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terça-feira, 10 de julho de 2012

Miguel Torga, José Saramago e o livro de Jó



O presente estudo pretende discutir alguns aspectos do polêmico Livro de Jó, do Antigo Testamento:
Quem tentou realmente Jó? 
Quem foi tentando no Livro de Jó?
 Quem é o vencedor e quem é  o perdedor no livro de Jó? 
Como Camões,  Miguel Torga e Saramago vêem o drama do sofrimento de Jó?

O Livro de Jó é  um dos livros mais sensivelmente filosóficos de todo o Antigo Testamento. Trata-se na realidade de uma espécie de enigma celestial. Deus provoca Satanás - que nesse livro é identificado como “um dos filhos de Deus” que freqüentava o céu com muita intimidade e liberdade - para uma disputa, onde os dois observariam tudo do camarote.

Jung, em Resposta a Jó, afirma que “Satanás talvez seja um dos olhos de Deus que perambula sem rumo certo pela terra” (JUNG, 2001, p. 16). Jó vai duas vezes para o paredão sem clemência alguma. Na primeira, Deus permite que Satanás tire tudo que ele tem: fazendas, filhos, servos, bens, e ele vence. Não satisfeito, Deus pela segunda vez o envia para a beira do abismo e permite que Satanás toque em sua carne, 
mas Jó não renega a Deus e triunfa novamente. A alma de Jó é oferecida numa bandeja para Satanás, há um pacto entre Deus e Satanás, e não seria exagero dizer que o mito de Fausto, muito antes de Marlowe, Shakespeare, Goethe, Tomas Mann, Paul Valéry, Guimarães Rosa, nasceu aqui, com uma diferença: Jó não sabia de pacto algum. 

Dezenas de livros e teses já foram escritas sobre Jó e a partir delas nos permitimos fazer algumas considerações. O Livro de Jó consiste em uma  teologia do sofrimento, pois nele, pela primeira vez, o caráter e a justiça de Deus são questionados por um pobre mortal que sofre muito além de suas forças. Em verdade o confronto não se dá entre Satanás e Jó, mas sim entre Deus e Jó, uma vez que Satanás é apenas um instrumento para realizar a vontade de Deus. Aqui se acentua o caráter destrutivo de Javé. Jó questiona a justiça divina e Deus não responde ao que ele pergunta, considera isso uma ousadia, sente-se embaraçado e o esmaga, mostrando não sua justiça, mas seu poder, com discurso arrasador.

Se Deus era onisciente, por que provocou Satanás? Afinal, nem ele pode ser tentado além do que pode resistir... Retomamos nossa idéia, anteriormente já exposta: essa aposta funda o pacto e o mito de Fausto, enfim, revela-nos um mundo regido por dois deuses orgulhosos, e a partir daí o caráter nada santo do Senhor Deus. 

Com o desenvolvimento dos estudos comparados entre Teologia e Literatura, muito se tem escritor sobre Deus, Madalena e o Diabo como personagens literários, sem desconsiderar a importância destes no campo de Teologia. Jó não poderia ficar de fora. Também sobre ele, um dos mais intrigantes personagens da Bíblia, muito se tem escrito. Iniciamos nossas considerações com Jack Miles que em seu livro Deus, uma Biografia, dedica um capítulo intitulado de Confronto para tratar da epopéia de Jó. 

Deus: o grande tentador e perdedor

Quando inicia seu livro, no qual faz uma leitura pós-crítica ou pós modena dos elementos míticos, ficcionais e históricos da Bíblia, Miles já  adverte: “É estranho dizer, mas  Deus não é nenhum santo.“ (MILES, 1997, p.17)  E é justamente isto que o autor tentará provar no capítulo dedicado a analisar o Livro de Jó. Miles cita Frost, para quem Jó se emancipa de Deus, cita Willian Safire que denomina Jó de primeiro dissidente.  Enumeraremos a seguir as várias teses defendidas por Miles acerca do livro de Jó:
 1) o que se questiona fundamentalmente no livro não é questão do pacto, mas sim o verdadeiro caráter de Deus;
 2) O livro do Jó constitui uma genuína teologia do sofrimento; 
3) o livro revela o lado obscuro do caráter de Deus, o lado demoníaco,  perverso e destrutivo de sua personalidade;
 4) o embaraço de Deus diante do sofrimento e das perguntas de Jó; que a justiça distributiva de Deus (os bons são recompensados e os maus são punidos) não funciona para Jó; 
5) Deus considera um ousadia de Jó pedir satisfação das atitudes divinas, e por isto no meio do redemoinho se enfurece; 
6) Se Gênesis revela o lado criador de Javé, Jó, revela seu lado destruidor – portanto o caráter de Deus é ambivalente; 
7) Deus é uma presa fácil para Satanás; 
8) O discurso de Deus é ineficaz, já que Jó quer saber sobre a justiça divina e Deus responde mostrando sua força e poder; 
9) É o Diabo que determina as ações de Deus, Deus não se arrepende explicitamente de suas atitudes, mas ao devolver em dobro os bens de Jó fica implícita uma certa (re)compensação e um certo arrependimento; 
10) na realidade Deus não vence a aposta, mas desiste dela. Citando Miles, “Apostar faz parte do esporte, e o Senhor foi tentado a fazer uma aposta com o inimigo da humanidade (...) Para nós basta saber que o Senhor foi suscetível às sugestões de um ser celestial hostil ao ser humano.“(MILES, 1997, p. 346)

Para Miles, o grande tentado não é Jó, mas sim Deus e o grande tentador não é Satanás mas Deus. Deus se transforma em tentado e tentador. Deus se deixa tentar por Satanás, Deus cai em sua armadilha e passa a abusar de Jó. Para o crítico, provocado por um ser demoníaco, o lado demoníaco do Senhor aflora de uma maneira espantosa e Deus se torna muito mais um adversário do homem que o próprio Satanás. Não satisfeito com o tempo normal da partida, na qual Jó vence, Deus aceita a prorrogação. Deus cai na armadilha do Adversário duas vezes. Acrescentamos que talvez Deus  iria até a decisão por pênaltis se fosse necessário. Para Miles “O mundo em que ele (autor do livro de Jó) imagina Jó sofrendo é  um mundo governado por um deus que faz apostas com o demônio, manipulado e controlado por um demônio. O lado demoníaco do Senhor Deus, que nunca esteve ausente, tem, de repende, um aliado demoníaco.“ (MILES, 1997, p. 347)

Miles alerta para o fato de que a tradição transformou o empate retórico entre Jó e Deus, numa desequilibrada vitória do Senhor, mas ressalta que esta vitória vem no pior momento, quando o Senhor é parceiro num jogo com o Diabo. Para o crítico, esta vitória é uma derrota. Termina suas considerações afirmando que Jó é inocente e não tem do que se arrepender. Deus sim tem do que se arrepender, já que foi longe demais ao se deixar, por orgulho, tentar por Satanás e abusar da paciência de Jó. Jó queria o Deus justo e não o Deus trovejador. O silêncio de Jó condena Deus. Miles afirma ainda que “... o diabo é personagem deste livro, personagem em cujas mãos o Senhor entregou o corpo de Jó, ao mesmo tempo entregando-se a si mesmo nas garras morais do Diabo.” (MILES, 1997, p. 361) O crítico termina esclarecendo que a inocência de Deus nunca mais será a mesma depois de Jó.

O bingo celestial
                                   
O escritor argentino Alejandro Maciel corrobora o pensamento de Miles em seu artigo misto de crítica e ficção intitulado Job, o la depravación de La Justicia. Maciel afirma que em Jó, a observação das leis divinas, não lhe garantiu uma vida ditosa, pelo contrário, em seu caso, esta observação mais do que correta das leis funcionou como uma armadilha, já que justamente isto, proporcionou uma aposta entre Deus e o Diabo. A seguir as principais colocações de Maciel: 
1) é muito estranho que a criatura perversa entre tranquilamente nos céus e faça apostas, negocie com o Altíssimo;
2) Satanás é identificado com um dos filhos de Deus e tinha franco acesso aos céus, este ambiente lhe era familiar; 
3) parece que a disputa no céu é eterna
4) Deus e o Diabo jogam um jogo de azar, esclareça-se que azar para Jó. Citando Maciel:

Para Maciel se alguém leu Deus, este alguém foi Jó e neste livro a justiça divina é completamente depravada já que Deus aceita jogar um jogo de azar com Satanás e Jó é o mais azarado de todos os homens da face da terra. Cousté em sua Biografia do Diabo complementa as idéias de Maciel ao apontar que Jeová não aparece surpreso com a presença de Satanás, pelo contrário observa uma extrema familiaridade entre os dois, companheiros de antigos e futuros tempos. Aponta o papel explícito do Diabo como Coadjutor divino e que seu papel é muito mais importante do que a degradação que o Cristianismo operou sobre sua imagem (COUSTÉ, 1996, p.158).

Satã – um revisor de Deus

A  vida do italiano Giovanni Papini (1881  - 1956) nos mostra a trajetória de um dos intelectuais mais polêmicos e contraditórios de seu tempo, tendo participado de diatribes de toda sorte, sido excomungado e tido dois livros no Index do Vaticano, e concluído seus dias, em 1956, como um católico devoto. Foi jornalista, critico, teólogo à sua maneira, poeta e novelista. Seu livro O Diabo foi tema de grandes discussões e controvérsias. Esse livro, publicado em 1953, apresenta na contracapa o subtítulo Apontamentos para uma futura Diabologia. Em sua obra, Papini elabora uma espécie de  Summa Diabológica.  Entre tantas outras idéias polêmicas, defende o Anjo Fulminante, afirma que os cristão nunca foram cristãos para com Lúcifer e que se o sacrifício de Jesus tivesse sido realmente suficiente, Lúcifer estaria perdoado. Sobre o livro de Jó apresenta o que ele denomina de três verdades; 
1) “Deus, na Sua infinita misericórdia conservava uma  paterna indulgência a Lúcifer“;
2) “Satã agia, num certo sentido,  como inspector, revisor  de Deus em meio dos homens e que Deus escutava benignamente os seus relatos, os seus juízos, as suas acusações“
; 3) “...o Senhor estava pronto, em determinados casos a conceder a Satã poderes iguais aos seus: tudo o que é possível está em teu poder. É um privilégio enorme, que o Pai concedeu só ao Filho quanto este encarnou na Terra.’’ (Pappini, p. 80-81). No meio de seu livro afirma que o Diabo é uma espécie de Anti-Deus, e se Deus se define como Eu sou o que sou, o Diabo deveria definir-se como Eu sou o que não sou. Eu sou o nada que sou.(p. 86-87)
                                               
Jung e sua Resposta a Jó: a onipotência contra o verme humano semi-esmagado.

Não poderíamos passar por Jó sem analisar Jung e sua Resposta a Jó. Já na introdução o autor adverte que o Livro de Jó pode reduzir o leitor a pedaços, alerta para o caráter inefável, transcendente e metafísica da Fé, do Numinoso, do mistério tremendo e que estes fundamentos emocionais são inacessíveis à razão crítica. Esclarece que analisa Jó, do ponto de vista de um médico que perscruta as profundezas da alma humana, portanto analisa o enredo subjetiva e emocionalmente. Elenco a seguir suas principais teses sobre Jó:
1) Deus, colérico e ciumento, mostra-se excessivo em suas emoções, portanto, amoral e selvagem; 
2) Jó é aniquilado e transforma-se não mais num homem, mas num verme rastejante; 
3) O Deus de Jó não se preocupa com julgamentos morais, possui os atributos do bem e do mal,  parece mais um Deus grego do que hebraico e está preocupado com poder e não com justiça;
 4) Deus em Jó não gosta de críticas;
5) Javé cede às tentações de Satanás com espantosa facilidade, deixa-se aliciar por Satanás, mostrando-se inseguro em relação à fidelidade de Jó; 
6) São completamente obscuros os reais motivos que levaram Deus a fazer uma aposta com o Satanás; 
7) o estreito parentesco existente de Deus e do Diabo; 
8) Deus dependendo da opinião um mísero vaso de terra: o humano Jó;
9) a batalha é monstruosamente desproporcional: a onipotência em meio à tempestade contra o verme humano esmagado e rastejante; 
10) Jó foi submetido a um ato de violência sobre-humana;
11) Ao final do episódio Jó passa a conhecer Deus mais do que Deus;
12) Jó é um espelho cruel para Deus; 
13) Não é Satanás quem perde a aposta, não é Deus quem vence, é Jó quem derrota Deus;
14) Deus precisa da opinião de Jó sobre ele,  precisa que Jó reconheça seu poder e esta importância dada a Jó o transforma quase num deus já que Jó é elevado à condição de juiz da divindade; 
15) Deus ao humilhar Jó o exalta e Jó ao exaltar Deus, o humilha.

Pó e cinza contra um Deus cósmico.

Moshe Greemberg no capítulo intitulado Jó, do livro Guia Literário da Bíblia afirma que Jó, ao mesmo tempo paciente e impaciente, é o porta-voz de todos os desgraçados da terra. Primeiramente analisa Jó do ponto de vista estrutural: a narrativa poética, a prosa e a poesia, o monólogo interior, os diálogos, a ironia e o sarcasmo dos discursos de Jó. Depois parte para análise da temática do livro. Explora as seguintes questões:
1) os sofrimentos de Jó resultam de uma aposta e ele não entende porque está sofrendo;
2) a completa falha da chamada justiça distributiva de Deus, já que aqui os bons não são recompensados, pelo contrário, sofrem além do humanamente possível; 
3) a linguagem é carregada de termos jurídicos e parece que Jó, Deus e Satanás se encontram num tribunal; 4) a assombrosa e desnecessária exibição de força por parte de Deus; 
5) os amigos de Jó são rabugentos e querem que ele peça perdão a Deus e isto multiplica os sofrimentos de Jó;
6) o sarcasmo, a cólera, a lamentação e o desespero se alternam e se mesclam no discurso de Jó; 
7) Jó vindica a justiça divina e Deus mostra-lhe sua força; 
8) Deus caprichosamente molesta Jó; 
9) Jó sofre tanto que se transforma num bipolar, seus discursos vão da euforia extrema ao clímax da depressão; 
10) em seus imensos solilóquios Jó quer saber onde está a sabedoria divina e não obtém resposta;
 11) ocorre neste livro uma aliança às avessas, é o homem acusando Deus e não mais Deus acusando 
Israel;
12) Jó quer que o litigante Deus apresente uma nota de acusação contra ele;
13) quando Deus fala, ele se defende; 
14) No discurso de Deus, diferentemente do Gênesis, o homem é um mero detalhe da criação, apenas uma criatura em meio a tantas outras e ao fazer isto o autor do livro rejeita o caráter antropocêntrico de restante das Escrituras;
15) Em seu discurso Deus aponta a impotência, a ignorância de Jó, que como um verme não pode questionar Deus nem o caráter exótico de toda criação
16) O que fica claro no discurso divino é que nenhum homem pode entender Deus, já que ele é inescrutável. Termina sua análise afirmando que Jó é pó e cinza e Deus é cósmico, inescrutável e imperscrutável.

Jó na Literatura Portuguesa: Camões, Miguel Torga e Saramago.

O primeiro poeta português a mencionar Jó em seus poemas foi o grande vate Camões (1520-1580), escritor de Os Lusíadas, de centenas de sonetos, além da obra teatral. Mantendo constante diálogo com a Bíblia em vários de seus sonetos, reapropria-se da matéria bíblica, quer seja parodiando, quer seja dando uma nova luz ao episódio bíblico. Camões não poderia ter deixado Jó de fora de sua lírica. O soneto tem forma fixa que se caracteriza pela extrema concisão.

O dia em que nasci moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar;
Não torne mais ao Mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o Sol padeça.
A luz lhe falte, o Sol se [lhe] escureça,
Mostre o Mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.
As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.
Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao Mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!
                   (CAMÕES, 1980, p. 84)

Camões cita textualmente no primeiro verso do Soneto a primeira frase do discurso de Jó 3:3 - Pereça o dia em que nasci. Vitor M. Aguiar e Silva em sua obra Maneirismo e Barroco na poesia Lírica Portuguesa, afirma que “Nenhum poeta, porém, logrou exprimir como Camões os paradoxos da dor que explode em gritos, a angústia de uma existência despedaçada, a melancolia de um viver sem lume de esperança.” (1971, p. 275). E quem mais Camões poderia tomar como exemplo de dor e angústia do que Jó? O soneto sintetiza o discurso desesperado daquele que teve a vida mais desgraçada que jamais se viu.

Miguel Torga (1907-1995), pseudônimo de Adolfo Correia Rocha foi um dos grandes escritores portugueses do século XX. Estudou em seminário, tinha familiaridade com os textos bíblicos e acabou se formando em medicina. Colaborou na  Revista Presença, que agregava em torno de si  escritores modernistas de Portugal, depois rompeu com os modernistas, foi preso várias vezes por suas idéias políticas.  De sua imensa obra de caráter humanista nos interessa O outro livro de Jó publicado em 1936. Os capítulos se dividem em Lamentações: Primeira Lamentação, Segunda Lamentação, etc. Torga concede a Jó o direito se lamentar, sem tem que dialogar ou replicar com ninguém:
                                             
Segunda Lamentação

Por tão pouco
Mudaste o saibo de Pão e a cor doVinho
E cobriste o meu caminho
De tojos e de sembras de pavor!
                    ....
Por tão pouco
Dos bens que tinha nem um só deixaste, nem um só!...
Por tão pouco
Com tua ordem e por teu orgulho,
tocou-me Satanaz com sua mão;
e diante de ti as chagas supuraram, 
e as moscas me devoraram,
e os meus gritos te chamaram
em vão!...
                 ....
Por tão pouco
Sai de minhas cinzas o que sou:
O Homem do Bem e do Mal
Que nunca pôde valer
Ao esqueleto descarnado
Que está no chão desenhado
A apodrecer...
Terceira Lamentação
Injustamente, Senhor, injustamente
A fúria do teu açoite
Me corta pela raiz.
                  ....
Eu ainda não era o Homem,
e tu já eras o Deus...
                 ....
Não tenho culpa de a Obra
Cair, por causa da Cobra
Das tuas mãos sem firmeza
                 ...
As Lamentações terminam com Mensagem:

Mensagem

Agora, que eu dei provas de humildade
Cantando o teu corpo velho,
agora, qeu te beijei,
que me despi no teu quarto,
agora
não ouças a minha voz
porque não falo contigo...

Humanista radical, Torga defende o homem como criação máxima da natureza. Para Torga os deuses são indignos de qualquer louvor, se há algum deus que merecer ser engrandecido este deus é o homem.

Saramago em seu Evangelho segundo Jesus Cristo, faz além da revisão dos Evangelhos, uma releitura profana e carnavalizadora de diversos episódios do Antigo Testamento.  Sobre Jó, na mesma direção dos escritores Camões e Miguel Torga, dos críticos Miles e Maciel, o autor ironicamente revê a trajetória do miserável leproso:
“... ou o Senhor já teria mandado castigo, sem pau nem pedra, como é seu costume, haja vista o caso de Job, arruinado, leproso, e mais sempre havia sido varão íntegro e recto, temente a Deus, a sua pouca sorte foi ter-se tornado em involuntário objeto de uma disputa entre Satanás e o mesmo Deus, cada qual agarrado às suas idéias e prerrogativas. E depois admiram-se que um homem desespere e grite, Pereça o dia em nasci e a noite em fui concebido, converta-se ele em trevas, não seja mencionado entre os dias do ano nem se conte entre os meses, e que a noite seja estéril e não se ouça nela nenhum grito de alegria, é verdade que a Job o compensou Deus restituindo-lhe em dobro o que em singelo lhe tirara, mas aos outros homens, aqueles em nome de nunca escreveu nenhum livro, tudo é tirar e não dar, prometer e não cumprir.” (SARAMAGO, ESJC, p. 133-134)

Observamos que o discurso do narrador saramaguiano cita textualmente o discurso bíblico de Jó 3:3. Parece que os inescrutáveis desígnios de Deus apontados pelos teólogos não foram bem entendidos nem pelos críticos aqui citados, nem pelos autores de literatura portuguesa: Camões, Torga e Saramago.

O imenso discurso de Deus de nada serve. O silêncio de Jó é o silêncio dos vencedores e o silêncio de Deus é o silêncio dos perdedores. A partir de então Deus não fala mais no restante do Antigo Testamento. No meio da Bíblia tinha uma pedra, tinha o Livro de Jó. No meio do caminho de Jó ele topou com uma pedra, ou melhor, uma montanha cósmica: Deus. Se até o Livro do Jó o homem buscava Deus nas montanhas, em Jó, Deus desce a terra no meio do redemoinho para buscar o homem. Mais no meio do caminho de Deus, também tinha uma montanha: Jó. Apesar de todo o discurso defensivo de Deus no meio do redemoinho ao final permanece um silêncio inquietador: o silêncio de Deus, o silêncio  de Jó, o silêncio de todos nós...

Referências Bibliográficas:
[1] AGUIAR E SILVA, Vitor M.  Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa. Coimbra:
Centro de Estudos Românicos, 1971.
[2] ALTER, Robert &  KERMOND Frank. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. Jó. In: Guia Literário da Bíblia. São Paulo: UNESP, 1997.
[3] CAMÕES – Lírica, Redondilhas e Sonetos. Introd. Geir Campos. Rio de Janeiro: Ediouro,
1980.
[4] COUSTÉ, Alberto. Biografia do Diabo – O Diabo como a sombra de Deus na História. Trad.
Luca Albuquerque. Rio de Janeiro: Record/ Rosa dos Tempos, 1996.
[5] GRENBERG, Moshe. Jó. In: Guia Literário da Bíblia. São Paulo: UNESP, 1997.
[6] JUNG, C. G. Resposta a Jó. Trad. Pe. Dom Matheus  Ramalho Rocha. 6a. Ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
[7] MACIEL, Alejandro. Job o la depravación de la justicia. In:
http://bibliaficcion.blogspot.com/2007/04/job-o-las-mortificaciones-del-justo.html
[8] Acesso em 02/06/2008
[9] MILES, Jack.  Confronto. In:  Deus, Uma biografia. Trad. José Rubens Siqueira.  São Paulo:
Companhia das Letras, 1997.
[10]
[11] NEGRI, Antonio. Jó, a força de um escravo. Trad. Eliana Aguiar. São Paulo: Record,
2007.
[12] PAPINI, GIOVANNI. O Diabo – apontamentos para uma futura Diabologia. Trad. Fernando Amado. Lisboa: Livros do Brasil, s/d
[13] QUEIROZ, Julio de. O Preço da Madrugada. Florianópolis: Insular, 2007.
[14] SARAMAGO, José. O Evangelho Segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
[15] SOUSA, Fewrimar Dantas. O Livro de Jó nas poética de Hilda Hilst e Adélia Prado. In:
http://www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=2336
[16] Acesso em 02/06/2008
[17] TORGA, Miguel. O Outro livro de Job. 4a. edic. Coimbra, 1958.
Autor(es) Salma, FERRAZ, Profa. Dra. em Literatura Portuguesa, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Departamento de Língua e Literaturas Vernáculas, membro da ALALITE, Associação Latino Americana de Literatura e Teologia, Coordenadora do Nutel – Núcleo de estudos comparados entre Teologia e Literatura com sede na UFSC.
Email:  salmaferraz@gmail.com.