oliveiras". O evangelho de João o confirma. As autoridades não precisariam de informante para apanhá-lo. Para Cohn, a história da traição de Judas é "tão improvável, tão incongruente", que merece crédito".

Um terceiro autor, o irlandês radicado nos Estados Unidos, John Dominic Crossan, tem uma posição mitigada. Ele aceita que Jesus tenha tido um seguidor chamado Judas, e que esse seguidor o tenha traído. Mas não aceita a cena do beijo, cuja intenção, a seu ver, é apresentar Judas em cores caricatamente cruéis. Crossan lança uma hipótese: Judas teria sido preso antes de todos, durante uma ação da qual se falará adiante, e teria delatado Jesus.

Judas é o ponto de partida. Este artigo seguirá a paixão e a morte, tendo por baliza três perguntas: quem matou Jesus? Por quê? Como? Advirta-se de antemão que não há respostas conclusivas. O que se apresentará são as teses dos eruditos. Especificamente, vai-se seguir a trilha de três livros, dos três autores já citados. O primeiro é The Death of the Messiah (A Morte do Messias), um monumental estudo de 1600 páginas e dois volumes lançado no ano passado nos Estados Unidos (Doubleday) pelo padre Raymond Brown, professor da Union Theological Seminary, de Nova York. O segundo é Who Killed Jesus? (Quem Matou Jesus?), que John Dominic Crossan, antigo padre, hoje professor de estudos bíblicos da Universidade DePaul, em Chicago, lançou há poucas semanas, também nos Estados Unidos (HarperSan Francisco), em resposta ao livro de Brown. O terceiro é O Julgamento e a Morte de Jesus, de Haim Cohn, um livro de 1967, lançado no ano passado no Brasil (Imago), que apresenta a originalidade de o autor ser judeu e ter ocupado os cargos de procurador-geral e, depois, juiz da Suprema Corte de Israel.

Daquilo que está nos evangelhos, o que realmente aconteceu? Não é à toa que esta é a pergunta mais recorrente, nesta matéria. Tem-se repetido sempre que o cristianismo é uma religião histórica, no sentido de que se apóia não em um deus ou deuses mitológicos, mas numa figura de existência real, que viveu numa determinada parte do globo, num determinado período, e teve sua trajetória condicionada pelas circunstâncias da época e do local. Brown, no entanto, adota uma abordagem que em primeiro lugar investiga o que o evangelista quis exatamente dizer - quais as tradições que inspiraram seu texto e que mensagens ele procura transmitir. Segundo ele, a "obsessão com a história pode constituir uma obstrução ao entendimento dos evangelhos". A intenção dos evangelistas, lembra ele, era evangelizar, e Brown não exclui que, para isso, se tenham utilizado de variados recursos - inclusive a ficção.

Os evangelistas, pessoas que mal se sabe quem são, e onde viveram, não trabalharam com informações de primeira mão. Há um consenso entre os eruditos, hoje, de que seus trabalhos datam de no mínimo quarenta anos depois da morte de Jesus, sendo o mais antigo o de Marcos (escrito por volta do ano 70 a.D.), e o mais novo o de João (cerca de 10 a.D.). Nas narrativas da paixão, os evangelistas incluíram personagens e situações inesquecíveis - as negações de Pedro antes de o galo cantar, os sumos sacerdotes Anás e Caifás, o bom e o mau ladrão - e uma bomba-relógio. A bomba-relógio são as fortes acusações contra os judeus, tratados como responsáveis pela morte de Jesus. Ela foi estourando com intensidade variada ao longo dos séculos. Na Idade Média, segundo informa o livro de Brown, cultivava-se em Toulouse, na França, uma cerimônia da paixão durante a qual um judeu era trazido à catedral para receber um soco do conde da cidade. Houve práticas mais atrozes, como se sabe.

Crossan escreve: “O que estava em jogo nas narrativas da paixão no longo curso da história, era o Holocausto judeu”.

A própria figura de Judas tem a ver com o que se está dizendo. Seu nome, nota Brown, é etimologicamente ligado a “judeu”. Na arte, muitas vezes, carregaram-lhe os traços considerados “semitas”. Seu gosto pelo dinheiro foi generalizado para um povo. Santo Agostinho sustentava que, enquanto Pedro representa a Igreja, Judas representa os judeus. A história da Paixão tem duas vítimas, como se mostrará nas páginas seguintes. Jesus é uma. O povo judeu é a outra.

Prisão

No jardim de Getsêmani, com o traidor, chega a tropa. Quem se encarregou de prender? E por quê? E quem mandou?

A agonia de Jesus começa num jardim. Ali, no lugar chamado Getsêmani, no Monte das Oliveiras, ele começou a "apavorar-se e angustiar-se” segundo Marcos, e rezou para o Pai: "Afasta de mim este cálice". Os discípulos dormiam, em vez de vigiar. Ele estava só. "A minha alma está triste até a morte", disse. Logo chega Judas, à frente do grupo que o iria prender. Que grupo era esse? Quem prendeu Jesus? Eis uma primeira questão crucial, quando se investiga quem o matou e por quê?

Marcos escreve que, com Judas, vinha "uma multidão trazendo espadas e paus, da parte dos chefes dos sacerdotes, escribas e anciãos". Mateus o acompanha. Lucas acrescenta que, entre os que vieram prender Jesus, estavam “chefes dos sacerdotes, chefes da guarda do Templo e anciãos". João afirma que Judas levava uma “coorte", além de "guardas destacados pelos chefes dos sacerdotes e fariseus". Escreve Brown: "Marcos e Mateus não dão sinal da presença de uma unidade militar ou policial regular no Getsêmani". Mas Lucas, ao acrescentar a presença dos chefes dos sacerdotes e da guarda do Templo, "afasta qualquer tom de uma populaça irregular”, segundo Brown. De todo modo, até aqui se sugere a predominância, se não a exclusividade, da presença de judeus. Já João dá conta de uma "coorte", e assim introduz a presença romana na cena. "Coorte" é uma fração do Exército romano, equivalente a 600 soldados, ou 1 décimo de uma legião.

Começa-se a desenhar a coligação que, segundo os evangelhos, vai encurralar Jesus até a cruz - a dos judeus com os romanos. Que peso atribuir a um e outro grupo, se é que, um e outro realmente merecem arcar com algum, é uma questão crucial. A interpretação convencional e popular, formulada a partir do valor de face dos evangelhos, é de que os romanos foram mais lenientes. A maior autoridade da região, Pôncio Pilatos, até queria soltar Jesus, mas esbarrou na intolerância dos judeus. Brown cita em seu livro o sumário de um autor alemão, J. Blinzler, reunindo os cinco níveis de envolvimento de um ou outro grupo, segundo as diversas conclusões dos eruditos: (1) Judeus totalmente responsáveis pela morte de Jesus, com os romanos reduzidos à sua mera implementação; (2) Judeus tendo um papel decisivo, cabendo aos romanos uma porção menor; (3) Judeus e romanos igualmente envolvidos, (4) Romanos tendo um papel decisivo, cabendo aos judeus uma porção menor; (5) Romanos totalmente responsáveis, sem envolvimento judeu.

Entre os diferentes graus dessa escala tem-se desenrolado a questão mais polêmica da paixão, e uma das mais polêmicas do mundo. Para situar a discussão, recordem-se os pontos fundamentais da situação política na Palestina, na época. Havia cerca de 100 anos, a região havia sido incorporada ao Império Romano. Do ponto de vista administrativo e judicial, porém, a situação era complexa. Na GaliIéia, ao norte, onde Jesus viveu e pregou a maior parte do tempo, reinava, embora devendo obediência à autoridade romana, um judeu, Herodes Antipas, filho de Herodes, o Grande. Na Judéia, onde fica Jerusalém, a autoridade romana era exercida diretamente, por meio de um governador, Pôncio Pilatos. Mas mesmo na Judéia os romanos permitiam a sobrevivência de órgãos judaicos de governo, o principal dos quais era o Sinédrio, do qual muito se ouve falar nos evangelhos. O Sinédrio era uma assembléia com supremo poder sobre questões religiosas, mas também algum poder em questões administrativas e judiciais. A situação confusa, sobre a qual há escassa documentação, é propícia a que se estabeleçam explicações e versões divergentes.

Somados, os evangelhos e as evidências da situação política na Judéia sugerem aos estudiosos que havia romanos na prisão de Jesus. Argumenta Brown que João não inventaria a participação romana, ele que se mostrará tão simpático a Pilatos, no julgamento. Mas teria sido mobilizada uma coorte inteira para a operação no Getsêmani? Os romanos, informa o livro de Brown, não tinham em Jerusalém um número tão grande de soldados que pudessem dispor de 600 deles só para esse fim. "Coorte", supõe Brown, teria sido usada pelo evangelista de uma maneira "popular, inexata", da mesma forma como se fala em "legiões romanas”, sem atenção à precisa quantidade das tropas.

No Getsêmani já se estrutura o Jesus de cada evangelista, na paixão. O de Marcos, seguido por Mateus, é aquele Jesus solitário que se apavora e se angustia. “Para Marcos/Mateus, a paixão é uma descida para o abismo durante a qual Jesus hesitará, ao não encontrar apoio humano”, escreve Brown. Abandonado pelos discípulos, ele atravessará um túnel escuro até, nota Brown, o grito desesperado na cruz: "Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?" O de Lucas não foi abandonado pelos discípulos nem se confessará "triste até a morte". "Os leitores ficam com a sensação de que Jesus está em comunhão com seu Pai todo o tempo, tanto que, apropriadamente, as últimas palavras do crucificado não são um grito angustiado para seu Deus por quem se sente abandonado, mas um tranqüilo. ‘Pai,em tuas mãos entrego o meu espírito'." 0 Jesus de João é triunfante. Ele estará sempre no controle da situação. Quando enfrenta Pilatos, até parece que ele é que julga o governador romano, não o contrário. No Getsêmani, quando chegam às tropas, Jesus adianta-se e pergunta: "Quem procuras?" Os soldados respondem procuram Jesus de Nazaré, e Jesus responde: "Sou eu". Nesse momento soldados recuam e caem por terra pelo poder de Jesus, mesmo sobre a tropa romana, é o interesse do evangelista”, escreve Brown.

Questão seguinte: quem mandou prender, e por quê? Marcos data dos incidentes do Templo, quando Jesus ali entrou, virou as mesas e cadeiras dos comerciantes, e os expulsou do local. O início da conspiração para matá-lo. Jesus passou a ensinar que aquela devia ser uma casa de orações, não um covil de ladrões. "Os chefes dos sacerdotes e os escribas ouviram isso”, prossegue o evangelista, “e procuravam como matá-lo: eles o temiam, pois toda a multidão estava maravilhada com o seu ensinamento”.

Os “chefes dos sacerdotes” e os "escribas”, com freqüência acompanhados dos "anciãos", formam uma tríade sempre ao encalço de Jesus, nas narrativas da paixão. Em certos momentos cruciais, a coroá-los, se mencionará o “sumo sacerdote”. Quem são essas figuras? O sumo sacerdote, no período da ocupação romana, era nomeado pelo governador, que o escolhia entre as famílias judias dominantes. Caifás era então o Sumo Sacerdote, genro de Anãs, cuja influência aparentemente ainda se fazia sentir. Os “chefes dos sacerdotes", segundo Brown, “eram provavelmente antigos sumos sacerdotes, ao lado de preeminentes membros de famílias entre as quais sumos sacerdotes recentes haviam sido recrutados, e algumas pessoas a que tinham sido confiadas especiais missões sacerdotais”. Os “anciãos" seriam patriarcas das famílias “mais ricas e distintas”, e os escribas, pessoas que se destacavam “pela inteligência e cultura", entre as quais se encontrariam os fariseus. Grosso modo, esses três grupos constituiriam o Sinédrio, que no total contava 71 membros.

João apresenta outra versão. Segundo ele, foi o fato de ter ressuscitado Lázaro que desencadeou a conspiração contra Jesus. Esse prodígio lhe atraíra muitos seguidores, informa esse evangelista. Os “chefes dos sacerdotes e os fariseus reuniram então o Conselho ­(Sínédrio) e disseram:” Que faremos? Esse homem realiza muitos sinais. “Se o deixarmos assim, todos crerão nele, e os romanos virão, destruindo o nosso lugar santo e nação”. Conclui João que “a partir desse dia decidirão matá-lo”. Segundo Brown, o evangelho de João nesse ponto obedece a imperativos teológicos: ele quer contrastar a vida dada a Lázaro com a morte prometida a Jesus.

Brown é um comentarista tão informado quanto cauteloso. Seu livro, de vocação enciclopédica, resume e aprecia o trabalho e as teorias de mais de 2 000 eruditos, mas não se esperem dele teses audaciosas. Sua tendência é a interpretação conservadora dos evangelhos: as desordens no templo. Marcos situa o início da conspiração em seguida ao incidente no Templo, mas isso no contexto de uma disputa intra-religiosa e do ciúme de seguidores que Jesus vinha arregimentando. Crossan desprega-se da letra do texto evangélico para propor que o problema foi de ordem pública. O quebra-quebra é que incomodou.

O Templo era a expressão visível do judaísmo. “Assim como ha­ via um só Deus, havia um só Templo”, escreve Crossan. Era o lugar de onde emanava a suprema autoridade religiosa, mas dotada também de ampla autoridade temporal, com seu poder coercitivo de exigir obediência e cobrar taxas, num tempo - e num povo - em que mal se separavam os conceitos de autoridade religiosa e temporal. Era uma expressão do poder, portanto, e nessa qualidade, segundo Crossan, despertava sentimentos ambíguos entre os pobres filhos do campesinato como Jesus. “ Era ele (o Templo) o lugar das preces e sacrifícios ou o lugar dos dízimos e das taxas?”, escreve Crossan. "Era a morada divina ou o banco central? Era a ligação entre Deus e eles (os camponeses), entre o céu e a terra, ou a ligação entre religião e política, entre os colaboracionistas judeus e o ocupante romano?" Eram as duas coisas, conclui o autor.

O ato de Jesus contra o Templo, segundo Crossan, foi "bastante claro". Foi como, nos Estados Unidos, "invadir um centro de recrutamento, durante a Guerra do Vietnã, e virar todas as gavetas e suas fichas.” Teria sido um ato contra o poder e a política dominante, em suma, e acresce que isso ocorreu quando se aproximava, ou já se vivia, a festa do Pessah, a Páscoa do judeu, ocasião em que multidões de peregrinos acorriam a Jerusalém e mais nervosa se tornava a susceptibilidade quanto a pos­síveis desrespeitos à ordem. O Pessah comemora a libertação dos judeus da escravidão a que eram submetidos no Egito, "e esta lembrança anual deve ter sido especialmente difícil quando o Egito tinha sido substituído por Roma e a pátria judaica não era mais o lugar da liberdade, mas de ocupação colonial”, escreve Crossan. E acrescenta: “Imagine-se um grande número de pessoas reunidas num espaço muito confinado para celebrar sua antiga libertação da escravidão com um reizinho herodiano ou um prefeito romano agora no poder e soldados pagãos vigiando o Templo a partir da Fortaleza Antonina, no seu canto noroeste".

Causar turbulência no Templo era algo que as autoridades não poderiam tolerar, conclui Crossan, e é aqui que ele arrisca uma opinião sobre qual poderia ter sido o papel de Judas: "Minha suposição é de que Judas possa ter sido capturado entre os companheiros de Jesus, durante a ação no Templo, e em seguida contado quem tinha feito aquilo e onde se encontrava". A explicação de Crossan para a prisão e a morte de Jesus é conseqüência lógica de sua visão de que Jesus foi um insubmisso, com um programa de "radical igualitarismo" que, cevado no campesinato insatisfeito da Galiléia, desafiava os poderes constituídos.

Brown não concorda. Sua visão, mais uma vez, segue a letra dos evangelhos, onde Jesus afirma que seu reino "não é deste mundo". Brown alinha um elenco de razões pelas qual Jesus não era um subversivo: "Sua crítica dos ricos, em Lucas, não era parte de um projeto de reestruturação econômica; seus mais íntimos seguidores não eram camponeses, mas, até onde sabemos pessoas com ocupações independentes (inclusive pescadores e coletores de impostos); eles não eram muito numerosos e, certamente, não um grupo organizado e armado, nenhuma campanha militar foi conduzida contra ele; ele foi preso sozinho e desarmado; foi julgado e condenado de uma maneira ordeira, não morto numa batalha, ou depois dela".

Haim Cohn, o terceiro autor que estamos sumariando, começa seu raciocínio a partir das forças que prenderam Jesus, segundo João, “uma coorte romana” e "guardas destacados pelos chefes dos sacerdotes e fariseus". Que guardas seriam estes? Cohn responde: “eram membros da polícia do Templo, uma organização cuja finalidade principal, manter a ordem nas instalações do Templo, não excluía eventuais missões fora. Se havia uma coorte era porque estava desencadeada uma operação romana, operação essa tão do interesse romano que o governador se mobilizara para um julgamento fogo na manhã seguinte. Mas, então, que estaria fazendo nela a polícia do Templo? Responde Cohn: se à polícia do Templo foi permitido estar presente, foi porque ela mesmo o solicitou.

Cohn desfia sua tese salpicando-a de suspense. "Deve ter uma forte razão”, escreve, para que a polícia judia pedisse para estar presente à operação. Ele acrescenta: "Tampouco devemos subestimar a importância de uma decisão de destacar um contingente de polícia do Templo para serviço fora das dependências do Templo numa noite como aquela, quando a cidade e o santuário transbordavam visitantes de todas as partes do país, toda a força sendo necessária para manter a paz e a ordem. Havia seguramente um grande interesse em jogo”. Que grande interesse era esse? Aguarde-se o próximo capítulo.

Julgamento

Primeiro as autoridades judias, depois Pilatos, condenarão o réu. Quem entre esses dois merece a maior culpa?

Estamos agora no palácio do sumo sacerdote. O preso é levado para dentro. 0 discípulo Pedro, que o acompanhara a distância, fica no pátio, aquecendo-se ao fogo com os criados. A noite é cheia de presságios.

Os quatro evangelhos reportaram que, uma vez preso, Jesus foi levado às autoridades judaicas. Marcos e Mateus, claramente, e Lucas, com menos clareza, dão conta de um julgamento, pelos dignitários judeus, ao fim do qual Jesus será condenado à morte. João relata um interrogatório, sem julgamento, mas já informara antes, quando da ressurreição de Lázaro, que o Sinédrio condenara Jesus à morte. Existiu ou não o julgamento judaico? Este é um dos pontos mais controvertidos da paixão. Haim Cohn aceita que o Sinédrio se tenha reunido, mas não para julgar, e muito menos para condenar. Mas então para quê? Por que razão teriam os membros do mais alto corpo judaico, pessoa, importantes da sociedade, se dado ao trabalho de sair de casa àquela hora da noite, e ainda por cima num dia festivo?

Retomemos a tese cheia de suspense de Cohn “O fato de que o Sínédrio teria sido convocado naquela noite particular para uma reunião na residência do sumo sacerdote e devesse, em última instância, passar ali longas horas até a manhã seguinte exige explicação muito forte e convincente para ser crível”, escreve ele. A conclusão do autor israelense é que só pode haver uma coisa na qual toda a liderança judia estava interessada: "Impedir a crucificação de um judeu pelos romanos e, mais particularmente, de um judeu que gozava do amor e afeição do povo". Segundo Cohn, o Sinédrio reuniu-se não para condenar, mas para salvar Jesus!

Não que as autoridades judaicas morressem de amores pelo pregador da Galiléia. Mas partindo da premissa de que Jesus era popular, Cohn afirma que o Sinédrio precisava tentar alguma coisa em seu favor, sob pena de cair em desgraça perante o povo. Tendo sabido que ele seria levado na manhã seguinte à máxima autoridade romana, e com toda a probabilidade sofreria uma condenação à morte, resolveu agir rápido. Primeiro conseguiu autorização para que sua polícia participasse da prisão. Depois, que o trouxesse à sua presença. Enfim, trancado com Jesus, tentou duas coisas: instruí-lo sobre o que responder no tribunal do governador e persuadi-lo a colaborar com o alto comando judaico. Jesus recusou-se a aceitar uma parceria com o Sinédrio, porém, o que implicaria a renúncia a seus pontos de vista dissidentes, e todo o esforço foi perdido.

Como encarar a tese de Cohn? Brown, ao referir-se a ela em seu livro, descarta-a como “ficção benevolamente imaginativa”. Não há nenhuma tradição judaica antiga, argumenta ele, que coloque em dúvida o envolvimento de autoridades judias na morte de Jesus. A veracidade do julgamento judeu tem sido contestada por argumentos que vão das questões procedimentais. como a realização de um julgamento noturno, quando a jurisprudência universal os recomenda à luz do dia, até o fato mais desconcertante de os evangelhos darem conta de dois julgamentos, um judeu e outro romano “por que tal sobreposição, com que fim e com que lógica?” Brown responde, quanto ao primeiro ponto, que o julgamento ter sido à noite é coerente com o que dizem os evangelhos - que não foram oferecidas as garantias de praxe ao réu. "Marcos informa que as autoridades judias o queriam preso e levado à morte em segredo, e com tão pouca atenção pública quanto possível", escreve Brown. "Procedimentos noturnos convêm a isso muito bem."

Para a bizarra duplicação dos julga­mentos, alguns oferecem a explica­ ção de que o procedimento judeu teria sido uma investigação preliminar, não um julgamento. Outros, no sentido inverso, afirmam que coube aos romanos apenas executar uma sentença judia. A chave para o entendimento da questão estaria num diálogo reportado por João, quando Pila­tos, não encontrando razões para assumir o caso de Jesus, diz aos judeus: "Tomai-o vós mesmos e julgai-o conforme a vossa lei". Os judeus respondem: "Não nos é permitido condenar ninguém à morte”.

Será que os judeus não podiam executar penas de morte? Estamos no intrincado, território das competências entre a Justiça romana e a judaica. Brown argumenta que em alguns casos de clara inspiração na lei, religiosa, como a proibição de circular em determinadas dependências do Templo, e talvez adultério, os judeus poderiam executar eles mesmos a sentença. Em outros, de interesse para a sociedade como um todo, eles teriam de repassar o “caso à autoridade romana, que resolveria se caberia ou não a pena de morte.

As acusações contra Jesus, no julgamento judeu foram as de proferir ameaças de destruição do Templo e proclamar-se o Messias. Brown comenta, sobre a primeira das acusações, que "o Templo era a instituição-chave da vida cívica e religiosa na Judéia e o tesouro da nação". Portanto, ações contra ele iam além do interesse teológico, para atingir os reinos sócio-econômicos e da política, e é bastante plausível que provocasse nas autoridades letal hostilidade. Estamos a alguns passos da tese de Crossan, de que Jesus caiu em desgraça por promover desordens no Templo, mas Brown não dará esses passos.

O fato é que apenas dois evangelistas, Marcos e Mateus, referem-se claramente à acusação pertinente ao Templo, e todos reportam a segunda acusação “a pretensão de Jesus a ser o Messias, ou o Filho de Deus. E é por admitir sê-lo”, segundo Marcos, acompanhado por Mateus, que Jesus será conde­nado pelo tribunal judeu, pois sua proteção messiânica foi considerada blasfê­mia. Cohn afirma que blasfêmia, para os judeus, era apenas, e estritamente, pronunciar o tetragrama, o nome proibido de Deus, e se não há notícia de que Jesus o tenha feito, então ele não pode ter sido condenado por esse crime. Além do mais, blasfêmia é crime puramente reli­gioso, que poderia ser punido pelos pró­prios judeus - e por apedrejamento, como impõe a Bíblia, não na cruz. Já Brown considera verossímil que Jesus tenha sido condenado por blasfêmia, cri­me que, para ele, neste caso tipificou-se pela "reivindicação arrogante de prerrogativas ou status mais propriamente associados a Deus.

Encerrados os procedimentos judeus, Jesus foi levado pela manhã a Pilatos. Quem era esse governador romano, tão célebre que entrou no Credo, garantindo-se, com sua participação nesse episódio uma memória histórica com que nem de longe na carreira mediana lhe faria supor? Um documento que se tem sobre ele é uma carta do dirigente judeu Herodes Agripa ao imperador Calígula, cerca de dez anos depois da morte de Jesus. Diz Agripa que Pilatos era "naturalmente inflexível e implacável", e cometia atos de corrupção, de insulto, de rapina, de ultrajes ao povo, de arrogância, assassinatos de vítimas inocentes e da mais violenta selvageria”. Haim Cohn considera esse documento 6 mais fidedigno entre os que dão conta da personalidade de Pilatos.

Brown, mais uma vez, oferece uma visão inversa, a partir de um episódio relatado pelo historiador judeu antigo Flávio Josefo. Uma vez Pilatos enviou a Jerusalém uma tropa levando estandartes com a efígie do imperador Tibério, algo considerado sacrílego pelos judeus. Estes organizaram expedições à cidade costeira de Cesaréa, onde residia o governador, para protestar e exigir que ele removesse os estandartes. As manifestações se sucederam dia após dia. No sexto, Pilatos ameaçou matar os manifestantes. Estes se deitaram no chão, dispostos a morrer. Admirado com a determinação dos judeus, Pilatos voltou atrás e mandou remover os estandartes. Brown comenta que o incidente "não sugere um tirano teimoso até a selvageria", e conclui que os evangelhos podem ter pintado um Pilatos não distante da realidade, ao mostrá-lo como um juiz tolerante, disposto a dar uma chance ao réu.

Perante o governador romano, a acusa­ção messiânica transmuda-se para o plano temporal. Agora Jesus é acusado de pretender-se "o rei dos judeus”. "Sob a lei romana, isso devia parecer sedição”, escreve Brown. Muitos eruditos concordam que Jesus pode ter sido enquadrado na famosa Lex lulia de Maiestate, ou seja, considerado culpado de crime de lesa-majestade.

A cruel questão da culpa judaica não se exprime apenas na condenação pelo Sinédrio. Mais polêmica ainda é a participação que é conferida à "multidão", incitada pelos "chefes dos sacerdotes e os anciãos", segundo Marcos e Mateus, ou os "judeus", pura e simplesmente, como quer João, no julgamento romano, interferindo agressivamente, e levando um relutante Pilatos a condenar o réu. "Que farei de Jesus, que chamam de Cristo?", pergunta Pilatos. As "multidões", segundo Mateus, respondem: "Crucifiquem-no”. Em João, em cenas de elaborada dramaturgia, Pilatos alterna diálogos filosóficos com Jesus, sobre a verdade e o reino deste mundo e do outro, com exortações ao populacho para que perdoe o réu. Não adianta, os "judeus” estavam-se inflexíveis: "À morte! À morte! Crucifica-o!"

Cohn aponta várias estranhezas, no episódio. Primeira: que fez com que os "judeus" ficassem tão hostis a Jesus, eles que o haviam recebido em triunfo em Jerusalém havia alguns dias? Segunda: como aceitar que um "onipotente governador romano? se sujeitasse a ficar pedindo aos nativos "conselho sobre como tratar um criminoso preso", e ao tomar a decisão se deixasse arrastar pelos "apelos populares histéricos"? Cohn considera o episódio "demasiado grotesco" para merecer crédito, mas Brown acredita em sua plausibilidade. 0 padre americano traça o cenário seguinte: "Pilatos suspeita que a verdadeira questão seja assunto religioso judaico, de que a verdadeira questão seja um assunto religioso judaico de interesse interno, e não um crime político contra a majestade do imperador. “A multidão pressiona Pilatos; e ele não deseja que o caso resulte num outro tumulto em Jerusalém, ainda mais no contexto de festival de Páscoa”. Daí ele ter-se sujeitado à pressão popular, da mesma forma que o fizera no caso dos estandartes com efígie do imperador.

Momento mais célebre da trajetória de Pilatos na história e no imaginário universais é quando ele lava as mãos. “estou inocente desse sangue. A responsabilidade é vossa”, diz. Trata-se de um não romano, mas judeu. Está na Bíblia que, quando morre um inocente que não se sabe quem matou, os principais do lugar devem lavar as mãos e declararem-se inocentes daquele sangue. Brown, que geralmente tende a dar plausibilidade à letra dos evangelhos, dessa vez não vai por esse caminho. O pagão Pilatos, nesse momento, escreve ele, “age e fala como se fosse um leitor do Antigo Testamento e um seguidor dos costumes legais judaicos”. Outro momento ao qual Brown não empresta seu veredito de plausibilidade é quando Pilatos oferece a opção soltar Jesus ou o bandido Barrabás, segundo um suposto costume de soltar um preso na Páscoa. Não havia tal costume, conclui Brown, de acordo com a quase­ unanimidade dos eruditos, e mesmo se houvesse seria pouco sensato que o governador soltasse um homem que acabara de ser preso por homicídio durante um tumulto, caso de Barrabás.

No evangelho de Mateus, depois que Pilatos lava as mãos e diz “ A responsabilidade é vossa “, o povo responde: “ O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos”. Ter o “sangue sobre”, segundo ensina Brown, é um expressão bíblica indicando quem é responsável por uma morte aos olhos de Deus. A frase é a mais terrível dos evangelhos, no que se refere ao anti-judaísmo. Orígenes, no século III, deu o tom de como a frase de Mateus ecoaria séculos afora: “Portanto, o sangue de Jesus derramou-se não só sobre os que existiam naquele tempo, mas também sobre todas as gerações de judeus que se seguiriam, até o fim dos tempos".

Brown reconhece a trilha de preconceito e de tragédias aberta com o tratamento dado aos judeus nas narrativas da paixão. "A observação de que efetivas autoridades judaicas (e algumas multidões de Jerusalém) tiveram um papel na execução de Jesus (...) teve efeitos duráveis." O pensamento cristão, segundo Brown, “chegou atrasado ao reconhecimento de que uma atitude hostil para com os judeus por causa da crucificação é religiosamente injustificável e moralmente repreensível".

O irlandês Crossan considerou insuficientes as justificativas de Brown e é por isso que escreveu um livro em resposta. O ponto de partida de Crossan é que Brown tende a aceitar demais a "verossimilhança", ou a plausibilidade", dos fatos nos evangelhos, sem arriscar contestar-lhes a historicidade. Com isso, endossa uma narrativa da paixão que, diz Crossan, "foi a sementeira do antijudaísmo cristão”. Sem esse antijudaísmo, acrescenta, “o letal e genocida anti-semitismo europeu seria impossível, ou pelo menos não tão bem-sucedido”. Para Crossan, as narrativas da paixão são peças de ficção. "E bastante possível entender e simpatizar com uma pequena seita judaica sem poderes, escrevendo ficção para se defender. Mas, uma vez que essa seita judaica se torna o Império Romano Cristão, a estratégia defensiva se toma a mais longa das mentiras.

A propósito, se Crossan aceita a historicidade de Jesus, que ele tenha sido preso e crucificado, mas não aceita a historicidade da paixão, o que teria acontecido, então? Simples. Jesus foi preso por promover desordens no Templo e executado sumariamente. Ele escreve: "A eliminação de um estorvo perigoso representado por um camponês como Jesus não precisaria envolver nenhum julgamento oficial nem consultas entre o Templo e as autoridades romanas. O caso foi, a meu ver, administrado de acordo com os procedimentos gerais de manutenção do controle das massas durante a Páscoa. Se alguém causa sério distúrbio no Templo, que se o crucifique imediatamente, como exemplo”.

Execução

De que forma era a cruz? Jesus carregou-a até o alto do calvário? Foi pregado ou amarrado a ela?

“Então o crucificaram”. É assim, dessa forma econômica e singela que Marcos dá conta desse momento tão capital da história que vem contando. Mateus escreve: “E após crucificá-lo, repartiram entre si as suas vestes, lançando a sorte”. Como nota Brown, a frase que dá conta da crucificação é subordinada à informação sobre a repartição das vestes. Lucas e João não são mais loquazes. "Alguma vez um momento tão crucial foi expresso de maneira tão breve e pouco informativa?", pergunta Brown. Nada é dito sobre o formato da cruz, ou como o condenado foi fixado nela.

A erudição de Brown nos servirá de guia na subida ao Calvário. Os quatro evangelistas informam que, encenado o julgamento perante Pilatos, Jesus foi levado por soldados romanos para a execução. Versão diferente aparece num texto apócrifo (isto é, não reconhecido pela Igreja), o chamado Evangelho de Pedro, do qual só nos chegou um fragmento, descoberto no século passado no Egito. Nesse texto os judeus têm todo o controle do processo, inclusive a execução do condenado na cruz.

Jesus carregou ele mesmo a cruz? João diz que sim, mas só ele. Os demais relatam que certo Simão Cirineu, "que passava por ali vindo do campo", segundo Marcos, foi requisitado para fazer o serviço, Brown estranha. O costume impunha que o condenado levasse a cruz ao local da crucificação, o que é atestado pelo historiador Plutarco: “Todo malfeitor que vai para a execução carrega sua própria cruz". A versão de João parece então mais verossímil. A menos, nota Brown, que Jesus estivesse tão debilitado pelos flagelos que lhe foram impostos que não lhe fosse possível suportar o peso.

Mas o peso de quê? O que, exatamente, se carregava? Não era a cruz inteira, informa Brown. Normalmente, a parte vertical ficava fixa no lugar da execução. O que o condenado carregava era a parte horizontal, patibulum em latim. Segundo Lucas, "uma grande multidão do povo' o seguia, inclusive as mulheres a que Jesus se referirá como "filhas de Jerusalém". Brown considera plausível que houvesse gente a segui-lo, com base na cínica observação de outro autor antigo, Luciano, segundo a qual "aqueles que eram levados à cruz (...) tinha um grande número de pessoas em seus calcanhares".

O local da execução é o lugar chamado GóIgota em hebraico ou aramaico, que tem 'Calvário" como equivalente latino, ou "Lugar da Caveira”, segundo traduzem os quatro evangelhos. O nome indica um monte arredondado na forma de uma caveira, ou crânio. Lá chegados, "então o crucificaram", para retomar Marcos. Mas crucificaram como? Para começar, não há informação precisa sobre a forma da cruz, e ela variava. A palavra "cruz", informa Brown, chegou às línguas modernas com o sentido de uma linha que cruza outra, mas nem o grego stauros nem o latim crux necessariamente têm esse significado. Ambas essas palavras, acrescenta Brown, "referem-se a uma estaca à qual as pessoas podiam ser atadas de várias maneiras: empaladas, penduradas, pregadas ou amarradas". O empalamento produziria uma morte rápida. A crucificação, uma morte lenta.

Originário da Pérsia, o método da crucificação era reservado no Império Romano em princípio às classes baixas, os escravos e os estrangeiros. Há pouca informação sobre ele, na literatura latina ou helenístíca, e isso se deve, segundo Brown, ao fato de que "os romanos educados o consideravam uma punição bárbara, da qual se devia falar o menos possível". Em qualquer período da História, acrescenta Brown, aqueles que praticam a tortura não são muito comunicativos sobre os detalhes. Para Cícero, era "a mais cruel e revoltante penalidade”, que devia ser reservada só para os escravos, e em último caso. "A própria palavra cruz devia não apenas ficar longe do corpo de um cidadão romano, mas também de seus pensamentos, seus olhos e seus ouvidos", escreveu o mesmo autor.

A pena de Jesus não foi de empalamento nem de enforcamento, mas resta saber a forma da cruz e a maneira com que ele foi fixado a ela. A cruz podia ser em forma de "X” ou de “T”, além da que normalmente se imagina. O condenado podia ser fixado nela de cabeça para baixo. Ocasionalmente, informa ainda Brown, uma estaca única, vertical, seria utilizada. O condenado seria pregado nela com os braços estendidos para cima. Se Jesus carregou a barra transversal até o local da execução, ou se a carregaram para ele, então é porque não foi crucificado nem na estaca vertical nem na cruz em "X", que ficavam fixas no solo. Era cruz com barra, portanto, mas essas poderiam ser também em forma de 'T'. Presume-se que não era 0 caso porque, segundo Mateus, "colocaram acima da sua cabeça, por escrito, 0 Motivo da sua condenação”. Isso significaria que sobrava um pedaço de estaca onde colocar a inscrição geralmente representada com a sigla “INRI”.

Os evangelhos não informam de maneira direta que Jesus foi pregado. Mas Lucas, ao relatar a aparição aos apóstolos, depois da ressurreição, escreve que ele disse ao incrédulo Tomé: “Vede minhas mãos e meus Pés", dando a entender que havia sinais perfuração. João, mais claro, ao relatar mesmo episódio, diz que Tomé queria colocar o dedo "no lugar dos cravos”. Os pregos não poderiam ter sido aplicados à mãos, no entanto, pois elas se rasgariam. O crucificado tinha de ser pregado à transversal pelos pulsos. Feito isso, a barra seria erguida por duas forquilhas até um encaixe talhado na barra vertical.

Jesus foi pregado também pelos pés? Fora dos evangelhos, não havia documento algum a atestar que se pregavam crucificados também pelos pés, até a descoberta, em 1968, em Jerusalém, de um túmulo contendo, entre outros, os ossos de um homem que se aproximava dos 30 anos. Tratava-se de um homem morto por Crucificação, e uma crucificação mais ou menos na mesma época de Jesus, pois esses ossos apresentavam sinais de que o homem fora pregado com dois pregos em baixo, cada prego num calcanhar. Pelos furos, imagina-se que ele foi fixado à cruz com as pernas abertas, cada uma colada a um lado da barra vertical. Os pregos foram-lhe então aplicados no lado do pé, à altura do osso do calcanhar. No caso de Jesus, a tradição atribui a Helena, a mãe do imperador Constantino, a descoberta de três pregos que o teriam pregado - só três. Daí o fato de os artistas ao redor do mundo passarem a representar a crucificação com um prego só prendendo os dois pés, um sobre o outro.

Sobre a cruz, resta acrescentar que algumas apresentavam a variante de ter um pequeno assento, outras um apoio para os pés. Não se tratava de misericórdia. Antes, de permitir que, tendo onde se sustentar, o crucificado durasse mais, e portanto sofresse mais. A inscrição que os evangelhos afirmam ter sido afixada à Cruz com as palavras "O Rei dos Judeus" (Marcos) ou “Jesus Nazareno, o Rei dos Judeus” (João), é o titulus - uma placa indicando o crime cometido pelo executado. Em nenhum dos evangelhos, nota Brown, sugere-se que se tratasse de zom­baria contra Jesus. O titulus, ao informar ao público o crime cometido, reforça o caráter intimidatório das execuções públi­cas. Como observa magistralmente Brown, são as únicas palavras que se afirma ter sido escrita sobre Jesus, em sua vida.

“Jesus, então, dando um grande grito, expirou", informa Marcos. Era a hora nona, ou 3 da tarde, e assim esta história vai chegando ao fim. Ou melhor, seria dizer assim começa esta longa história. O que se colecionou nesta parte é apenas uma pequena amostra do torrencial volume de informações do livro de Brown. O que se transcreveu, desde o início, das pesquisas, concordâncias e discordâncias dos três autores citados é apenas uma pequena amostra dos infinitos caminhos a que tem levado o estudo e a reflexão sobre o assunto. Ele é tão vasto quanto o mundo, este assunto, tão vasto quanto a História e quanto qualquer vã filosofia. Só não é tão vasto quanto a que começa com a ressurreição e para a qual nem no controvertido tratamento do povo judeu, nem nas dúvidas históricas, nem em nada, há obstáculo.