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sábado, 24 de setembro de 2011

Karl Barth e seu legado para o Liberalismo Teológico


Em 1919, um jovem pastor de uma pequenina igreja da Suíça escreveu um comentário tão radical que certo escritor disse que Karl Barth pegou uma carta escrita em grego do primeiro século e transformou em uma carta urgente para o homem do século vinte. Um teólogo católico disse que esse comentário aos Romanos foi uma revolução copernicana na teologia protestante que acabou com o predomínio do liberalismo teológico. Ele foi, de fato, uma bomba que Barth lançou no cenário teológico contemporâneo.

Diz-se da segunda versão do comentário aos Romanos, totalmente revisada e publicada em 1921, que ela foi ainda mais revolucionária que a primeira. Porém, de qualquer forma, 1919 tem sido para muitos o ponto de partida da teologia contemporânea.

A influência da obra de Karl Barth nessa nova era da teologia é enorme. Ele transformou a teologia do século vinte em teologia da crise. Foi ele quem dominou o ambiente teológico, formulou os problemas e apresentou as hipóteses de maior relevância, e desde então tem estado no centro da teologia moderna. Não há nenhuma dúvida de que o pensamento de Barth dominou o pensamento teológico do seu tempo. Ele produziu um impacto tão grande na teologia protestante, que todo teólogo do nosso século que quiser estudar teologia a sério, pode se opor à sua teologia ou acolher suas idéias, mas não pode jamais ignorá-la se quiser conhecer a situação teológica contemporânea.

O que havia nesse comentário do pastor Barth que sacudiu os alicerces teológicos do século vinte? Quais foram os princípios que Barth apresentou e que se converteram no legado de uma nova era teológica? Harvie M. Conn, aluno do Dr. Cornelius Van Til, esboça alguns princípios que emanam do comentário de Karl Barth aos Romanos e que parecem ter desempenhado o papel mais influente na formação das novas variantes teológicas. Esses princípios serão abordados nos tópicos a seguir.

A revolta teológica contra o liberalismo teológico foi uma das mais notórias características da teologia barthiana.

Barth havia aprendido teologia aos pés de dois grandes teólogos liberais, à saber: Harnack e Herrmann. O Jesus do mentor de Barth, Harnack, não era o filho de Deus único e sobrenatural, mas a encarnação do amor e dos ideais humanistas. A Bíblia do mentor de Barth, Herrman, não era a Palavra infalível de Deus, e sim um livro extraordinário, ainda que ordinário, cheio de erros e que exigia uma crítica radical para encontrar a verdade. A medida de toda a verdade era a experiência, o sentimento. A teologia desses dois mestres e também a de Barth era o Idealismo teológico, caracterizado por uma profunda veia de pietismo e de preocupação pela prática da experiência religiosa cristã. Em 1919, e com muito mais força em 1921, Barth se encarregou de repudiar grande parte desse liberalismo clássico.

A primeira guerra mundial e seus horrores acabaram por soterrar o idealismo teológico liberal. A culta Alemanha, a liberal Inglaterra e a civilizada França lutavam como animais ferozes. Nesse ínterim, os mestres liberais de Barth se uniram com outros teólogos para declarar seu apoio à Alemanha, o que demonstrou que eles eram mestres de uma religião atada a uma cultura, e não a Deus. O comentário de Barth aos Romanos surgiu então como repúdio de seus antigos mestres liberais. O liberalismo fazia de Deus algo imanente ao mundo; Barth se opôs a isso e apresentou Deus como “Totalmente Outro”. O subjetivismo do liberalismo do século 19 havia colocado o homem no lugar de Deus; Barth exclamou: “Seja Deus, e não o homem!”. O liberalismo havia exaltado o uso aculturado da religião; Bart condenou a religião como o pecado máximo. O liberalismo edificou a teologia sobre a base da ética, Barth quis edificar a ética sobre a base da teologia.

O comentário de 1921 de Barth propôs uma nova idéia de revelação.

Em oposição ao antigo liberalismo, Barth enfatizou a necessidade que o homem tem da revelação, e chamou suas idéias de Teologia da Palavra de Deus. Barth, porém, insistiu na distinção entre a Bíblia e a Palavra de Deus. Este era seu legado kantiano.

Segundo Barth, pode-se ler a Bíblia sem ouvir a Palavra de Deus. A Bíblia é simplesmente um livro, mas, pelo menos, um livro através do qual nos pode chegar a Palavra de Deus. A relação entre Deus e a Bíblia é real, porém indireta. A Bíblia, diz Barth, “é a Palavra de Deus enquanto Deus fala por meio dela [...] a Bíblia se transforma em palavra de Deus nesse momento”. Para ele, até que a Bíblia se torne real para nós, até que ela nos fale da nossa situação existencial, ela não é Palavra de Deus. Esse é o conceito barthiano de revelação.

A dialética de Barth, ou teologia do paradoxo.

O comentário de Barth também introduziu um novo método para explicar a teologia, a dialética. Esse termo ficou rapidamente associado à obra de Barth, ainda que o método tenha sido tomado por empréstimo do teólogo existencialista Soren Kierkgaard. Kierkgaard havia dito que toda afirmação teológica era paradoxal, não podendo ser sintetizada. O homem devia somente conservar ambos os elementos do paradoxo. É esse ato de sustentação do paradoxo que Kierkgaard chama de “salto de fé”.

Tal conceito influenciou muito a teologia barthiana, de maneira que quando preparava o comentário aos Romanos, Barth afirmava que “enquanto estamos na terra, não podemos fazer outra coisa em teologia a não ser utilizar o método de afirmação e contra-afirmação. Não nos atrevemos a pronunciar em forma absoluta a palavra definitiva [...] O paradoxo não é acidental na teologia cristã. Ele pertence, em certo sentido, ao coração do pensamento doutrinário”. A própria natureza da revelação, segundo Barth, é um paradoxo: Deus é o oculto que se revela; conhecemos a Deus e conhecemos o pecado; todo homem é escolhido e também reprovado em Cristo; o homem é justificado por Cristo, mas ainda é pecador. Certo comentarista observou que, segundo a teologia dialética de Barth, a revelação que vem de cima para o homem, ao encontrar a contradição do pecado e finitude humana, só pode ser assimilada pela mente humana como sendo um paradoxo.

O comentário de Barth veio reafirmar a transcendência absoluta de Deus.

Um dos pressupostos de Barth, que também é um legado kantiano, é que Deus é sempre sujeito, nunca objeto. Deus não é simplesmente uma unidade no mundo dos fenômenos; ele é infinito e soberano, “Totalmente Outro”, e só pode ser conhecido quando nos fala. “Ele não pode ser explicado como qualquer outro objeto pode ser, apenas podemos nos dirigir a Ele [...] Por esta razão, não cabe à teologia medí-lo em uma forma de pensamento direto ou unilinear”. Não podemos falar a respeito de Deus. Apenas falamos a Deus. Segundo Barth, a própria natureza de Deus exige que as afirmações que lhe dirigimos sejam revestidas de contradição: “Não podemos considerá-lo perto, a não ser que o consideremos longe”.

Sem dúvida o grande tema de Barth, em oposição declarada ao liberalismo, foi a “infinita diferença qualitativa” entre eternidade e tempo, céu e terra, Deus e o homem. Não se pode identificar Deus com nada no mundo, nem sequer com as palavras da Escritura. Deus chega ao homem como a tangente que toca o círculo, mas na realidade não o toca. Deus fala ao homem como a bomba explode na terra. Depois da explosão, tudo o que resta é uma cratera abrasada no terreno, e essa cratera é a igreja.

O comentário de Barth também demarcou a fronteira entre a história e a teologia.

A teologia do século dezenove se dedicou a procurar o Jesus histórico por detrás do Cristo sobrenatural da Bíblia. Os liberais clássicos como o professor de Barth, Harnack, se dedicaram a buscar nos evangelhos – os quais eles condenavam como não-confiáveis – os fatos históricos sobre Jesus. Barth asseverou que essa busca é um a busca sem importância, pois, segundo ele, a revelação não entra na história, apenas a toca como uma tangente toca um círculo. Segundo Barth, não há nada na história sobre o que possamos basear a fé. A fé é um vazio preenchido não pela história, mas pela revelação.

Profundamente influenciado pelos conceitos de história de Kierkgaard e de Franz Overbeck, Barth dividiu a história em dois níveis: Historie e Geschichte. Ainda que ambos os termos possam ser traduzidos por história, no alemão, a conotação que essas duas palavras têm é bem diferente. Historie é a totalidade dos fatos históricos do passado, podendo ser comprovada objetivamente. Geschichte se ocupa daquilo que une essencialmente, que exige algo de mim e requer meu compromisso. Segundo Barth, a ressurreição de Jesus pertence ao âmbito de Geschichte, não de Historie. Para ele, o âmbito da Historie de nada vale para o crente. Jesus deve ser confrontado no âmbito de Geschichte.

Mais uma vez a influência do pensamento de Immanuel Kant sobre a teologia de Karl Barth, principalmente no que concerne ao mundo dos fenômenos e dos números é muito grande, podendo-se até dizer que a teologia contemporânea tem sua raiz em Konigsberg, na Prússia. Ao longo do desenvolvimento da teologia contemporânea, as idéias kantianas de fenomenal e numenal “volta e meia” reaparecem com uma nova roupagem. Alguns tomam o tema e o ampliam, porém sua influência continua sendo grande a ponto de podermos designar o século dezoito e o pensamento de Kant como protótipo da teologia contemporânea.

Objeções à teologia dialética de Karl Barth.

Há, sem dúvida, algumas críticas que se pode fazer à obra de Barth. Ele mesmo reconheceu alguns de seus excessos e poliu boa parte dos argumentos que enfatizou a princípio, e até certo ponto, pode-se dizer que ele suavizou algumas idéias mais incisivas. O que passo a expor agora, são algumas críticas que se podem fazer ao pensamento de Barth.

Em primeiro lugar, ainda que as idéias de Barth representem uma revolta contra o liberalismo clássico, suas idéias podem ser chamadas de novo liberalismo. Barth não conseguiu se livrar do ponto de vista crítico liberal das Escrituras. Por causa dos seus pressupostos liberais, Barth não aceita a inerrância da Bíblia, chegando mesmo a afirmar que toda a Bíblia é um documento humano falível e que buscar partes infalíveis nas Escrituras é “simples capricho pessoal e desobediência”. A inerrância das escrituras é uma das diferenças cruciais entre o liberalismo e o cristianismo ortodoxo, e o posicionamento de Barth nada mais é que uma opção por ficar em cima do muro.

Sua idéia de revelação, em última instancia, é puramente subjetiva. Para Barth, a diferença entre a Bíblia como meramente um livro e a Bíblia como a Palavra de Deus depende exclusivamente da reação humana frente a este livro. Embora em uma atitude de revolta contra o liberalismo ele tenha exclamado: “Seja Deus e não o homem”, na prática, dentro da sua teologia dialética, o homem é entronizado no centro da experiência religiosa.

O resultado final da dialética de Barth é a destruição da verdade objetiva. Se toda comunicação histórica e toda experiência direta com Deus se encaixa em uma concepção pagã de Deus, como poderemos aproximar-nos da verdade sobre Deus? Também a sua insistência em descrever Deus como “Totalmente Outro” faz de Deus um ser indescritível. Como Deus não é um objeto no tempo e no espaço, e visto que a “inescrutabilidade e recondidez formam parte da natureza de Deus”, o homem não pode conhecê-lo diretamente, afirma ele. A questão é: se Deus é assim tão indescritível e insondável, de que maneira o homem pode conhecê-lo?

A separação que Barth faz da Historie e da Geschichte, traz à tona a problemática concernente à historicidade da obra redentora de Cristo como fundamento do cristianismo. Ela argumenta na tradição de Nietzche e Overbeck, separando o cristianismo da história, e ao fazê-lo, acaba por solapar a base do cristianismo. É claro que o propósito de Barth foi tirar do liberalismo o monopólio quanto ao método de interpretação, mas ao fazê-lo, também privou o cristianismo do seu lugar na história.

Ao que vemos, embora a teologia de Barth tenha sido responsável por uma prática religiosa em que os valores evidenciam a religiosidade do cristão, ele jamais conseguiu se libertar completamente do liberalismo teológico de seus mestres Herrmann e Harnack. Ele revoltou-se contra o liberalismo teológico, argumentou contra ele, mas não pode livrar-se de seus pressupostos. Tal como Kant, Barth confina Deus ao mundo dos números e apresenta a dialética – a teologia do paradoxo – como sendo à única teologia possível. Ele exclui a razão a priori e deixa a porta fechada à percepção humana.

Sua teologia é de suma importância para o século vinte e, de fato, quase todo o pensamento teológico moderno até a década de setenta envolverá a perspectiva de Barth. Podemos aceitar seus pressupostos ou acirrar-nos contra ele, mas nenhum teólogo de nossa época poderá jamais ignorar a teologia dialética de Karl Barth e sua influência no cenário teológico contemporâneo.