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sábado, 10 de dezembro de 2011

A habilidade inquestionável dos curandeiros no Cristianismo Primitivo


As primeiras comunidades cristãs, ao comporem narrativas acerca das atividades religiosas de seu líder, lançaram mão de um vasto conjunto de práticas e conceitos relativos à cura de doenças e à ressurreição dos mortos. Noções judaicas de causa, tratamento e cura de doenças se modificam no interior desses grupos no debate com práticas presentes, por exemplo, nos cultos a Esculápio, Ísis e Serápis. Para além do mundo divino, cura e ressurreição foram associadas, tanto no judaísmo como para além dele, a mortais como Apolônio de Tiana, Hipócrates e Salomão, assim como a figuras públicas como Vespasiano e Pirro. Nos primeiros séculos da Era Comum, este diálogo toma forma através da atribuição do poder de curar exclusivamente a Cristo, o qual inclusive lança mão de outros personagens para exercer milagres. As comunidades cristãs sintetizam, neste único personagem, os papéis do sábio/médico à terapia e à cura.

No mundo antigo grego, conviviam distintas perspectivas sobre o adoecer, tanto no que diz respeito ao agente causador da moléstia quanto no que se refere ao comportamento e à responsabilidade do doente diante dela. No período clássico delineou-se a idéia de corpo físico como dimensão ética da pessoa de maneira que a corporeidade passou a ser objeto tanto de reflexão quanto de ação. O corpo doente ou saudável, como pensado pelos autores de tratados medicinais hipocráticos, é objeto de conhecimento e de controle. Para Brooke Holmes, esses dois aspectos fundamentam uma nova subjetividade e, mais ainda, uma ética do cuidado. A responsabilidade sobre o corpo reconfigura os sentidos sociais e éticos da doença. A documentação antiga grega explorou o tema de maneira extensa. No Hipólito de Eurípedes, encenado em 428 a.E.C. em Atenas, Fedra combate a aflição erótica à qual é submetida por Afrodite com argumentos fundamentados por preceitos políades centrados na fidelidade da esposa.

No século seguinte, Platão identificará, no Timeu, a necessidade da educação e de uma vida de equilíbrio a fim de evitar a calamidade natural que é a doença, a qual é provocada pelo desequilíbrio entre os quatro elementos que compõem o corpo humano. Mais tarde, na Ética a Nicômaco, Aristóteles argumenta sobre a necessidade do paciente de exercer o controle sobre si mesmo e submeter se à autoridade médica. Mais tarde, os estóicos desenvolverão a dimensão ética da doença ao identificarem-na como algo acima das causas naturais e dependente da vontade de uma providência que a tudo governa. A doença seria, assim, não uma calamidade, mas um pequeno incidente na ordem natural das coisas e, diante dela, o homem deve proceder com paciência e resistência. No terceiro século antes da Era Comum, Crisipo, postulava que fazer os homens vulneráveis à doença não é o principal propósito do criador. Contudo, com o objetivo de aquilo que é benéfico para a humanidade, há a necessidade de se permitir a existência da doença.

Enfermidade e saúde estão, assim, natural e intimamente correlacionadas e ambas fazem parte da ordem natural, e, portanto, não podem ser objeto de ansiedade e desespero. A doença deve ser, pelo contrário, tolerada e suportada pacientemente.

Na transcrição dos discursos de Epitecto, composta por seu pupilo Arriano em 108 de nossa era, a tolerância à doença é pensada como atitude indispensável ao tão esperado momento da separação da alma do corpo:

O que significa suportar bem uma febre? Não culpar nem os deuses nem os homens nem se afligir diante do que acontece, mas esperar a morte de maneira boa e elegante e fazer aquilo que deve ser feito. Quando o 76 médico chega, não recear o que ele tem a dizer nem ficar excepcionalmente alegre caso ele diga que você está se recuperando bem e, se ele disser que você está doente demais, não fique desanimado, pois o que significa estar doente demais senão estar próximo da separação do corpo da alma?

Em suas Meditações, compostas já no final do segundo século, Marco Aurélio identifica Zeus como o grande médico sob cuja autoridade nos submetemos quando doentes. É necessário, aceitar tudo que acontece, mesmo aquilo que é mais desagradável, pois leva a tais coisas: a saúde do universo e a prosperidade e felicidade de Zeus. Pois ele não daria a nenhum homem o que ele dá se isso não fosse útil para a totalidade. Nem mesmo a natureza de coisa alguma, qualquer que ela seja, causa o que não é adequado àquilo que é orientado por ela.

Portanto, por dois motivos é correto contentar-se com o que acontece consigo: primeiramente, porque foi feito para si e prescrito para si e, de certa maneira origina-se em si, desde as mais antigas causas que giram em torno de seu destino. Em segundo lugar, porque mesmo aquilo que de mais severo ocorre a todos os homens é, para o poder que governa o universo, motivo de felicidade e perfeição e mesmo o que lhe dá continuidade. Pois a integridade da totalidade é mutilada se tu excluis o que quer que seja da continuidade e da comunhão seja das partes, seja das causas.

No início da Era comum, portanto, a relação do homem com qualquer calamidade pessoal ou coletiva é pensada, por um lado, a partir de uma ética da fatalidade. O doente deve aceitar aquilo que a ordem do universo – identificada por Marco Aurélio como Zeus – lhe oferece de bom ou ruim, pois faz parte de seu funcionamento ótimo, o qual não deve jamais ser constrangido pelo desejo do homem de viver de maneira distinta daquela que a providência estabeleceu. Esse posicionamento foi visto com desdém por Plutarco, o qual escreve:

Para o supersticioso, toda enfermidade do corpo, toda perda de dinheiro ou de filhos... é chamada de praga dos deuses e o assédio de algum demônio. O indivíduo não se aventura a se ajudar, pois isso significaria lutar contra os deuses... se alguém está doente, afasta o médico e exclama: “deixe-me sozinho para sofrer minha punição, ímpio e desgraçado como sou, detestado por deuses e demônios”.

Apesar do posicionamento passivo e tolerante por parte de homens como Marco Aurélio, uma parcela considerável dos indivíduos via como impossível adotar tal postura. A doença era, nesse contexto, uma grande calamidade, não um evento normal e adequado no funcionamento da maquinaria do universo. Era, sim, uma característica perturbadora e aberrante desse mecanismo. Originada fora do homem, ela era resultado da fúria de uma divindade ou da possessão por um demônio. Diante da enfermidade, o homem tinha como único remédio o acesso direto ao seu agente causador: o apelo ao deus ou a expulsão do demônio. Súplica e eliminação figuravam, desta maneira, como ações alternativas diante dos agentes causadores da moléstia. Num mesmo universo religioso, para o qual a ordem do mundo é regida por uma inteligência de autoridade acima da humana, acima do indivíduo e da pólis, duas atitudes perante a desgraça se estabeleciam: tolerância, complacência e submissão, por um lado, e súplica, exigência e expulsão, por outro.

Tais atitudes dúbias perante a doença estão associadas à popularidade de santuários em honra a deuses como Ísis, Serápis e Esculápio e à figura do curandeiro, do mago como médico. Espaços devocionais e indivíduos que curam são desta maneira, elementos-chaves para o desenvolvimento, no interior de grupos cristãos, da personagem do devoto que cura imbuído do espírito divino.

O vínculo entre devoção, doença e cura presente no cristianismo desenvolve se a partir de concepções gregas como as anteriormente descritas e noções judaicas sobre as quais podemos ler no Pentateuco. Por um lado, a dor do parto será a punição conferida a Eva e ela e Adão serão expulsos do paraíso divino para que não comam da árvore da vida e vivam como imortais (Gênesis 3, 16; 22-24).

Em seguida, o limite de 120 anos para a vida humana – responderá à união ilícita entre as filhas dos homens e os filhos de Deus (Gênesis, 6, 1-3). Mas o deus do Pentateuco não é apenas aquele que se utiliza da doença como instrumento de punição do homem. Ele também tem o poder de distribuir saúde a quem lhe convém. No Êxodo, é dito que Iahweh livrará aqueles que o obedecerem de todas as pragas e doenças:

se ouvires atento a voz de Iahweh teu Deus e fizeres o que é reto diante dos seus olhos, se deres ouvidos aos seus mandamentos e guardares todas as leis, nenhuma enfermidade virá sobre ti, das que enviei sobre os egípcios. Pois eu sou Iahweh, aquele que te restaura. (Êxodo, 15, 16)

O judaísmo antigo associava, portanto, o distanciamento da divindade à dor, à doença e à morte e a submissão a ela como única garantia da vida e da saúde. O “Iahweh que restaura” o faz tão-somente quando obedecido, quando identificado como aquele que orienta o homem na melhor maneira de viver. No primeiro século da Era Comum, Fílon sintetiza essas concepções:

Essas coisas são a recompensa pela impiedade e a iniqüidade. Há doenças físicas que afligem e devoram cada membro e cada parte separadamente e que também atormentam e torturam o corpo com febres e calafrios e debilitações terríveis e também convulsões espasmódicas dos olhos e ferimentos e abscessos putrefatos.

As primeiras comunidades cristãs combinaram as concepções éticas sobre a doença e a saúde advindas do mundo grego e judaico ao interpretarem a doença como um sinal do desgosto divino. Diante da possibilidade de tornar-se doente, o devoto deve submeter-se à vontade de deus a fim de conservar a saúde e a vida.

Quando Jesus encontra-se diante do paralítico de Cafarnaum, seus pecados precisam ser perdoados antes da cura (Evangelho de Marcos 2, 5-12). Em outra ocasião, Jesus cura um doente que, como tantos outros, se encontrava prostrado diante do tanque de Betesda. Ao reencontrar o homem, tempos depois, Jesus exclama: Eis que estás curado; não peques mais para que não te suceda algo pior!

(Evangelho de João 5, 1-14). Decerto, em nenhum momento é explicitado se o pecado era a causa dessas doenças. Contudo, a julgar pela afirmação paulina de que a doença e a morte de certos membros da igreja de Corinto figuravam como castigo de deus por conta da inobservância da Ceia do Senhor (Primeira Epístola aos Coríntios 11, 30-32), é possível afirmar que as primeiras comunidades cristãs associavam transgressão e doença de maneira, senão causal, relacional. O mau funcionamento do homem como ser social compõe a dimensão física do mau funcionamento do corpo.

Como no mundo grego, comunidades cristãs também identificavam a ação demoníaca como causa das enfermidades. No Evangelho de Mateus (9, 32; 12, 22), mutismo e cegueira são atribuídos à ação demoníaca, a qual é neutralizada pelo exorcismo praticado por Jesus. Em outra ocasião, narrada no Evangelho de Marcos (9, 17), os discípulos tentam expulsar o demônio que possuía um menino epilético e mudo, mas não obtêm sucesso e ele é curado quando Jesus executa o exorcismo.

Além dessa compreensão da doença como resultado da ação de um demônio que possui o doente, outras enfermidades são concebidas numa relação diferente com o mundo demoníaco. Uma febre pode ser “conjurada”, “repreendida”, da mesma maneira que se “repreende um espírito”, como narrado no Evangelho de Lucas (4, 39). No mesmo documento, uma mulher encontra-se inválida devido à possessão por um espírito e, ao ser tocada por Jesus, este lhe informa: Mulher, estás livre de tua doença (Evangelho de Lucas 11, 13). O agente demoníaco, espiritual é, portanto, a própria doença. Ao dirigir-se a um, atinge-se o outro e, quando um é expulso, o outro simultaneamente desaparece.

O sintoma, para as primeiras comunidades cristãs, originado externamente, ocupava, contaminava o indivíduo e submetia-o a vontades próprias que alienavam o homem e retiravam-no do contexto social. Neste sentido, a concepção cristã da doença como a possessão por uma inteligência externa assemelha-se às idéias clássicas do interior do corpo como dimensão desconhecida, perigosa e de onde advêm impulsos, movimentos e dores que não são reconhecidos como originados na pessoa. Brooke Holmes denomina esse espaço de “cavidade”, a qual não se refere nem ao lugar em que o herói homérico oculta “palavras aladas” nem a um elemento da anatomia humana. A cavidade é, pelo contrário, um espaço em grande medida além daquilo que o médico pode ver e, crucialmente, abaixo do limiar da consciência. Esse espaço interior inacessível à pessoa é, no mundo cristão, um dos lugares da ação divina cujo objeto de interesse é o homem. Na Segunda Epístola aos Coríntios lemos a narrativa da doença de Paulo como sinal da ação divina por intermédio de Satanás: Para eu não me encher de soberba, foi-me dado um aguilhão na carne – um anjo de Satanás para me espancar – a fim de que eu não me encha de soberba. A esse respeito três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim. Respondeu-me, porém: “Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder”. Por conseguinte, com todo o ânimo prefiro gloriar-me das minhas fraquezas, para que pouse sobre mim a força de Cristo. Por isto, eu me comprazo nas fraquezas, nos opróbrios, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por causa de Cristo. Pois quando sou fraco, então é que sou forte. (Segunda Epístola aos Coríntios 12, 7-10).

Aqui, a vontade divina toma a forma da doença e, para ser exercida, lança mão do mundo demoníaco como instrumento de ação. Nesse sentido, a doença ganha um caráter benéfico para o indivíduo, pois é através dela que este se torna objeto de atenção por parte do mundo divino. Diferentemente da concepção estóica em que a ordem do mundo depende de situações desagradáveis ao indivíduo, como no caso das enfermidades, a atitude de passividade cristã diante da doença é entendida como determinante, não para a totalidade ou a comunidade, mas para o indivíduo. Não é o universo que depende da ação, por vezes desfavorável ao homem, por parte da vontade dos deuses. O indivíduo é, não apenas, a vítima e o objeto de atenção divina. No mundo grego, como vemos na tragédia clássica, a possessão ocorre para que o desejo da divindade se cumpra e essa não traz qualquer benesse para o indivíduo. Na documentação paulina, a possessão pode ter um valor positivo, mesmo se toma a forma de doença, pois age de maneira repressora e educativa. A dimensão ética da doença não está numa relação de causa e efeito entre ação transgressora e sintoma, mas sim entre o sintoma e o comportamento esperado pela divindade.

O papel do curandeiro, desempenhado seja por Jesus, seja pelos apóstolos, tem por sua vez uma longa trajetória. Deuses como Esculápio, Ísis e Serápis exerciam atividades medicinais, inclusive através de prescrições emitidas em sonhos aos doentes. Ao dormir, o doente encontrava-se com a divindade e esta praticava a cura ao medicá-lo, operá-lo ou tocá-lo. Em outras situações, a atividade divina limitava-se a prescrever uma série de exercícios, alimentos, medicamentos e hábitos a fim de promover o restabelecimento do doente. A prática da incubação nos templos de Esculápio persistiu até 450 da Era Comum no santuário de Atenas, sobre o qual foram construídas sucessivas basílicas cristãs depois da eliminação do culto original. Muitas das práticas presentes nas Asklepiaia no período clássico podem ser conhecidas pelos Hieroi Logoi, um conjunto de orações compostas por Élio Aristides de Esmirna cerca de 170 da Era Comum. Aristides fora internado por diversas vezes ao longo de sua vida no santuário de Esculápio em Pérgamo e, sob as ordens do deus, registrou num diário suas experiências. Ao final da vida, os diários convertem-se em fonte para a composição dos Hieroi Logoi, obra na qual o devoto de Esculápio escreveu sobre as diversas moléstias que o acometeram, suas experiências religiosas, sociais e intelectuais no Asklepieion e as prescrições médicas emitidas pelo deus em sonhos. Essas incluíam passeios sem sapatos na neve, banhos, purgas, jejuns e o uso de diversos medicamentos cuja receita era também informada pelo deus.

Segundo Diodoro da Sicília, o qual escreve no último século antes da Era Comum, o mesmo tipo de atividade era atribuído a Ísis, Segundo ele, os egípcios acreditavam que a deusa teria descoberto muitos remédios e, quando se tornou imortal, passou a curar e a ensinar aos homens, em sonhos, como eles poderiam ser curados das enfermidades que os acometiam. Os santuários em honra ao sincrético Serápis também eram lugares para onde os doentes se dirigiam para sonhar com o deus e obterem cura para suas doenças. No segundo século da Era Comum, Arriano de Nicomédia narra como sete dos amigos de Alexandre, quando este se encontrava doente, dormiram no templo de Serápis para saber do deus se era aconselhável levá-lo para lá. A resposta foi negativa e em seguida Alexandre morreu, de maneira que sua morte foi entendida como se tivesse sido previamente profetizada.

O poder de curar não era exclusividade dos deuses no mundo Greco-Romano. Mais do que isso, ele podia se estender à habilidade em ressuscitar os mortos, numa radicalização absoluta do papel desempenhado pelo curandeiro, cuja identidade é redefinida pela do mago. Aos magos e feiticeiros era atribuída o poder de curar todos os tipos de doenças e de levantarem os mortos, como, no século I E.C., sintetiza Lucano. Ele escreve sobre uma mulher da Tessália chamada Ericto, procurada por Sextus, filho de Pompeu, a fim de obter o conhecimento sobre o futuro. Para isso, Ericto promove o retorno da alma ao corpo de um soldado morto ao convocar o fantasma das regiões inferiores e forçá-lo a entrar no cadáver e a falar:

Então o sangue quente e líquido com um toque suave acariciou os ferimentos enrijecidos e preencheu as veias até que vibrasse mais uma vez o pulso que lentamente retornava. E toda fibra estremeceu como se com a morte a vida tivesse se combinado. Então, não membro por membro, de maneira trabalhosa e com grande esforço, mas elevando-se de uma vez só, num salto o homem vivo se levantou da terra. Seus olhos brilhavam num clarão feroz e a vida era débil. Sobre sua face ainda restavam as pálidas matizes da morte recém-expulsa. Ele foi tomado de assombro, há pouco trazido de volta à terra: mas de seus lábios retesados não saia qualquer murmúrio. Apenas ele tinha poder de responder quando questionado. “Fale”, disse a mulher da Tessália, “pois te recompensarei.

Será grande o teu ganho se me responderes sinceramente e também livre de qualquer arte da Tessália. Este túmulo deve ser agora seu e em sua pira funerária tantas toras fatais devem queimar, tantos cantos devem ser entoados que nada mais, nem nenhum outro encantamento ou feitiço irá alcançá-lo. Assim, seu sono do Letes não será jamais perturbado novamente por uma morte recebida por mim há pouco. Por tal recompensa não considere esta segunda vida como algo forçado e em vão. As respostas dos deuses dadas pela sacerdotisa no sagrado santuário podem ser obscuras. Mas aqueles que enfrentam os oráculos da morte em busca da verdade devem ser respondidos de maneira clara. Portanto, fale, eu te rogo. Permita que a fortuna oculta fale através de tua voz sobre os mistérios do porvir”.

A bruxa da Tessália é procurada por Sextus a fim de desvendar um futuro sombrio: o morto profetiza derrota de Pompeu, a ser descrita no Livro Oitavo da obra. A ressurreição é neste caso, apenas um instrumento político, pois através dela, é dado a conhecer o desenvolvimento dos conflitos.

Em certas situações o elemento mágico está ausente e o curandeiro tem o poder de detectar os vestígios de vida no corpo de alguém dado como morto e lhe restaurar a vida, habilidade utilizada como sinal do grande poder. No primeiro século de nossa era, Plínio escreve sobre o médico Asclepíades de Prusa o qual invadira um funeral para o qual não fora convidado e salvara a vida do morto, cujo corpo já havia sido colocado sobre a pira. No século seguinte, Apuleio estende a narrativa:

Uma vez, por um acaso, quando ele estava voltando para a cidade vindo de sua casa no campo, viu uma enorme procissão funerária nos subúrbios da cidade. Uma imensa multidão de homens que foram prestar as últimas honras ao morto encontravam-se próximos ao carro fúnebre, todos imersos em grande tristeza e vestidos em trapos. Ele perguntou de quem era o funeral, mas ninguém respondeu. Então, se aproximou para satisfazer sua curiosidade e ver quem poderia ser aquele que estava morto, ou, quem sabe, na esperança de descobrir algo do interesse de sua profissão. De qualquer forma, ele arrebatou o homem das presas da morte, prestes a ser enterrado. Os membros do pobre sujeito já estavam cobertos de ervas e sua boca preenchida por um ungüento de doce perfume. Ele havia sido untado e tudo estava pronto para a pira. Mas Asclepiades olhou para ele e, cuidadosamente, tomou ciência de certos sinais. Manipulou seu corpo algumas vezes e percebeu que ainda havia vida nele, apesar da dificuldade em detectá-la. Rapidamente, ele exclama:

“Ele vive! Larguem as tochas, levem embora o fogo e ponham abaixo a pira. Levem de volta o banquete funerário e estendam-no sobre sua mesa em casa”. Enquanto ele falava, surgiu um burburinho; alguns diziam que era preciso confiar nas palavras do médico enquanto outros zombavam de sua habilidade. Finalmente, apesar da resistência até mesmo de alguns de seus parentes, talvez porque já haviam se apropriado dos bens do morto, talvez por não acreditarem ainda em suas palavras, Asclepiades os persuadiu a adiar o enterro por um breve momento. Tendo-o resgatado das mãos do responsável pelo funeral, ele levou o homem para casa como se o tivesse tirado da própria boca do inferno, e rapidamente fez com que seu espírito revivesse e, através de certos medicamentos, convocou a vida que ainda existia escondida nos lugares ocultos de seu corpo. (Florida 19) Alguns homens podiam exercer curas de maneira tão milagrosa quanto aquelas encontradas nos santuários dos deuses. No início da Era Comum, Plutarco narra como o general Pirro de Épiro, o qual vivera no século III antes da Era Comum, era capaz de curar o baço ao pressionar o corpo dos doentes com seu pé direito. Acreditava-se que o dedão de seu pé direito detivesse uma virtude divina, pois depois de sua morte, quando seu corpo todo havia sido queimado, ele permaneceu intacto. Tácito, o qual escreve na mesma época de Plutarco, discorre, por sua vez, sobre o poder do imperador Vespasiano de curar: Entre os pobres de Alexandria havia um homem que todos sabiam ser cego. Um dia ele se atirou aos pés de Vespasiano, implorando-lhe com gemidos que curasse sua cegueira. Ele havia sido instruído por Serápis para dirigir-lhe essa súplica, o deus favorito de uma nação muito agarrada a estranhas crenças. Ele perguntou se o imperador poderia untar seu rosto e olhos com a saliva de sua boca. Um outro suplicante, o qual sofria de atrofia numa mão, também implorou ao imperador por orientação de Serápis que César o tocasse com seu pé imperial.

A princípio, Vespasiano riu e recusou-se. Quando eles insistiram, ele hesitou. Por um momento, ficou preocupado em ser acusado de vaidade, caso falhasse. Depois, os apelos urgentes das vítimas e das pessoas em volta do imperador fizeram-no desejar executar se curas. Finalmente, ele solicitou a opinião dos médicos sobre se uma cegueira e uma atrofia daquele tipo poderiam ser curadas por meios humanos. Os médicos foram eloqüentes sobre várias possibilidades. A visão do homem cego não estava completamente destruída e se certos impedimentos fossem removidos, sua visão retornaria. O membro da outra vítima havia sido deslocado, mas poderia ser colocado no lugar com o tratamento correto.

Talvez aquela fosse a vontade dos deuses, eles acrescentaram; talvez o imperador tivesse sido escolhido para exercer um milagre. De qualquer maneira, se houvesse cura, o crédito iria para ele. Se ela não acontecesse, os pobres coitados teriam que suportar o ridículo.

Então, Vespasiano pressentiu que o destino lhe fornecido a chave para todas as portas e que nada agora desafiava a crença. Com uma expressão sorridente e cercado por uma multidão ansiosa de expectadores, ele fez o que lhe era pedido. Instantaneamente, o aleijado recuperou o movimento da mão e a luz do dia raiava novamente para seu companheiro cego.

A proximidade do homem de um deus podia garantir-lhe o poder de curar e até mesmo de ressuscitar. Filóstrato narra como Apolônio de Tiana, o qual vivera no primeiro século de nossa era, curou um rapaz possuído por um demônio. Em diferentes momentos, um homem manco, outro cego e outro com uma mão atrofiada, foram curados. Em Atenas, perturbado pela presença de um jovem possuído, Apolônio o encarou e o demônio gritou com medo e ódio. Ao fim, o demônio declarou que sairia do corpo do rapaz e jamais possuiria ninguém. Quando Apolônio ordenou que saísse e demonstrasse de maneira visível que não mais possuía o jovem, o demônio obedeceu fazendo tombar uma das estátuas do pórtico. Em seguida, o possuído esfregou os olhos como se tivesse sido acordado de um sonho e estava perfeitamente curado. No mesmo documento, Filóstrato narra como Apolônio, como Asclepiades, teria restaurado a saúde de uma jovem que aparentemente morrera durante seu casamento. Nessa narrativa, contudo, há certa dúvida se a jovem estava realmente viva ou se já havia morrido quando Apolônio se aproximou dela:

Uma moça morrera bem na hora de seu casamento e o noivo seguia o carro funerário em lamento como era natural por não ter consumado o matrimônio. Toda Roma lamentava ao seu lado, pois a donzela pertencia a uma família de cônsules. Então, Apolônio, vendo sua tristeza, disse: “Desçam o carro, pois eu cessarei as lágrimas derramadas por vocês por esta jovem”.

Ainda assim, ele perguntou qual era o seu nome. A multidão pensou que ele faria uma oração, como era comum para compor o funeral e para provocar o lamento. Contudo, ele não fez nada disso, mas apenas tocando-a e sussurrando em segredo algum encantamento sobre ela, de uma vez só acordou a jovem da morte aparente. E a jovem falou em bom som e retornou à casa paterna, exatamente como Alceste fez quando ressuscitada por Héracles. E os parentes da jovem quiseram presenteá-lo com a soma de 150.000 sestércios, mas ele disse que doaria o dinheiro para a jovem na forma de dote.

Bem, se ele detectou alguma fagulha de vida nela, a qual não fora notada por aqueles que cuidavam da jovem – pois foi dito que apesar de estar chovendo no dia, um vapor saía de sua face – ou se sua vida estava realmente extinta e ele a restaurara pelo calor de seu toque, é um mistério que nem eu nem aqueles que estavam presentes puderam esclarecer.

A dúvida sobre o estado do homem dado como morto foi objeto de reflexão dos primeiros autores cristãos. Aqueles que ressuscitam não estão mortos, mas dormem. No Evangelho de Marcos, é narrado como Jesus fora abordado por Jairo, o qual rogou que salvasse sua filha, a qual estava à beira da morte. Ao chegar à casa, Jesus exclama: “Por que este alvoroço e este pranto? A criança não morreu; está dormindo”. A narrativa segue até a recuperação da menina: E caçoavam dele. Ele, porém, ordenou que saíssem todos, exceto o pai e a mãe da criança e os que o acompanhavam, e com eles entrou onde estava a criança. Tomando a mão da criança, disse-lhe: “Talítha kum”- o que significa: “Menina, eu te digo, levanta-te”. No mesmo instante, a menina se levantou, e andava, pois já tinha doze anos. (Evangelho de Marcos, 5, 39-43).

O mesmo sentido encontra-se na narrativa de ressurreição de Lázaro, presente no Evangelho de João. Ao encontrá-lo Jesus exclama: “Nosso amigo Lázaro dorme, mas vou despertá-lo”. A narrativa prossegue: Os discípulos responderam: “Senhor, se ele está dormindo, vai se salvar!”. Jesus, porém, falara de sua morte e eles julgaram que falasse do repouso do sono. Então Jesus lhes falou claramente: “Lázaro morreu. Por vossa causa, alegro-me de não ter estado lá, para que creiais. Mas vamos para junto dele!” Tomé, chamado Dídimo, disse então aos outros discípulos: “Vamos também nós, para morrermos com ele!”

Ao chegar, Jesus encontrou Lázaro já sepultado havia quatro dias. Betânia ficava perto de Jerusalém, a uns quinze estádios. Muitos judeus tinham vindo até Marta e Maria, para consolá-las da perda do irmão. Quando Marta soube que Jesus chegara, saiu ao seu encontro; Maia, porém, continuava sentada, em casa. Então, disse Marta a Jesus: “Senhor, se estivesses aqui, meu irmão não teria morrido. Mas ainda agora sei que tudo que pedires a Deus, ele te concederá”. Disse-lhe Jesus: “Teu irmão ressuscitará”. “Sei, disse Marta, que ele ressuscitará na ressurreição, no último dia!” Disse-lhe Jesus:

“Eu sou a ressurreição. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá. E quem vive e crê em mim jamais morrerá. Crês nisso?” Disse ela: “Sim, senhor. Eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus que vem ao mundo”.

Tendo dito isso, afastou-se e chamou sua irmã Maria, dizendo baixinho: “O Senhor está aqui e te chama!” Esta, ouvindo isso, ergueu-se logo e foi ao seu encontro. Jesus não entrara ainda no povoado, mas estava no lugar em que Marta o fora encontrar. Quando os judeus, que estavam na casa com Maria, consolando-a, viram-na levantar-se rapidamente e sair, acompanharam-na, julgando que fosse ao sepulcro para aí chorar.

Chegando ao lugar onde Jesus estava, Maria, vendo-o, prostrou-se a seus pés e lhe disse: “Senhor, se estivesses aqui, meu irmão não teria morrido”. Quando Jesus a viu chorar e também os judeus que a acompanhavam, comoveu-se interiormente e ficou conturbado. E perguntou: “Onde o colocastes?” Responderam-lhe: “Senhor, vem e vê!” Jesus chorou. Diziam, então, os judeus: “Vede como ele o amava!” Alguns deles disseram: “Esse, que abriu os olhos do cego, não poderia ter feito com que ele não morresse?” Comoveu-se de novo Jesus e dirigiu-se ao sepulcro. Era uma gruta, com uma pedra sobreposta. Disse Jesus: “Retirai a pedra!” Marta, a irmã do morto, disse-lhe: “Senhor, já cheira mal: é o quarto dia!” Disse-lhe Jesus: “Não te disse que, se creres, verás a glória de Deus?” Retiraram, então, a pedra. Jesus ergueu os olhos para o alto e disse: “Pai, dou-te graças porque me ouviste. Eu sabia que sempre me ouves; mas digo isso por causa da multidão que me rodeia, para que creiam que me enviaste”. Tendo dito isto, gritou em voz alta: “Lázaro, vem para fora!” O morto saiu, com os pés e mãos enfaixados e com o rosto recoberto com um sudário. Jesus lhes disse: “Desatai-o e deixai-o ir embora”. (Evangelho de João 11, 11-44).

A certeza de que Lázaro encontra-se vivo, identificada pela fala atribuída a Jesus, não é capaz de amenizar a ambigüidade da situação apresentada logo nas primeiras linhas da narrativa de ressurreição. “Lázaro dorme” é corrigido por “Lázaro morreu” e a observação sobre seu corpo sepultado há quatro dias, já em estado de putrefação. O importante, no entanto, não é o estado no qual o personagem se encontra – como no caso da jovem “ressuscitada” por Apolônio de Tiana – mas, sim, a habilidade inquestionável do curandeiro em restaurar a vida. Estamos diante, portanto, do modelo clássico de theios anér), o homem cuja proximidade com o mundo divino e uma sabedoria oculta lhe permite praticar milagres.

Essa intimidade com a divindade confunde se com o conhecimento de como essa atua no mundo mortal e, principalmente, a respeito do instrumental sobrenatural do qual lança mão a fim de afetar os homens. Neste sentido, cura, ressurreição e expulsão de demônios figuram como valores análogos, cuja pedra de toque é a identidade do agente causador do mal: deus, doença, demônio. A circulação desses elementos entre um mundo marcadamente politeísta e outro, de matriz judaica, não foi sintetizada exclusivamente pela presença do curandeiro sagrado na documentação cristã. No primeiro século e em meio judaico, Josefo escreve aos gentios que, nesse sentido, Salomão não era nada inferior aos seus sábios:

(...) deus também permitiu que Salomão aprendesse a arte de expulsar demônios, a qual é ma ciência útil e salutar para os homens. Ele também proferiu encantamentos através dos quais doenças eram aliviadas e deixou como herança a maneira de se utilizar de exorcismos através dos quais afastar demônios para que eles nunca retornem e esse método de cura é um grande poder, mesmo hoje em dia.

A narrativa de Josefo, utilizada como argumento contra a exclusividade do mundo Greco-romano em prover homens sábios com a habilidade de curar, nos remete ao problema da associação entre possessão e doença. Em meios cristãos, ambos se tornarão veículos para o exercício da vontade divina no mundo, através de curas empreendidas por Jesus e seus seguidores. Como no mundo grego, cura e doença têm origem divina. Entretanto, no cristianismo, o objeto último de interesse do deus não é a ordem do mundo, mas uma mudança interior nas concepções de mundo e atitudes do indivíduo. Como no mundo judaico, a doença é fruto da vontade divina, inclusive de maneira punitiva, e a possessão demoníaca germina seus sintomas. Por outro lado, no cristianismo, como no mundo Greco-romano, o exercício do poder de cura se dá pela proximidade entre o curandeiro e a divindade, seja essa proximidade entendida como intimidade e combinação de vontades ou entendida como filiação e mesmo identidade com o divino.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O Problema das Evidências Extra-Bíblica Sobre Jesus

Eu acredito que uma das principais funções dos biblioblogs é prestar, por assim dizer, um serviço público. Ser fonte de informação confíável em relação aos temas de historia bíblica e estudo das religiões, de forma a permitir o acesso do público leigo. A Internet torna possível compartilhar e transmitir informação com muita facilidade, boa ou má. Permite, com frequência que se desimforme e se deseduque, que se ressuscite teses estapafúrdias, há muito refutadas.

É problemático porque as pessoas lêem, e de boa fé acham que estão aprendendo, passam adiante, e estão recebendo informação, na melhor da hipóteses desatualizada, e na maioria das vezes errada.

Por exemplo, o filme feito para internet, Zeitgeist, muito popular no youtube, faz as seguintes afirmações.

"Além disso, há alguma evidência extra-bíblica de um certo Jesus, o Filho de Maria, que viajou com 12 seguidores, curando pessoas e tudo mais? Existiram numerosos historiadores que viviam no Meidterrâneo e arredores, tanto durante, quanto logo após a presumida vida de Jesus. Quantos desses historiadores se referiram a esta figura? Nenhum. Entretanto para ser justo, não quer dizer que os defensores do Jesus Histórico não tenham dito o contrário. Quatro historiadores são tipicamente citados para demonstrar a existência de Jesus. Plínio o Jovem, Suetonio, Tacito são os três primeiros. Cada um dessas referências consiste de um poucas frases e na melhor hipóteses referem apenas a Christus ou Cristo, o que de fato não é um nome, mas um título. Significa "ungido". A quarta fonte é Josephus, e esta já foi provado ser uma fraude a centenas de anos. Tristemente, é ainda citado como verdade".[1]

Esse argumento é apresentado as vezes de outra forma, apresenta-se uma lista de autores, (em uma das versões chega a 31), que viviam no Império Romano nos 100 ou 150 anos seguintes a morte de Jesus, e pergunta-se "se Jesus existiu, se realizou tão grandes feitos, como pode não ter sido notado por esses escritores? Como pode ter sido mencionado apenas por 4 ou 5 autores, em textos que não maiores que um parágrafo?"

Uma dessas listas, encontrada em inúmeros sites, foi elaborada no final do séc. XIX pelo escritor Jonh Remsburg, afirmando que só uns quatro ou cinco mencionaram Jesus (deve ser observado que o próprio Remsburg, acreditava na existência histórica de Jesus de Nazaré).

Lista de Remsburg: Josefo, Filo, Seneca, Seneca, Plínio Velho, Suetônio, Juvenal, Martial, Persius, Plutarco, Justo de Tiberias, Apolônio, Plínio o Moço, Tacito, Quintiliano, Lucano, Epicteto, Silius Italicus, Statius, Ptolemy, Hermogones, Valerius Maximus, Arrio, Petronio, Dion Pruseus, Veleio Paterculo, Apio, Teon de Esmirna, Flegon, Pompon Mela, Quintius Curtius, Luciano, Pausanias, Valerius Flaccus, Florus Lucius, Favorinus, Faedro, Damis, Aulus Gellius, Columella, Dio Crisostomo, Lisias, Apio de Alexandria.

Antes de tudo, vamos pensar: dos autores citados por Remsburg, alguns escreveram fábulas (como Faedro), outros eram poetas (como Marcial e Statius), outros escreveram sobre mitologia, e filosofia. Quantos deles mencionaram os assuntos da Judéia do sec. I? A maioria escrevia para um público da elite grega e romana, senadores, magistrados, nobres de cidades como Roma, Atenas ou Alexandria. Lugares como Galiléia eram tão remotos como o sertão da Paraíba ou do Ceará para um alemão ou canadense. E como se eu fosse a Nova York, entrasse em um livraria, pegasse aleatoriamente livros de 40 autores diferentes (de filosofia, politica, geografia, ciências e historia) e se 4 ou 5 mencionassem Padre Cícero, Antônio Conselheiro, Tiradentes ou o Negro Cosme, eu concluisse que eles não existiram, ou foram irrelevantes.

Sessenta milhões de pessoas viviam no Império Romano no sec. I DC, e como a esmagadora maioria delas não foi citada por nenhum historiador, ou não aparece em artefatos arqueológicos, eu posso concluir então que elas não existiram?

A propósito, quem foram os comandantes de todas as legiões do Império no sec. I?

Quem foram os 600 membros do Senado Romano ou os 71 do Sinédrio Judaico, em digamos, 50 DC?

São perguntas que nós, com os registros disponíveis e fontes que chegaram até nós, não temos como responder, embora saibamos que foram pessoas influentes e poderosas.

Para se ter uma idéia, o historiador Jona Lendering observa"As mais de quarenta províncias do Império Romano eram administradas por um governador, cujo mandato durava de 12 a 36 meses. Estes homens poderosos são virtualmente desconhecidos para os historiadores modernos, que se consideram afortunados quando acontece de conhecer a identidade do oficial responsável por uma provincia em um determinado momento".[2]

Ou seja, apesar desses homens terem governado provincias com dezenas, centenas de milhares de habitantes e comandado exercítos de milhares de soldados, por anos a fio, terem construido monumentos, registrado seus feitos em inscrições, cunhado moedas, muitas vezes não sabemos o seu nome, e, em outros casos, mesmo que saibamos são apenas nomes em uma lista. Casos como Plínio, o Jovem, por sua coleção de cartas com o Imperador Trajano e uma longa inscrição que descreve sua carreira, ou de Pôncio Pilatos, que é mencionado nos evangelhos, Filo, Josefo e Tácito (ironicamente a única menção de Pilatos por uma fonte romana, mesmo assim como aquele que executou Jesus de Nazaré), além de aparecer em um inscrição fragmentária e algumas moedas, são excessões que confirmam a regra. Isso ocorre porque apenas um pequena parte dos textos escritos no período e dos potenciais artefatos arqueólogicos sobreviveram até nosso tempo.

Em 24 de agosto do ano de 79 DC, o Monte Vesúvio, nas proximidades de Nápoles, entrou em erupção. A região, como hoje, era densamente povoada, e a cidade de Pompéia (onde viviam cerca de 20 mil pessoas) e a vizinha Herculano foram completamente destruidas. O célebre escritor e magistrado romano Plínio, o Velho, morreu naquela tragédia, tentando resgatar sobreviventes. Uma tragédia. Milhares morreram, e os sobreviventes ficaram sem teto. Mas quantos relatos de testemunhas oculares, de fontes primárias ou secundárias, nós temos disponíveis. UM. ISSO MESMO UM. Plínio, o Jovem, sobrinho do outro Plínio que morreu na erupção, que descreveu a tragédia a pedido de seu amigo Tácito (a parte em que o relato foi provavelmente inserido esta perdida) [3] . Temos algumas outras referências, escritas algumas décadas depois do fato, pelo poeta Statius (95 DC), o historiador Flávio Josefo ( 93-95 DC), e Suetônio (125 DC) [4], geralmente curtas e não maiores que alguns parágrafos, ainda que dezenas de escritores tenham vivido no período. Isso porque foi um evento que, se fosse hoje, faria o "breaking news" da CNN e meses depois viraria filme para televisão "baseado em uma história real". Felizmente, erupções vulcânicas deixam para trâs uma quantidade enorme de artefatos arqueológicos, que permitem não só entender o evento, mas reconstruir a vida de uma cidade romana do sec I DC.

Outro exemplo de como esse modus operandi em relação a Jesus no âmbito da história antiga pode levar a conclusões absurdas é a do próprio Imperador Trajano. Trajano governou o Império entre 98-117 DC, e em seus vinte anos de reinado foram talvez os mais gloriosos da História de Roma, de tal forma que, mesmo no final do IV século, os novos imperadores recebiam os votos "felicior Augusto, melior Traiano", ("que seja mais bem afortunado que Augusto e melhor que Trajano"). Herbert W. Benario, Professor Emérito de História Clássica da Emory University, observa que:
"Trajano foi das figuras mais admiráveis da Roma Antiga. Um homem que mereceu o reconhecimento e renome que gozou em sua vida e das gerações seguintes [5].

No entanto, surpreendentemente,
"as fontes para o homem e seu principado são desapontadoramente escassas. Não há um historiador contemporâneo que possa iluminar o período. Tácito o menciona apenas ocasionalmente, Suetônio não escreveu sua biografia, e nem mesmo o autor da muito posterior e largamente fraudulenta História Augusta. (...) Plínio, o Jovem, é nossa principal fonte literária, em seu Pannegyricus - seu longo discurso de agradecimento ao Imperador, após assumir o Consulado no final do ano 100 DC - e suas cartas (...) Cassio Dio, que escreveu na decada de 230 DC, elaborou uma longa história imperial a qual, para o periodo Trajanico, sobreviveu somente em forma abreviada no livro LXVIII. O retoricista Dio de Prusa, um contemporâneo do Imperador, oferece muito pouco de valor. As epitomes de Aurélio Vitor e Eutrópio, do IV século, oferecem algumas informações úteis. Inscrições, moedas, papiros, e textos legais são os mais importantes. Uma vez que Trajano construiu muitos projetos de significância, a arqueologia contribui poderasomente para nossa compreensão do homem [5].

Ou seja, ainda que "numerosos historiadores vivessem no, e em volta do Mediterrâneo" no tempo do Imperador Trajano, nossas fontes literárias sobre seus 20 anos de reinado são extremamente escassas, e não temos disponível nenhuma biografia escrita por um autor contemporâneo, embora tenhamos dezenas de escritores no período. No entanto, sabemos da existência e importância de Trajano pelas menções breves de Suetônio e Tácito, a correspondência de Plínio, a biografia escrita por Cassio Dio mais de 100 anos depois de sua morte, e principalmente, moedas, inscrições, monumentos e obras públicas. Se essas são as fontes para o Imperador, que regia os destinos de 60 milhões de pessoas, o que devemos esperar do carpinteiro galileu, que segundo os próprios discipulos "foi crucificado pelos poderes da época, que não o compreenderam" e cujo movimento cerca de 100 anos após sua morte, contava, no maximo, com cerca de 10 a 15 mil seguidores (que não cunhavam moedas, nem elaboravam documentos oficiais, nem construiam estradas, pontes, ou monumentos) ?.

(Também aqui vale observar que apenas uma "pequena parte do que foi escrito na Antiguidade chegou até nós, e que muito do que foi escrito sobre Trajano (ou da destruição de Poméia), por seus contêmporâneos foi perdido. Da mesma forma, o mesmo ponto se aplica a Jesus).

Mas, já que comecei a escrever, podemos aproveitar para avançar para coisas mais úteis. Além de analisar os relatos (ou falta deles) para pessoas e eventos contemporâeos a Jesus (um século antes e depois de sua morte), vamos comparar o impacto e atestação deixado por esses eventos e pessoas nas fontes literárias, com aquele deixado por Jesus de Nazaré. Uma espécie de "Escala Richter de Impacto Histórico". Veremos que o mais surpreendente não foi Jesus ter sido mencionado por apenas quatro ou cinco escritores mas o fato dele ter sido citado, e por tantos autores não cristãos. Mas, antes, abordaremos algumas questões preliminares, como o (quase) consenso da comunidade acadêmica favorável a historicidade de Jesus, sobre as menções a Jesus nos autores não-cristãos (mostrando, por exemplo, que a posição dominante entre os estudiosos é que Josefo se referiu a Jesus), e o porque da maioria dos escritos da Antiguidade não terem chegado até nós.

1ª Preliminar: Como os estudiosos analisam a historicidade de Jesus

Jesus de Nazaré é objeto de devoção e fé de centenas milhões de seguidores no mundo inteiro.

a) Os historiadores e Jesus

Não obstante, muitos fazem de sua vida o seu ganha-pão. Milhares de historiadores, arqueólogos, estudiosos bíblicos e especialistas em judaísmo antigo, buscam nos textos bíblicos e extra-bíblicos, nos escritos dos primeiros cristãos, na análise do contexto social, político e econômico da Judéia e do Império Romano no século I, e se propõem a chamada "busca" pelo Jesus Histórico.

Alguns desses estudiosos são cristãos, liberais ou conservadores, outros são judeus, outros ateus, outros místicos, "espirituais mas não religiosos". Suas interpretações como a visão mais próvavel do curso do Ministério de Jesus e início do cristianismo variam bastante. Mas, existem algum as certezas compartilhadas por todos, ou quase todos, entre elas é que a muito poucos motivos para duvidar da existência histórica de Jesus:

Professor judeu Geza Vermes, Professor de Judaismo Antigo na Universidade de Oxford, com cerca de 60 anos de dedicação a pesquisa do judaismo do 2° Templo, Jesus Histórico e Cristianismo primitivo afirma:
"Na verdade, com excessão de um punhado de céticos inveterados, a maioria dos estudiosos de hoje parte para o extremo oposto e considera existência de Jesus tão garantida que não se dá ao trabalho de questionar o significado de historicidade" [6].

Também o Professor da Universidade Hebraica David Flusser (1917-2000), que foi membro da Acadêmia de Ciências de Israel por sua contribuição no campo da História Clássica e Judaísmo Antigo, em cinquenta anos de trabalho, escreve:
"Realmente, possuimos registros mais completos sobre a vida dos imperadores seus contemporâneos e de alguns poetas romanos. Entretanto a excessão do historiador judeu Flávio Josefo, e possivelmente de São Paulo, Jesus é o judeu, de épocas posteriores ao Antigo Testamento, sobre quem nós mais sabemos" [7]

John Dominic Crossan, Professor da DePaul University, e uma das principais figuras a frente do Jesus Seminar, fez as seguintes observações, em um Seminário On-line na lista acadêmica de discussão "Crosstalk", quando perguntado em relação a tese da não existência de Jesus, faz a comparação (muito exagerada, ao nosso ver) entre essa tese com aqueles que negam que os americanos pousam na lua:
"(...) Eu não estou certo, como já havia dito antes, que alguém possa persuadir outras pessoas que Jesus nunca existiu se não for capaz de explicar todo o fenômeno de Jesus histórico e cristianismo primitivo, seja como um trapaça ou uma parábola santa. Eu tinha um amigo na Irlanda, que não acreditava que os americanos pousaram na lua, mas que tinham criado a coisa inteira para reforçar sua imagem de guerra fria contra os comunistas. Eu não consigo argumentar com ele. Portanto, não estou de todo certo que eu possa provar que o Jesus histórico existiu contra esse tipo de hipótese e, provavelmente, para ser honesto, não estaria mesmo interessado em tentar. No entanto, tomei a hipótese não como uma conclusão pré-estabelecida , mas como uma simples questão que estava por trás das primeiras páginas de BofC [Birth of Christianity] quando eu mencionei Josefo e Tácito. Eu não acredito que tanto um quanto o outro tenham checado os arquivos romanos ou judaicos sobre Jesus. Eu creio que eles expressaram o conhecimento público, comum, sobre aquele estranho grupo chamdo cristãos, e seu não menos estranho fundador chamado Cristo. A existência, não apenas dos textos cristãos mas destas fontes não cristãs é suficiente para me convencer que estamos lidando com um indíviduo que existiu na história. Além disso, a despeito das inúmeras formas em que os oponentes criticaram o cristianismo, ninguém nunca sugeriu que tudo tinha sido inventado. Isso é suficiente para mim.
e (...) que esta pessoa existiu é uma conclusão histórica para mim, e não um postulado dogmático ou pressuposição teológica. De modo geral, meus argumentos são: (1) a existência é dada em fontes cristãs, pagãs e judaicas; (2) Não é negada até mesmo pelos críticos mais hostis do cristianismo primitivo (Jesus é um bastardo e um tolo mas nunca uma ficção ou um mito!); (3) Até onde eu sei, não há paralelo daquela época e período que me permita compreender uma invenção desse tipo [8].

A grande questão é que independente dos testemunhos não-cristãos, sempre bem-vindos pelos estudiosos, a grande maioria das informações sobre Jesus virá, sempre, do Novo Testamento, e de alguns outros textos considerados antigos, como o evangelho de Tomé e de Pedro. Como observa o Professor Steve Mason, da Universidade York [9], se por um lado não se deve esperar do historiador "tratamento especial" para as narrativas evangélicas, o ceticismo radical que agressivamente recusa, a priori, qualquer informação histórica é equivocado. Segundo Mason, devem ser utilizados os mesmos critérios de análise crítica adotados para reconstruir o passado a partir de narrativas de historiadores antigos como Livio, Josefo e Tacito.

b) Critérios de autenticidade e fontes cristãs primitivas: estabelecendo um esboço da figura de Jesus

De fato, durante quase 200 anos de pesquisa, os acadêmicos criaram critérios para analisar os evangelhos como fontes historicas, e os ditos e feitos atribuídos a Jesus. Para exemplificar, podemos utilizar um desses critérios, como o do embaraçamento, se refere a ditos e feitos atribuidos a Jesus que criariam dificuldade para igreja primitiva, e enfraqueceriam sua posição diante de oponentes, e que dificilmente teriam sido inventados. Um exemplo de fato autenticado por este critério é a crucificação de Jesus sob a acusação de ser o Rei dos Judeus.

O próprio Paulo diz aos Corintíos que a cruz era escândalo para os judeus e loucura para os gregos (I Cor. 1:23). De fato, os evangelhos usam intensamente as escrituras para provar que Jesus era o Cristo, mas esta diz "Se um homem tiver cometido um pecado digno de morte, e for morto, e o tiveres pendurado num madeiro, o seu cadáver não permanecerá toda a noite no madeiro, mas certamente o enterrarás no mesmo dia; porquanto aquele que é pendurado é maldito de Deus. Assim não contaminarás a tua terra, que o Senhor teu Deus te dá em herança.(Dt 21:22-23)". Os oponentes e adversários dos cristãos usavam a crucificação como a maior prova de que Jesus não foi o Messias, como o judeu Trifo, rebatendo o uso de Dan. 7 por Justino Martir "Estas mesmas escrituras, meu caro, nos ordenam esperar aquele que, como Filho do Homem, receberá do Ancião de Dias o Reino Eterno. Mas este que vocês chamam de Cristo não teve honra ou glória, tanto assim que a maldição contida na Lei de Deus caiu sobre ele, porque foi crucificado" (Dialogo com Trifo, Capítulo 32). Também os rabinos, no Talmude, mostram como a crucificação poderia acabar com a "carreira" de pretendente messiânico "Rabi Meir costumava ensinar 'Qual o significado (do verso), "Aquele que for pendurado no madeiro é maldito de Deus" (Dt 21:23)? Havia dois irmaos gêmeos que eram parecidos. Um reinava sobre o mundo todo e outro se tornou um ladrão. Após um tempo, o que era bandido foi pego e então crucificado em um madeiro. Todos que passavam e viam, diziam "parece que o Rei foi crucificado" (bTalmude, Sinédrio 9:7). A cruz era escândalo, porque um Messias digno de seu "cargo" não poderia ser crucificado.

Tanto é que Celso, o fílosofo pagão de sec. II que escreveu contra Cristo e os Cristãos, os acusa de serem culpados de um sofisma ao afirmarem que o "Filho de Deus é o próprio Logos", porque ao dizerem "que o Logos é o Filho de Deus, não apresentam um Logos puro e imaculado, mas um homem dos mais degenerados, pois foi açoitado e crucificado" (Contra Celso, II.31), ridicularinzando-os por transformarem um criminosos em Deus "Se, após inventar defesas que são absurdas, e pelas quais vocês são ridiculamente enganados, ainda que imaginando que vocês realmente fizeram uma boa defesa, porque vocês não consideram aqueles outros individuos que também foram condenados, e sofreram uma morte miserável, como maiores e mais divinos mensageiros dos céus (que Jesus) ? (Contra Celso, II.44)

"O fato de que a cruz era escândalo e loucura, é evidenciado ainda na forma como alguns grupos cristãos chegaram a afirmar que Jesus não foi realmente crucificado. O Professor AKM Adam, da Universidade de Glasgow, observa que Irineu, em seu Tratado "Contra Todas as Heresias" critica os seguidores de seguidores de Cerinto, que acreditavam que Cristo desceu ao mundo e entrou no corpo do homem Jesus em seu batismo, mas o deixou em sua crucificação, de forma que embora Jesus tenha nascido, sofrido e morrido, Cristo permaneceu espiritual e intocado pelo sofrimento. Relata que os discípulos de Simão, o Mago, afirmavam que embora parecesse que Jesus havia padecido na cruz, ele não havia sofrido de fato. Basilides, pregava que Jesus não poderia realmente sofrer ou morrer, mas trocou de lugar com Simão de Cirene, que foi transfigurado para parecer com Jesus e crucificado, enquanto o verdadeiro Jesus via de longe e ria. Marcião e outros ensinavam que Logos/Cristo desceu sobre Jesus em forma de pomba e ascendeu aos céus antes de sofrer na cruz. Cristo apenas parecia ter um corpo físico, e ter sofrido e sido crucificado, mas ele era na verdade incorpóreo, um espírito puro, e assim não poderia sofrer [10]. Os próprios cristãos, percebiam quanto a crucificação era degradante e embaraçosa, tanto que que alguns deles chegaram a afirmar que Cristo, o Messias, não poderia ser realmente submetido a ela, e seu suplício só poderia ter sido aparente, ou ele teria sido substituído por alguém que foi transfigurado para parecer com ele. Isso reforça a percepção que a crucificação de Jesus não foi inventada pelos cristãos, mas um fato traumático que eles buscaram lidar de diferentes formas.

Por fim, a crucificação de Jesus e sob a acusação de ser o Rei dos Judeus era muito perigosa para os primeiros cristãos dado seu status legal precário no Império Romano. Os evangelhos foram escritos, provavelmente, entre a 1ª Guerra Judaica (66-73 DC) e 2ª Guerra Judaica (132-135 DC). No primeiro século DC e início do secundo, houveram inúmeras revoltas, provocadas por auto-proclamados "Reis dos Judeus" e "Messias", que causaram a morte de (dezenas de) milhares de pessoas, dentre os quais milhares de bons soldados e cidadãos de Roma. No mesmo período, a igreja era perseguida e o cristianismo era uma seita ilegal, sendo que alguns oficiais e magistrados suspeitavam que o grupo era formado por agitadores, desleias a Cesar e a Roma. De fato, Aristides, Quadrato, Justino Martir, Melito, Apolinario, e outros, escreveram ao Imperador da época buscando incessantemente provar que os cristãos eram leais, pacíficos e produtivos e perfeitos súditos do Império. Porque, nessas circunstâncias, os cristãos inventariam que seu líder tinha sido um Messias Crucificado, executado como um criminoso político, por magistrados romanos, sob a acusação de Alta Traição? Certamente porque Jesus foi realmente crucificado, por ter sido acusado (justa ou injustamente) de se auto-proclamar "Rei dos Judeus", e essas coisas eram fatos bem conhecidos (e problemáticos) que os cristãos tinham que explicar.

Os critérios como embaraçamento, dissimilaridade, múltipla atestação e outros apresentam limitações, mas permitem, no caso de Jesus, estabelecer, no mínimo, um esboço de sua figura. E o que observa o Prof. Alan Segal, da Universidade de Colúmbia:
"Desde o Iluminismo, as histórias do Evangelho sobre a vida de Jesus tem sido postas em dúvida. Intelectuais, naquele tempo e agora, perguntam: "O que torna as histórias do Novo Testamento historicamente mais prováveis do que fábulas de Esopo ou contos de Grimm?" Os críticos podem ser respondidos de forma satisfatória, mas os argumentos que eles apresentam são corrosivos à fé ingênua"[11]

Segal observa que muitos estudiosos são céticos quando as narrativas de infância de Jesus, considerando como lendários os relatos dos anjos aparecendo aos pastores, a matança dos inocentes, a estrela de Belém e os magos do oriente. Pondera a falta de registros históricos escritos durante a vida de Jesus. No entanto, ele afirma, isso não invibiabiliza a pesquisa histórica sobre a vida de Jesus, pois entre os critérios estabelecidos pelos historiadores, o do embaraçamento estabelece um padrão muito rigoroso que, se por um lado, é tão severo que vai lançar fora até mesmo ditos e feitos de Jesus autênticos, por outro, justamente por seu rigor, dá aos estudiosos fatos indisputáveis que permite verificar que as narrativas são, pelo menos em parte, históricas. Segal então continua:
"Pelo grande rigor com que foi definido, o critério [do embaraçamento] demonstra que Jesus existiu. Aqui estão alguns fatos nos evangelhos que a igreja foram embaraçosos para a Igreja Primitiva: Jesus foi batizado por João (um grande problema teológico). Ele pregou o fim do mundo (que não veio). Ele se opôs ao Templo de alguma forma (e esta oposição o levou diretamente para a morte). Ele foi crucificado (uma maneira desonrosa de morrer). A inscrição na cruz "Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus" (a Igreja nunca pregou este título para Jesus e logo perdeu o interesse em converter judeus). Ninguém, de fato, viu quando ele ressuscitou (embora, evidentemente, seus discípulos, quase que imediatamente perceberam que ele estava vivo). Ironicamente, é a natureza embaraçosa desses fatos que nos garante que são autenticos (...).O critério de dissimilaridade nos coloca em uma posição melhor no que diz respeito à vida de Jesus no que estamos no que se refere aos grandes acontecimentos da história israelita [11].

O Prof. James McGrath, da Butler University, disponibilizou em seu site, uma compilação de listas dos Prof. Norman Perrin, E.P Sanders, e N.T Wright, que apresentam ditos e feitos de Jesus que são considerados como (quase) indisputavelmente autênticos.

c) Avaliação dos evangelhos como relatos históricos, data de autoria e genero literário.

Segundo a posição amplamente dominante entre os historiadores do cristianismo primitivo os quatro evangelhos foram compostos pelas 2ª e 3ª geração de cristãos, entre 70 e 110 DC, havendo possibilidade de variação de 15 ou 20, para mais ou para menos, para um ou outro evangelho individual [12]. É uma distância comparavel, em nossa perspectiva, a acontecimentos como a ida do homem a lua (1968) e Copa do Mundo de 1970, de um lado, e a crise de 1929 ou a subida de GetúlioVargas ao poder (1930) de outro. Ou seja, é bem provável que pelo menos Marcos (65-80 DC) ou Mateus (80-100 DC), tenham sido finalizados em uma época que testemunhas oculares de Jesus ainda estivessem vivas. Lembrando sempre que essa é a data de composição final, uma vez que os estudiosos identificam fontes escritas mais antigas, como Q (fonte de ditos), como servindo como base a composição evangélica.

Ainda, do ponto de vista do gênero literário, muitos, se não a maioria dos estudiosos atualmente aceitam a tese proposta pelo Prof. Charles Talbert, (Baylor University) e desenvolvida pelo Prof. Richard Burridge (Kings College), - de que cada um dos quatro evangelhos podem ser classificados na categoria das biografias greco-romanas (bioi ou vitae, que apresentam características bem distintas das atuais biografias), como Vidas Paralelas de Plutarco e Agrícola de Tácito -, a partir da analise das caracteristicas mais importantes desse tipo de trabalho (apresentação, assunto, características internas e externas, além de próposito e recepção pelos leitores), no periodo entre 500 AC a 300 DC [13]. Conforme Burridge, existiria, por convenção um contrato informal entre as partes, que "define uma série de expectativas no leitor a respeito das intenções do autor, ajudando na construção do significado do texto, bem como na reconstrução do significado original do autor, assim como na interpretação e avalaição da comunicação contida na obra literária".

A definição de genero é importante, pois, certamente, usando um exemplo atual, nossas expectativas e nossa forma de compreender uma narrativa são diferenciadas, digamos, diante de uma descrição de um assassinato numa página policial de um jornal ou o notíciário na TV, em comparação a de um livro de Agatha Christie ou numa série de ficção como CSI Miami. Ao situarmos os evangelhos na mesma categoria de escritos como as biografias de Alexandre, O Grande e Julio César, a implicação é que Marcos, Mateus, Lucas e João buscaram relatar os ditos, feitos e a significância de Jesus, e, como era extremamente comum entre as bioi, tinham a intenção de que suas obras tivessem finalidade didática em relação as crenças dos cristãos e seu fundador. Obviamente, o reconhecimento em um certo gênero literário diz mais sobre a intenção presumida do autor do que o resultado final de sua obra. O fato de serem bioi ou vitae não "prova" que a "Bíblia tinha Razão" ou estabelece o nível de confiabilidade historica dos evangelhos - ponto diverso que deve ser analisado separadamente - pois também para Cesar, Alexandre e Augusto existiram bons e maus biografos - apenas indica ao estudioso a intenção pela qual foram escritos e forma como foram originalmente lidos.

Outros, como Geza Vermes [14], acreditam que os evangelistas, embora não fossem historiadores profissionais atuaram como narradores populares da história de Jesus de Nazaré. Em ambos os casos, seja como for, os evangelistas teria buscado narrar a vida, idéias, atividades, magistério e morte de Jesus, e usaram estes acontecimentos para compartilhar sua Fé na sua ressureição e de que ele era o Cristo, conforme as escrituras. Observe-se que, mesmo aqueles estudiosos que não concordam com a classificação dos evangelhos como escritos históricos ou bioi, stricto-sensu, como John Dominic Crossan, acreditam que é possivel utiliza-los como fontes históricas, obtendo informações sobre Jesus e os primeiros cristãos [15].

d) Resultados. Como os estudiosos avaliam os evangelhos

Os resultados variam muito, havendo aqueles como F.F Bruce e Craig Bloomberg que defendem a aceitação da tradição evangélica como confíavel até aqueles como Burton Mack que defende uma visão muito mais cética, considerando que cerca de 10 % do que é atribuido a Jesus nos evangelhos teria sido provavelmente dito ou realizado por ele [16]. Seja como for - uma vez que, segundo John D. Crossan, são atribuidos pouco mais de 500 ditos e feitos de Jesus nos evangelhos e outras fontes cristãs escritas até cerca de 100 anos após a morte de Jesus [17] - mesmo nessa visão bem minimalista teriamos por volta de 50 feitos e ditos de Jesus considerados como provavelmente autênticos, mesmo utilizando os critérios históricos de forma extremamente rigorosa. Considerando que, temos apenas quatro ditos associados a uma figura da importância de Hanina Ben-Dosa [18], por exemplo, mesmo antes de qualquer análise crítica, não é díficil entender porque o Professor Flusser nos diz que sabemos mais sobre Jesus do que quase todos seus outros contemporâneos. Alías se considerarmos que existem dezenas de evangelhos e outros textos cristãos, além do NT, tais como os de Nag Hammadi, ai que percebemos que o problema não é a falta de fontes, mas justamente seu excesso.

É que nos diz, em outras palavras, Michael Grant (1914-2004), Professor de História Antiga da Universidade de Edinburgo, ateu, e uma das mais respeitadas figuras em história romana:
"Se nos aplicarmos ao Novo Testamento, como nós devemos, a mesma sorte de critérios que nós devemos utilizar para outros escritos da antiguidade contendo material histórico, nós não podemos mais rejeitar a existência de Jesus sem o fazer o mesmo com um grande número de personagens pagãos cuja realidade de sua figuras históricas nunca é questionada. Certamente, existem todas aquelas discrepancias entre um evangelho e outro. Mas nós não negamos que um evento aconteceu apenas porque alguns historiadores pagãos como, por exemplo, Livio e Polibio, o descreveram de maneiras diferentes. Que houve um rápido crescimento de lendas em volta de Jesus não pode ser negado, e isso aconteceu muito rápido. No entanto, também houve um rápido desenvolvimento de lendas em torno de figuras pagãs como Alexandre o Grande, ainda que ninguém o considere completamente mítico ou fictício. No fim das contas, os métodos críticos modernos não dão suporte a teoria do Cristo Mítico. E, de novo, mais uma vez, ela foi "refutada e rejeitada pelos estudiosos de primeira linha". Nos anos recentes "nenhum estudioso sério ousou levantar a tese da não historicidade de Jesus", ou muito pouco o fizeram, e mesmo assim não conseguiram ser bem-sucedidos frente a forte e abundante evidência contrária" [19]

Por fim, observamos que tanto Vermes quanto Grant observam que existe um "punhado" ou uns "poucos" estudiosos que questionaram a historicidade de Jesus. Na atualidade, podemos citar, por exemplo, o Prof. Robert Price e o Dr. Richard Carrier, entre outros. Estes estudiosos acreditam que existem evidências que sugerem que Jesus possivelmente não teria existido, e uma das suas principais reclamações é justamente que o consenso histórico é tão forte, que suas teses não são consideradas com a seriedade devida, não sendo possível a eles sequer começar o debate acadêmico. Seja como for, não há problema em se questionar a existência de Jesus, ou seu significado, que é uma questão histórica como outra qualquer. O problema, como em casos como o do filme citado, é não informar aos leitor, principalmente os leigos no assunto, a situação atual do campo, dando a entender que justamente a situação contrária é a que ocorre.

CONTINUA
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Referências Bibliograficas:
[1] Peter Joseph, "Zeitgeist, O Filme", transcrição parte 1, acessado em 30.12.2009[2] Jona Lendering: "Pontius Pilate"http://www.livius.org/pi-pm/pilate/pilate01.htm., acessado em 28.12.2009[3] ver John J. Butt, Greenwood Dictionary of World History (2006), "Pliny the Younger", fl. 266; Ronald Mellor (1999), Roman Historians, fl. 89. Este exemplo foi utilizado anteriormente por Gakusei Don, na analise do documentário "God who Wasn't there"[4] Statius, Silvae 4.4; Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas 20:7.2; Suetônio, A Vida dos Doze Césares, Tito 8:3-4.[5] Herbert W. Benario (2000), Trajan In: De Imperatoribus Romanis:An Online Encyclopedia of Roman Rulers and their Families (http://www.roman-emperors.org/) , acessado 28.12.2009[6] Geza Vermes (2005), Quem e Quem na Época de Jesus, fl. 23, Ed. Record, 1ª Edição[7] David Flusser (1998), Jesus, fl .01, Ed. Perspectiva[8] John D. Crossan (2000), Seminar on Materials & Methods in Historical Jesus Research, Seminário On-line realizado de 11 de fevereiro a 4 de março de 2000, ver mensagens 146 e 159, e também 167, de 28/02, 01/03 e 02/03/2000, respectivamente (acessado em 04.01.2010)[9] Steve Mason, Where Jesus Was Born? O Little Town of…Nazareth?, Bible Review, Fevereiro de 2000.[10] A.K.M. Adam, Docetism, The Ecole Initiative, http://ecole.evansville.edu/articles/docetism.html, as passagens citadas de Contra as Heresias, de Irineu de Lyon, são os Livros I capítulos 23, verso 2, e 26, verso 4; II; e Livro II 24.4, acessado 04.01.2010.
[11] Alan F. Seagal (2005), Jesus and the Gospels-What Really Happened - [1]: Believe only the Embarrassing, Slate, 21.12.2005 http://www.slate.com/id/2132974/entry/2132989/, acessado em 04.01.2010.
[12] ver Geza Vermes (2005), A Paixão, fl. 15, Editora Record, 1ª edição; John D. Crossan, Jesus, Uma Biografia Revolucionária, fl. 14, Ed. Imago, 1ª Edição; Gerd Thiessen, O Novo Testamento, fls. 71-92 e fls. 111-122; 1ª Edição.[13] Burridge, Richard (2004): What Are the Gospels, A Comparison with Graeco-Roman Biography, 2ª edição;ver também o review por James Morrison (Bryan Mawr Classical Review 2005.05.31) e Mitchell G. Reddish (Mitchell Reddish, review of Richard A. Burridge, What Are the Gospels?: A Comparison with Greco-Roman Biography, Review of Biblical Literature). Quanto a avaliação da tese, o Professor Bart Erhmann afirma que, recentemente "tem sido aceita por muitos estudiosos" (Bart Ehrman, The New Testament: A Historical Introduction to the Early Christian Writings. 3ª edição, fl. 64-65, 2004). O próprio Burridge afirma ter ficado surpreso com a aceitação de sua tese, parecendo-lhe que a maioria dos estudiosos já classificava os evangelhos entre as bioi ou vitae no final da década de 1990 (What Are the Gospels.... fl. 253). Andrew T. Lincoln fala em consenso na comunidade acadêmica em torno da tese de Burridge (A.T. Lincoln, 'Reading John, The Forth Gospel under Modern and Post-Modern Interrogation In Stanley Porter (ed.) : Reading the Gospels Today), percepção compartilhada pelo Prof. Mitchell Reddish no review já citado.[14] Geza Vermes (2001), As Várias Faces de Jesus, fl.177[15] John Dominic Crossan (2004); Texto e Contexto na Metodologia dos Estudos do Jesus Histórico In Chevitarese, Corneli & Selvatici; Jesus de Nazaré, Uma outra História, fls. 169-170.[16] Burton L Mack (1993), The Lost Gospel: The Book of Q and Christians Origins, especialmente fls. 71-105 e fls. 260-263; ver também o sumário extremamente útil de Cris Zeichmann, "Q and The Historical Jesus, Pt. 2" http://neonostalgia.com/weblog/?p=551[17] John Dominic Crossan (1999) Birth Of the Christianity, fls. 587-596. Disponível online em http://www.jesusdatabase.org/index.php?title=Crossan_Inventory, acessado em 30.12.2009[18] Geza Vermes (2001), As Várias Faces de Jesus, fl.[19] Michael Grant (1979), Jesus: An Historian's Review of the Gospels, pagina 200.