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segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O Jesus Oculto

Apesar de existir um imenso debate sobre a interpretação dos evangelhos apócrifos encontrados, na sua grande maioria, em 1945, em Nag Hammadi (no Egito), poucas pessoas tiveram tempo de entender o que acontece de fato no meio religioso.

Novas interpretações de uma descoberta de cinco décadas atrás estão questionando dogmas de fé do catolicismo, como a existência do pecado original, e até confirmando outros, como o da assunção de Maria aos céus, narrada com detalhes nos evangelhos apócrifos que tratam sobre a mãe de Deus. Ela aparece nos textos não como intercessora, mas como apóstola de seu filho e liderança no cristianismo. A leitura de gênero aplicada nos apócrifos evidencia a disputa de poder entre Pedro e Madalena. Esta última não é vista como prostituta, mas apóstola e amada de Jesus. Outra revelação é a de Jesus Cristo como líder político – uma nova imagem tão forte quanto a propagada pela igreja como homem místico com seus poderes de filho de Deus. Segundo o apócrifo de Tomé, Cristo era revolucionário político.

Estes evangelhos, em parte, estão no Vaticano e apenas estudiosos do assunto têm o direito da consulta completa. Na internet proliferam interpretações dos textos que tratam dos apócrifos. Se existe polêmica em religião, esta é a maior delas. Frei Jacir de Freitas Faria, que estudou no Pontifício Instituto Bíblico de Roma, informa ao Diário da Manhã que estes textos datam do ano 50 d.C até século VI e VII. “Eles ficaram escondidos por muito tempo. A igreja mandou para a fogueira esses textos por considerá-los heréticos, não aptos para a fé cristã”, diz frei Jacir.

O estudo consiste num comentário aos evangelhos de Madalena e Tomé e na apresentação da história de Maria, a mãe de Jesus, de José e da infância de Jesus nos apócrifos. Jacir é um dos maiores pesquisadores sobre o tema no país. Para ele, o assunto fascina, pois inverte muitos aspectos tidos como certos ao longo do cristianismo.

Ele indica que a forma com que a tradição cristã tratou Madalena está toda equivocada. “A interpretação feita pela Igreja de Lc 7, 36-50, que identificou a pecadora citada como sendo Maria Madalena, fez dela uma prostituta. Fato que ninguém mais ousou duvidar”, diz. No evangelho de Madalena e em outros apócrifos, ela é apresentada como liderança forte e que ameaçava Pedro ao ponto dele tramar contra ela, pedindo a Jesus que a expulsasse do grupo dos apóstolos. “Com a divulgação destes evangelhos, é possível perceber também um outro perfil de Pedro, um homem misógino, machista”, diz o frei.

A pesquisa de frei Jacir retorna aos primórdios do cristianismo. Desvenda uma época pré-igreja Católica, pois mostra as origens dos seguidores de Cristo e o modo como entenderam Jesus e sua mensagem. O que temos na Bíblia é a versão que se tornou oficial, canônica. O teólogo Antônio Maria diz que conhece os evangelhos narrados pelo frei Jacir, mas prefere acreditar na Bíblia tradicional. “Nada impede de se discutir estes temas, mas o mais valioso, com certeza, se encontra na Bíblia”, diz o pesquisador goiano.

Jacir explica que não existiu um só cristianismo. Ou seja, não existiu apenas uma versão dos fatos daquele período. A importância de saber que existiam diversos seguidores de Cristo ajuda a entender como uma única visão integrada surgiu. Com estas pesquisas pode-se descobrir que a Igreja dos séculos que se seguiram aos fatos narrados com Jesus acabou escolhendo uma verdade em seu interior, a que adequava aos seus objetivos. “Podemos falar de vários cristianismos, aquele da comunidade de Marcos, de Mateus, de Lucas, de João, de Tiago, irmão de Jesus, de Maria Madalena, de Tomé, de Paulo, dos Atos dos apóstolos”, afirma.

Cada comunidade deu o seu tom ao seu escrito. Mateus enfocou o lado judeu de Jesus. Marcos, o Jesus missionário; Lucas, o Jesus salvador da humanidade; Atos dos Apóstolos, o Jesus da apostolicidade; Paulo, o Jesus ressuscitado. Maria Madalena procurou traçar o perfil de Jesus ressuscitado, humano e revelador de ensinamentos divinos. Tomé revelou o Jesus judeu revolucionário, anti-romano e místico. Tiago, o irmão de Jesus, anunciou o Cristo revolucionário, mas foi abafado.

O cristianismo subseqüente, mesmo sendo perseguido por Roma, foi se adequando ao império. O gnosticismo, outra corrente de pensamento nas origens do cristianismo, considerada herética, resistiu à institucionalização da religião. O cristianismo, que deu o tom aos ensinamentos vindouros sobre Cristo, foi o da apostolicidade, liderado por homens que impediram a liderança das mulheres. Isso não acontecia com grupos gnósticos, onde as mulheres eram mestras, profetisas e sacerdotisas. Houve disputas teologais entre os primeiros cristãos.

“Apontadas como heresia, as idéias de grupos, como os Gnósticos e Docetas, foram expulsas do cristianismo. Esses grupos criaram uma literatura alternativa, a apócrifa. Os gnósticos acreditavam que a salvação estava no conhecimento de Deus e em si mesmo e que não era necessário uma hierarquia eclesial para chegar a Deus. Cada um pode percorrer o seu caminho de Salvação. Isso criou problemas."

Assim, as narrativas que falam de Jesus e do nascimento dos cristianismos são relatos sobre como os cristãos, judeus e não-judeus entendiam Jesus. Os relatos bíblicos são narrativas primeiro repassadas de forma oral. Pelos estudos de frei Jacir e outros estudiosos da religião, é possível identificar como chega até nós uma Bíblia que muito bem poderia ter outro conteúdo. Jacir afirma que o estudo desses evangelhos suscita opiniões divergentes entre os estudiosos.

Existe uma corrente que defende a falsidade destes textos, os quais foram escritos por pessoas não confiáveis – e que por isso exageraram nas narrativas ou escreveram ‘verdades’ não-inspiradas. Outros, no qual ele se inclui, defendem que esses textos devem ser estudos de modo crítico e ecumênico. Respeitar a diversidade de pensamento na origem do cristianismo é um caminho salutar. Isso não significa, explica Jacir, proclamar a inspiração desses textos, mas dialogar com eles e descobrir, por exemplo, que a mulher tinha papel importante no início do cristianismo, que Deus era visto com Pai e Mãe, mas vingou a idéia de Deus-Pai.

Além disso, nascemos em estado de graça, sem pecado ‘original’. “Não há pecado! Somos nós que criamos o pecado, quando agimos conforme os hábitos de nossa natureza adultera”, diz, segundo o evangelho de Maria Madalena. “É bem certo que os exageros nos apócrifos devem ser compreendidos no contexto da piedade popular que queria enaltecer Jesus e seus seguidores”, afirma Frei Jacir.

Ideias adormecidas:
O que os apócrifos elucidam:

A partir do séc. III, Maria Madalena foi interpretada como prostituta, impura e pecadora. O que fez dela modelo para o cristianismo: a pecadora redimida, em contraposição a Maria, mãe de Jesus, virgem santa. Os apócrifos revelam que Maria Madalena era a mulher amada por Jesus e liderança apostólica. No texto apócrifo Pistis Sofia, ela conversa com Jesus e mostra ser sábia em seus apontamentos. No evangelho de Maria Madalena, após ter ouvido dela os ensinamentos de Jesus, Pedro questiona: ‘Será que nós devemos dar ouvidos ao que essa mulher diz? Devemos mudar nossos hábitos? Será que o Mestre a preferiu a nós?’ “Maria Madalena ameaçava a liderança dos homens. Fazer dela uma prostituta significou minimizar o seu papel de liderança no início do cristianismo, assim como tantas outras mulheres que caíram no ostracismo. Estudar os apócrifos é resgatar também o papel da mulher na primeira hora do cristianismo”, afirma Frei Jacir.

Jesus beijava Maria Madalena:
Segundo o apócrifo de Felipe, Jesus beijava Madalena na boca. Jacir afirma que os documentos pesquisados apontam para grande ciúme dos discípulos em relação a esse amor. E ainda explica que o beijo, na visão semita, tem sentido de comunicar o espírito, o saber. Por outro lado, concorda que Jesus poderia ter beijado Maria Madalena em outro sentido. “Onde está o problema?”, questiona Frei Jacir. Este seria, assim, um Jesus mais humano e, por isso, divino, afirma.

Pedro e as mulheres:
O líder maior nos textos canônicos é Pedro. Mas nos apócrifos, é visto como um homem que tem aversão às mulheres. “Não chega a ser uma questão de homossexualismo, mas de raiva, de ser intolerante com as mulheres”, afirma frei Jacir. No evangelho Pistis Sofia, Pedro fala com Cristo, pedindo a expulsão de Madalena. Para ele, Madalena conversava demais, impedindo que outros também falassem. Ela, por sua vez, diz a Cristo que também não mais suporta Pedro e que ele detesta o sexo oposto. O ódio de Pedro às mulheres é um dos pontos mais polêmicos dos novos estudos. No evangelho de Tomé, Jesus chega a dizer ironicamente a Pedro que faria Madalena transformar-se homem para que ela pudesse entrar no reino.

Não existe pecado:
O dogma de que os seres humanos já nascem com pecado original foi formado pela Igreja ao longo da história. O estudo desses textos indica que o homem nasce, de fato, puro. “Depois, com o tempo, conforme nossas práticas, é que chegamos a uma situação pecaminosa”, conta frei Jacir. Em uma conversa entre Madalena e Pedro, no Evangelho de Maria Madalena, que não está na Bíblia, ela diz que o Mestre revelou: “Não há pecado.” Além de não adotar o que diz Madalena, a Bíblia e a própria igreja insistiu muito no pecado moral, se esquecendo dos pecados sociais. “Somos nós que fazemos existir o pecado, quando agimos conforme a nossa natureza adúltera”, diz o evangelho de Maria Madalena. Entre os cristãos havia a discussão sobre o pecado. Mais tarde, a idéia do pecado original ganhou força de dogma de fé: quando uma pessoa nasce já estará concebida em pecado. “Os antigos até ensinavam que quando uma criança morria sem ser batizada, ela vomitaria o leite do pecado que a sua mãe lhe havia oferecido. Que absurdo! Uma criança não pode nascer em pecado. Ela é totalmente graça. Pecado original entendido desse jeito só pode ser original na cabeça de quem o inventou.

Tomé apresenta um Jesus revolucionário:
Nos evangelhos canônicos, Tomé é aquele que não acreditou, por não ter uma fé suficiente. Nos apócrifos, Tomé recebe ensinamentos secretos de Jesus e não os revela aos discípulos. Seu evangelho alternativo apócrifo traz duas novidades: a dimensão mística do cristão, influenciada pelo gnosticismo, e a visão revolucionária do projeto de Jesus. Por exemplo, a parábola do semeador também está em Tomé, mas não a sua interpretação, isto é, a alegoria.