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domingo, 10 de junho de 2012

A metafísica do Deus "encarnado": O Desenvolvimento da cristologia




De Jesus a Cristo



Um outro ponto em relação ao qual existe amplo acordo entre os estudiosos do Novo Testamento é ainda mais importante para compreender o desenvolvimento da cristologia. Ele consiste no fato de que o Jesus histórico não reivindicou para si o atributo da divindade, atributo este reivindicado para ele pelo pensamento cristão posterior: ele não se compreendeu como Deus, ou o Deus Filho encarnado. A encarnação divina, no sentido em que a teologia cristã usou a idéia, requer que um elemento eternamente preexistente da divindade, o Deus Filho ou o Logos divino, tenha se encarnado como um ser humano. Mas é extremamente improvável que o Jesus histórico tenha concebido a si próprio de maneira semelhante a esta. A bem da verdade, ele provavelmente teria rejeitado a idéia como blasfema; um dos ditos a ele atribuídos reza: “Por que me chamas bom? Ninguém é bom senão um só, que é Deus” (Mc 10,18).

É claro que nenhuma afirmação sobre o que Jesus disse ou não disse, pensou ou não pensou, pode ser feita com certeza. Mas a evidência existente levou os historiadores do período a concluir, com um grau impressionante de unanimidade, que Jesus não teve a pretensão de ser Deus encarnado. Hoje em dia existe uma concordância tão geral a esse respeito que umas poucas citações representativas, mesmo tomadas de autores que afirmam uma cristologia ortodoxa, serão suficientes para o nosso presente propósito. Nessa linha, o falecido Arcebispo Michael Ramsey, que era um erudito do Novo Testamento, escreveu: “Jesus não reivindicou divindade para si” (Ramsey 1980, 39). Um contemporâneo seu, o especialista em Novo Testamento C.F.D. Moule, disse: “Toda e qualquer defesa de uma cristologia ‘desde cima’ que dependesse da autenticidade das supostas reivindicações de Jesus acerca de si próprio, em especial no Quarto Evangelho, seria efetivamente precária” (Moule 1977, 136). Em um estudo importante das origens da doutrina da encarnação, James Dunn conclui: “na tradição mais antiga sobre Jesus, não havia reais evidências daquilo que poderia razoavelmente ser chamado uma consciência da divindade” (Dunn 1980, 60). Além disso, Brian Hebblethwaite, defensor resoluto da tradicional cristologia niceno-calcedoniana, admite: “já não é possível defender a divindade de Jesus Cristo fazendo referência às reivindicações de Jesus” (Hebblethwaite 1987, 74). Indo mais além, David Brown, outro leal defensor de Calcedônia, diz: “há boas evidências sugerindo que [Jesus] jamais viu a si mesmo como um objeto adequado de culto” e é “impossível basear qualquer alegação em favor da divindade de Cristo em sua consciência, uma vez que abandonemos o retrato tradicional refletido numa compreensão literal do Evangelho de São João” (David Brown 1985, 108).

Essas citações (que poderiam ser multiplicadas) refletem uma transformação notável resultante do moderno estudo histórico-crítico do Novo Testamento. Até aproximadamente cem anos atrás (como ainda hoje, de forma muito difundida, em círculos não instruídos) tinha-se por certo que a crença em Jesus como Deus encarnado firmava-se com toda segurança sobre seu próprio ensinamento explícito: “Eu e o Pai somos um”; “Aquele que me viu, viu o Pai”; e assim por diante. Agora, porém, para citar um dos mais recentes defensores de uma cristologia calcedoniana, Adrian Thatcher: “dificilmente haverá um estudioso competente do Novo Testamento que esteja preparado a defender a concepção de que as quatro ocorrências do uso absoluto de “Eu sou” em João, ou mesmo a maior parte dos outros usos, possam ser historicamente atribuídas a Jesus” (Thatcher 1990, 77).

Às vezes, embora nem sempre, esse reconhecimento é associado à idéia de que Jesus se tornou o Cristo ao ser ressuscitado por Deus. Esta idéia, por sua vez, vincula-se a uma linha adocionista muito antiga do pensamento neotestamentário. Como diz James Dunn: “a pregação cristã primitiva parece ter considerado a ressurreição de Jesus como o dia de sua designação à filiação divina, como o evento pelo qual ele se tornou Filho de Deus” (Dunn 1980, 36). Assim, a versão lucana do discurso de Pedro em Pentecostes refere-se a Jesus como a “um homem aprovado por Deus diante de vós com milagres, prodígios e sinais, os quais Deus realizou por intermédio dele entre vós” (At 2,22), e diz: “A este Jesus Deus ressuscitou, do que todos nós somos testemunhas. (...) Esteja absolutamente certa, pois, toda a casa de Israel, de que, a este Jesus que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo” (2,32.36). Além disso, Paulo fala de Jesus como de um ser humano (“veio da descendência de Davi de acordo com a carne”) que foi “poderosamente designado [horisthentos] Filho de Deus, segundo o espírito de santidade, pela sua ressurreição dos mortos” (Rm 1,3-4). Nesta cristologia, uma das mais antigas que já existiram, o ser humano Jesus foi elevado a ocupar um papel único e extremamente exaltado (embora não tenha sido elevado à condição divina) logo depois de sua morte.

Tudo isso exclui a forma de apologética outrora popular, segundo a qual quem pretende ser Deus deve ser ou louco, ou mau, ou Deus; e já que Jesus evidentemente não era nem louco nem mau, deve ter sido Deus (e.g. Lewis 1955, 51-2). Com o reconhecimento de que Jesus não pensou dessa forma a seu próprio respeito, a discussão cristológica moveu-se daquela que outrora se supunha ser a rocha firme da própria reivindicação de Jesus em direção ao terreno, muito menos certo, das tentativas eclesiais subseqüentes de formular o sentido de sua vida.

Vale a pena fazer uma pausa para refletir sobre a magnitude dessa mudança. Pelo menos do século V até o final do século XIX os cristãos geralmente acreditavam que Jesus se autoproclamara Deus Filho, a segunda pessoa de uma Trindade divina, que vivia uma vida humana; e, conseqüentemente, seu discipulado incluía esta crença como um artigo central da fé. Mas essa suposta autoridade dominical dissolveu-se sob o impacto do exame histórico. Até um período comparativamente recente, este resultado da pesquisa do Novo Testamento teria causado um choque indescritível em círculos eclesiásticos; e numa época tão tardia como o século XVI, em países protestantes, e como o século XVII, em países católicos, aqueles que o propusessem teriam estado sob grave perigo de serem executados por heresia. Na verdade, muitos dos resultados da pesquisa acadêmica dos séculos XIX e XX provavelmente teriam sido considerados demoníacos pelos líderes da Igreja em Nicéia e Calcedônia (2), ou por Tomás de Aquino e pelos outros teólogos medievais, ou por Lutero e Calvino e pelos outros reformadores, ou mesmo pelos cristãos em geral até apenas há algumas gerações atrás – como de fato muitas vezes ainda o são entre a grande maioria dos cristãos que continuam não tendo familiaridade com o estudo moderno da Bíblia. Esta ignorância por parte dos membros da Igreja, que normalmente não perturba seus pastores, ainda torna difícil discutir questões teológicas básicas na Igreja de maneira aberta e genuinamente reflexiva.

Hoje, muitos teólogos cristãos – mas não mais quase todos, como em gerações anteriores – continuam a aderir ao dogma niceno-calcedônio. Agora, porém, depois que seu fundamento centenário desmoronou, eles tiveram de encontrar uma nova base para ele. Conseqüentemente, concluíram que a doutrina da encarnação não requer o conhecimento ou consentimento do próprio Jesus histórico. Com efeito, David Brown argumenta: “é incoerente supor que uma mente humana poderia estar consciente de sua própria divindade” (Brown 1985, 109 e cap. 6). E, respondendo ao “novo paradoxo do Deus encarnado que não sabe que é Deus encarnado”, Brian Hebblethwaite protesta que “referir-se com indiferença à noção de que Jesus era Deus mas não tinha consciência deste fato é o mesmo que não captar a finalidade da cristologia quenótica” (Hebblethwaite 1979, 90). Em outras palavras, na encarnação o Deus Filho auto-esvaziou-se dos atributos da divindade a tal ponto que perdeu a consciência de ser Deus. Precisamos agora (nos capítulos 6 e 7) considerar com todo cuidado a viabilidade ou inviabilidade dessa idéia.

No entanto, supondo por um instante – e para favorecer a argumentação – que a idéia de um Deus encarnado que ignora sua própria divindade pode tornar-se inteligível, levando a implicações aceitáveis, a nova pergunta será: como é possível que a Igreja saiba algo de tamanha importância a respeito de Jesus, algo que ele mesmo não sabia?

Esta pergunta evocou quatro tipos diferentes de resposta, que às vezes aparecem separadamente mas que, mais freqüentemente, surgem em várias combinações.

O primeiro tipo de resposta envolve uma limitação do reconhecimento de que Jesus não tinha consciência de sua própria divindade e tampouco a incluiu em seus ensinamentos. Esta resposta sustenta que ele estava implicitamente consciente dela em sua relação singularmente íntima e filial com o Pai celeste, e que ele a ensinou implicitamente por meio de suas ações, particularmente ao ab-rogar a lei de Moisés e ao perdoar pecados. Portanto, ao construir sua doutrina da encarnação, a Igreja estava apenas explicitando aquilo que estivera implicitamente embutido nos fatos desde o princípio (3). Dada a natureza do caso, uma consciência implícita não é suscetível de ser objeto de prova ou contraprova, e o ato de afirmá-la ou negá-la tem de ser instigado por um posicionamento teológico mais amplo. Nessa linha, o erudito católico-romano Gerald O’Collins admite “as dificuldades inerentes à sondagem do conhecimento e da experiência interior de qualquer ser humano – especialmente de um que viveu há quase dois mil anos atrás”, e pergunta: “Quem de nós é suficientemente sábio ou santo para falar com uma grande convicção acerca do conhecimento e da mente de Jesus? (O’Collins 1983, 184-5). Quem será de fato? E não obstante, a despeito disso, e mesmo numa postura de desafio a isso, O’Collins sente-se capaz de afirmar com toda confiança “uma autoconsciência e presença de si na qual [Jesus] estava intuitivamente consciente de sua identidade divina” (185)!

Também James Dunn supõe uma tal consciência implícita ao dizer: “Não podemos reivindicar que o próprio Jesus acreditou ser o Filho de Deus encarnado; mas podemos reivindicar que a doutrina a esse respeito, assim como se exprimiu no pensamento cristão do final do primeiro século, foi, à luz da totalidade do evento de Cristo, uma reflexão apropriada sobre a percepção do próprio Jesus quanto à sua filiação e missão escatológica, bem como um detalhamento da mesma” (Dunn 1980, 60). Esta frase merece atenção, construída que foi, com todo cuidado, por um estudioso proeminente do Novo Testamento e crente decidido na fórmula de Calcedônia. Observa-se, em primeiro lugar, que ela não aspira ir além da noção pré-trinitária do “Filho de Deus” e chegar à idéia, esta sim propriamente trinitária, do “Deus Filho”. Nota-se também que a frase faz uso da noção altamente elástica do “evento Cristo”, que precisamos considerar a seguir. Mas, passando ao largo destes pontos, o que foi “a percepção do próprio Jesus quanto à sua filiação”? Foi a percepção ressaltada pelo uso da sua expressão abba, “pai querido”. Embora se discuta o significado preciso que tinha abba naquela época – e James Barr recentemente defendeu com vigor a idéia de que a expressão não possuía, de modo especial, o sentido íntimo que tantas vezes lhe foi atribuído, mas simplesmente significava “pai”, usada por crianças ou por adultos (Barr 1988a, 1988b) –, e embora também se discuta a freqüência com que ocorria esta expressão no discurso de outros carismáticos judeus (Dunn 1980, 26-7), não pretendo oferecer resistência à concepção, amplamente aceita, de que o uso da palavra por Jesus constituiu uma contribuição genuinamente nova à espiritualidade ocidental. Considerar Deus como nosso Pai celeste não era de maneira nenhuma algo novo, mas Jesus parece ter dotado a idéia de uma centralidade e poder bastante distintos, e dessa forma ter iniciado, através de seu uso, um novo desenvolvimento dentro daquilo que viria a ser o cristianismo. Pois na Oração do Senhor ele ensinou seus discípulos a dirigir-se a Deus desse mesmo modo familiar. Paulo posteriormente interpretou a prática no sentido de que ela envolvia uma incorporação mística ou metafísica na vida do Cristo ressuscitado. Mas nisso, como geralmente o fazia, Paulo acomoda Jesus à sua própria teologia, tendo pouca consideração com a figura histórica. Contudo, é com certeza inteiramente admissível que a consciência de Jesus acerca do Pai celeste tenha sido muito mais vigorosa e intensa do que a de qualquer um de seus contemporâneos. Temos porém de acrescentar, e mesmo enfatizar, que experimentar Deus como Pai celeste não é o mesmo que experimentar a si mesmo, de maneira única, como o Deus Filho, segunda pessoa de uma Trindade divina.

De mais a mais, qual era a “missão escatológica” de Jesus referida por Dunn? Não era seu chamamento para ser o último profeta, um ser humano que falaria em um momento crucial como mensageiro de Deus? O papel do último profeta era único por não poder voltar a repetir-se, de sorte que “Jesus teve a sensação de uma unicidade escatológica em sua relação com Deus” (Dunn 1980, 28). Mas também isso está bem longe da possibilidade de Jesus ter pensado ser, ele mesmo, Deus (i.é, o Deus Filho).

Assim sendo, considerar esses dois elementos – o uso jesuânico da expressão abba e sua mensagem escatológica – como suficientes para conferir uma autoridade dominical implícita à crença da Igreja na divindade de Jesus é caminhar sobre um terreno bastante movediço.

O que fazer, porém, da sugestão de que ao “ab-rogar a lei de Moisés” e ao “perdoar pecados” Jesus estava implicitamente reclamando para si uma autoridade divina?

Jesus de fato ab-rogou a Torá, e de fato fez o que somente Deus pode fazer ao perdoar pecados? Como a literatura demonstra, aqui há muito espaço para desacordo entre os pesquisadores. Após um exame cuidadoso dos textos, E.P. Sanders diz: “Encontramos uma situação em que Jesus efetivamente exigiu a transgressão da lei: a exigência ao homem cujo pai morrera [“Segue-me, e deixa aos mortos o sepultar seus próprios mortos”, Mt 8,22). Afora isso, o material nos evangelhos não revela nenhuma transgressão da parte de Jesus. E, com uma única exceção, segui-lo não implicou transgressão por parte de seus seguidores. Por outro lado, existem claras evidências de que ele não considerou a dispensação mosaica da lei como final e absolutamente vinculatória”; e Sanders sugere, como razão para isso, que “foi a sensação que tinha Jesus de estar vivendo na virada de uma era para outra que lhe permitiu pensar que a lei mosaica não era final e absoluta” (Sanders 1985, 267). E ele conclui com referência ao perdão dos pecados: “A reivindicação muitas vezes repetida de que Jesus ‘colocou-se no lugar de Deus’ é exagerada. Freqüentemente se diz que ele fez tal coisa ao perdoar pecados; precisamos observar, contudo, que ele somente pronunciava o perdão, o que não é prerrogativa de Deus, e sim do sacerdócio.

Estes são pontos do tipo sobre o qual continuarão por muito tempo a existir argumentos, em ambas as direções, por parte dos especialistas no Novo Testamento. Existem diversas outras passagens relevantes que são debatidas, particularmente a parábola da vinha, em que o filho é morto (Mc 12,1-11; Mt 21,33-41; Lc 20,9-18); e o seguinte dito de Marcos: “Mas a respeito daquele dia ou daquela hora ninguém sabe; nem os anjos no céu, nem o Filho, senão somente o Pai” (Mc 13,32); bem como o de Mateus: “Tudo me foi entregue por meu Pai. Ninguém conhece o Filho senão o Pai; e ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11,27). A autenticidade de cada uma destas passagens enquanto ditos de Jesus tem sido seriamente questionada, e seu significado muito debatido. Mas, ao invés de tentar fazer um exame detalhado de cada uma delas, será suficiente citar aqui a conclusão a que chega James Dunn ao cabo de sua discussão detalhada de todos os materiais sinóticos que têm relação com a autocompreensão de Jesus: “Justamente quando nosso questionamento alcança o tópico decisivo (Tinha Jesus consciência de ser o Filho divino de Deus?), descobrimos que ele é incapaz de proporcionar uma resposta histórica clara” (Dunn 1980, 29). As evidências não concedem uma prova, ou mesmo um grau objetivo de probabilidade. Deve haver juízo histórico na ponderação de considerações divergentes; e as conclusões tiradas desses exercícios de ponderação inevitavelmente refletem a perspectiva e o compromisso mais gerais do autor. Neste ponto concordo com a observação de David Brown sobre a “situação de jogo entre os especialistas” com respeito à autoconsciência de Jesus, observação no sentido de que “o teólogo filosófico não pode deixar de suspeitar que razões apologéticas estão por trás de boa parte da energia devotada à questão” (David Brown 1985, 107). Com efeito, muitas vezes existe uma circularidade no uso da Escritura a fim de estabelecer conclusões teológicas debatidas. De modo geral, uma postura teológica mais ampla toma a dianteira, levando uma seleção de textos a partir do largo espectro de materiais neotestamentários a coadunar-se com aquela posição. Por conseguinte, seria perigoso basear uma fé na divindade de Jesus no juízo histórico segundo o qual ele mesmo reclamou, implicitamente, tal divindade para si. Caso já se tenha aceito uma forma de cristologia ortodoxa, pode-se razoavelmente interpretar algumas das palavras e ações de Jesus, assim como são apresentadas pelos escritores dos evangelhos, como sustentação implícita daquela crença. Mas parece estar claro que não é possível chegar de modo justificado à crença simplesmente a partir das evidências do Novo Testamento assim como estas são analisadas e interpretadas até agora pela comunidade de pesquisadores.

Uma segunda resposta diante da descoberta de que o próprio Jesus não reivindicou ser Deus encarnado é o uso do conceito “evento Cristo”. Esta idéia útil, porque elástica, é vastamente utilizada no presente para afastar a pressão colocada contra o pilar da autoridade dominical – que já se descobriu ser oco –, deslocando-a para o fato historicamente sólido da doutrina da Igreja. Aqui supõe-se que o “evento Cristo” consiste não só na vida de Jesus, mas também na formação da Igreja e no crescimento de sua fé na divindade de Jesus. É este conjunto maior de fatores, e não as próprias palavras e ações de Jesus, que se declara agora oferecer a autorização da crença de que ele foi o Deus encarnado.

A noção do “evento Cristo” parece ter surgido pela primeira vez na interpretação existencialista do Novo Testamento proposta por Rudolf Bultmann, interpretação segundo a qual a fé cristã não é uma resposta ao Jesus de Nazaré em grande parte desconhecido, mas sim à noção atual de Jesus como o Cristo; deste modo, sempre que “o Cristo” é proclamado, tem-se uma “continuação do evento de Cristo” (Bultmann 1955, 286). Na obra de Bultmann, o uso da idéia do evento Cristo refletia um forte ceticismo histórico e a conseqüente mudança de uma compreensão ontológica para uma compreensão existencialista de Cristo. No entanto, na obra de outro estudioso do Novo Testamento, John Knox, o evento Cristo possui um sentido eclesiástico (e portanto social) em vez de um sentido existencial (e mais individual). A fé cristã não está centrada somente na pessoa de Jesus de Nazaré, mas na memória desenvolvida pela Igreja – não, porém, uma memória comum no sentido literal, mas uma “memória” metafórica – acerca dele como seu Senhor divino (Knox 1967, 2s). Para Knox, “A expressão ‘Jesus Cristo nosso Senhor’ não designa primordialmente um indivíduo histórico do passado, mas uma realidade presente efetivamente experimentada dentro da vida comunitária” (Knox 1967, 2). Na verdade: “A Igreja é a realidade cristã distintiva (...). E é porque a Igreja é corpo [de Cristo] e, na história, seu único corpo, que muitas vezes usamos as palavras ‘Cristo’ e ‘Igreja’ de maneira intercambiável, dizendo ‘em Cristo’ quando queremos referir-nos ao que realmente significa estar – e realmente estar – na Igreja. É esta corporificação ou encarnação (isto é, a Igreja) que é mais imediatamente conhecida – na verdade, a única que é imediatamente conhecida. (...) E por isso digo mais uma vez: a Encarnação originalmente não teve lugar dentro dos limites da existência particular de um indivíduo, mas sim na nova realidade comunitária, em princípio coextensiva com a humanidade, da qual ele foi o centro criativo” (Knox 1967, 66-7).

A esta altura somente irei tecer um comentário e fazer uma pergunta. O comentário resume-se em dizer que este tipo de pensamento, no qual o cristianismo já não está centrado na pessoa de Jesus, mas sim na Igreja, afastou-se um bom trecho da crença tradicional de que Jesus, o indivíduo histórico, foi ele próprio o Deus Filho encarnado. E a pergunta inevitável torna-se então: a Igreja cristã, como uma realidade dentro da história humana, tem sido tão gloriosamente diferente de todas as outras sociedades humanas a ponto de justificar-se uma reivindicação sua à divindade? Pensar em Jesus como um ser divino de algum modo faz sentido, intuitivamente falando; mas faz o mesmo sentido pensar a Igreja cristã como algo divino?

Outros teólogos contemporâneos importantes utilizam o conceito do evento Cristo como uma forma de consertar a tessitura da doutrina ortodoxa, danificada após os efeitos da crítica do Novo Testamento. Assim, John Macquarrie diz que o uso dessa concepção em certa medida minimiza os problemas que surgem de nossa falta de informação a respeito do Jesus histórico. Digamos que a vinda à existência por parte da Igreja ou do movimento cristão é mais visível e claramente atestada na história do que a carreira pessoal do rabino de Nazaré. E se pensamos que tanto Jesus como a comunidade são abarcados pelo evento Cristo, isso não significa apenas ser fiel ao caráter inevitavelmente social de toda existência humana, mas dissolve também algumas questões que costumavam ser debatidas com alguma veemência entre homens de igreja, que discordavam sobre o que vem de Jesus e o que vem da comunidade. Por exemplo: se os assim chamados sacramentos “dominicais” foram instituídos por Jesus ou por seus seguidores, ou talvez em parte por ambos, torna-se uma questão de pouca importância a partir do momento que se reconhece não existir uma linha divisória nítida entre Jesus e a comunidade. Em alguns dos livros mais antigos sobre cristologia, atribuía-se ainda mais importância à questão como Jesus se autocompreendia. Ele considerava a si mesmo como Messias, ou designava-se Filho do Homem em algum sentido escatológico especial desse termo? Foi ele o primeiro a aplicar a si mesmo a imagem do servo sofredor do Dêutero-Isaías? Ele considerou a si mesmo como alguém que se encontrava em uma relação única com o Pai? Ou algumas dessas formas de pensar, ou quem sabe todas elas, originaram-se entre os seus discípulos? Penso que não pode haver nenhuma resposta segura a estas questões. Mas acho também que a importância destas questões foi exagerada. Nós não necessitamos conhecer os pensamentos íntimos de Jesus, e, de qualquer modo, não podemos conhecê-los. Quando o colocamos em seu contexto e reconhecemos que ele não pode ser abstraído de sua comunidade e das respostas dessa comunidade para ser composto a partir dos títulos aplicados a ele, então muitas de nossas questões, embora continuem a possuir um certo interesse histórico, deixam de ser tão decisivas em cristologia (Macquarrie 1990, 21-2).

Vê-se aqui como pode ser útil a idéia do “evento Cristo” na tarefa de dissipar questões potencialmente explosivas. Já não importa como Jesus se autocompreendeu. Já não importa, por exemplo, se ele se considerou como alguém que se encontrava em uma relação única com o Pai celeste. Isso porque a encarnação consiste, para Macquarrie, na existência da comunidade cristã, incluindo-se nisso as crenças que a mesma desenvolveu acerca de Jesus. Assim, afirmar a encarnação é afirmar a Igreja e a narrativa cristã pela qual esta vive; e isso não requer um juízo prévio ou independente de que a narrativa seja literalmente verdadeira. Uma posição um tanto semelhante é apresentada por Schubert Ogden quando diz que “o sujeito real da asserção cristológica não é o Jesus histórico ou, como agora podemos dizer mais precisamente, o Jesus empírico-histórico, em relação ao qual o estrato mais antigo do testemunho cristão deve ser usado como fonte histórica. Antes, o sujeito da asserção cristológica é o Jesus existencial-histórico, em relação ao qual este mesmo estrato mais antigo do testemunho cristão desempenha o papel um tanto diferente da norma teológica” (Ogden 1982, 56).

Contudo, o conceito do “evento Cristo” tem o mérito de chamar a atenção para algo importante. O significado da vida de alguém para outras pessoas não consiste apenas na realidade concreta daquela vida em si, mas também na(s) forma(s) em que este alguém é percebido, reverenciado ou denegrido, recordado e respondido pelos outros. Isso é verdadeiro a respeito de todas as figuras históricas, tanto boas como más, sejam elas São Francisco ou Átila, George Washington ou Hitler. Elas se tornaram parte da história pública em termos das memórias e narrativas, das lealdades e dos ódios dos outros, sendo conhecidas pelos valores que se considera encarnarem. Isso também é verdade em relação a Jesus. Sabemos a seu respeito somente porque outros responderam a ele e ainda outros responderam às respostas destes, de sorte que se desenvolveu um movimento que, de modo quase inevitável, veio a considerá-lo divino no sentido extremamente elástico em que figuras religiosas e políticas proeminentes muitas vezes eram tidas como divinas no mundo antigo. Esta divindade “fraca”, expressa na metáfora “filho de Deus”, finalmente se desenvolveu até chegar à reivindicação metafísica “forte” de que Jesus era o Deus Filho, segunda pessoa de uma Trindade divina, encarnada. Mas usar o conceito do “evento Cristo” para validar este desenvolvimento implica estender de maneira arbitrária aquele “evento” altamente flexível no mínimo até o Concílio de Nicéia (325 dC), incluindo, de preferência, o Concílio de Calcedônia (451 dC).

A terceira resposta à falta de autoconsciência divina em Jesus ou, de qualquer modo, à falta de qualquer indicação de uma tal autoconsciência, tem um parentesco íntimo com isso. Porém, ao invés de utilizar o conceito do “evento Cristo”, e estendê-lo a fim de incluir o desenvolvimento da ortodoxia trinitária, ela fala do Espírito Santo como o guia da Igreja em seu desenvolvimento teológico. Esta é principalmente uma posição católico-romana. Por isso diz M. Schmaus: “O que o Espírito Santo concedeu aos discípulos foi uma compreensão verdadeira de Jesus Cristo e de sua obra” (Schmaus 1972, 42); e Hugo Meynell afirma a respeito da evolução da cristologia da Igreja: “Do ponto de vista cristão ortodoxo, este desenvolvimento deve ser, em última análise, atribuído à providência divina” (Meynell 1986, 107). O Vaticano II declarou: “Esta tradição que vem dos apóstolos desenvolve-se na Igreja com o auxílio do Espírito Santo” (Abbott 1966, 116 – Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina, cap. 2, par. 8). E o Cardeal Ratzinger chega a dizer o seguinte a respeito da história da Igreja: “Esta história é, em sua totalidade, uma manifestação do Espírito Santo” (Ratzinger 1987, 131). Como anglicano, Richard Swinburne afirma que a revelação divina exige ou uma autoridade interpretativa infalível, que pode ser representada pelo papa ou pelos concílios (ou por ambos), ou “uma direção geral de Deus, que permite erros aqui e ali mas que garante a estrutura básica da fé” (Swinburne 1989, 82-3). E Stephen Davis, protestante evangélico, diz da cristologia de Calcedônia: “Confesso uma forte crença de que a Igreja foi conduzida à doutrina clássica pelo Espírito Santo” (Davis 1988, 43). A pretensão de que a orientação divina incidiu sobre a teologia da Igreja em desenvolvimento é instigada pelas imensas diferenças entre essa teologia e a mensagem do próprio Jesus. Mas deveria ser evidente que um apelo ao Espírito Santo nada pode acrescentar à defesa da verdade do dogma de Calcedônia ou de qualquer outro. Ao propor o dogma adicional de que aqueles que criaram o dogma original foram divinamente guiados, simplesmente se desloca o ponto de debate: de uma crença de primeira ordem passa-se à crença de segunda ordem de que a crença de primeira ordem é divinamente garantida. Mas não temos nenhum modo de determinar se os concílios foram de fato divinamente inspirados, a não ser avaliando seus pronunciamentos. Se podemos aceitar estes pronunciamentos como verdadeiros, poderíamos aceitar que os autores foram inspirados ao fazê-los; do contrário, não. Aqui existe uma circularidade óbvia: acredita-se que o dogma é verdadeiro porque os concílios ecumênicos foram divinamente guiados ao declará-lo verdadeiro, e acredita-se que foram divinamente guiados porque se acredita que o dogma é verdadeiro. Aqui não há escapatória da questão relativa aos fundamentos de primeira ordem do dogma. Assim, esta terceira resposta acaba sendo enganosamente redundante.

A quarta linha de resposta ao reconhecimento de que o Jesus histórico não se autoconcebeu como Deus encarnado tem se dado no abandono do Jesus terreno em favor do Cristo celestial ou cósmico (na tradição católica) ou do Jesus ressuscitado experimentado no presente (no protestantismo evangélico), ambos entendidos como o objeto da fé cristã.

O enfoque católico é expresso por Eric Mascall: “É básico para a nossa fé o fato de que o Cristo que conhecemos hoje é o Cristo histórico, mas, para nos familiarizarmos com ele, não dependemos da pesquisa dos historiadores ou dos arqueólogos. Ele também é o Cristo celestial, e como tal é o objeto de nossa experiência presente, mediado através da vida sacramental da Igreja” (Mascall 1985, 38-9).

A linguagem evangélica de que “Jesus está comigo”, “guiando minhas decisões” e assim por diante, reflete um tipo de experiência religiosa de alcance mundial, na qual se sente que um guru ou um deus está espiritualmente presente junto ao crente. Pense-se, por exemplo, no hino cristão “No Jardim”, com seu refrão “Ele anda comigo, fala comigo e me diz que sou seu”; ou no spiritual que reza: “Tenho uma conversinha com Jesus e lhe conto meus pesares”; e termina dizendo: “Uma simples conversinha com Jesus faz tudo ficar bem, bem, bem”. Em provável continuidade com isso – do ponto de vista da descrição psicológica – está a vívida impressão, relatada com abundância, de que uma pessoa querida já morta (em geral recentemente) encontra-se presente de modo invisível, confortando, guiando ou desafiando alguém em alguma situação do presente.

Eu absolutamente não desejaria excluir a possibilidade de que as pessoas que morreram possam às vezes estar presentes dessa forma para os vivos, e que isso também pode ter sido verdade no tocante a Jesus durante os dias e semanas que sucederam sua morte. Mas a experiência evangélica de estar falando hoje com um Jesus invisível – ou algumas vezes, no caso dos católicos, com uma Virgem Maria invisível ou com um santo glorificado – deve ser entendida, juntamente com a percepção do Cristo cósmico, de um modo que também se aplica a fenômenos comparáveis dentro de outras tradições religiosas. Um sem-número de exemplos de experiências vivas daquilo que se considera ser uma presença divina pessoal encontramos no livro de William James, Varieties of Religious Experience (3ª Conferência), bem como na coleção de textos contemporâneos Seeing the Invisible: Modern Religious and Other Transcendent Experiences, textos estes extraídos dos relatos compilados pelo Centro de Pesquisa Alister Hardy em Oxford. Esses relatos registram muitos casos de uma experiência de encontro com Jesus, esboçada com base nas narrativas dos Evangelhos (Maxwell 1990, 78-9, 83, 104-5, 142, 150, 166). Existem relatos similares, tirados de fontes hindus, acerca do encontro com o Senhor Krishna (Klostermeier, 1969, 15) ou com a Mãe Kali (Isherwood 1965, 65s). Às vezes ouve-se uma voz, e às vezes a experiência é cercada de uma luz brilhante (James 1960, 251s; Maxwell 1990, 165), de forma idêntica ao exemplo de Paulo no caminho de Damasco. Como no caso de todas as formas de experiência religiosa, são possíveis tanto uma interpretação religiosa como uma interpretação naturalista. Do ponto de vista naturalista, todas essas experiências devem ser vistas como alucinações. Do ponto de vista religioso, porém, elas devem ser testadas por meio de seus frutos; e, se estes promovem a transformação humana salvífica que leva do autocentramento a um novo centramento na Realidade divina, elas devem ser aceitas como modos pelos quais o Transcendente veio à consciência na experiência de pessoas formadas pelas diferentes tradições. Assim, tais experiências são, conjuntamente, produtos da presença universal do Real último; das circunstâncias especiais que fazem com que, em momentos particulares, os indivíduos se abram àquela realidade; e dos conceitos e imagens em termos dos quais sua experiência consciente é construída.

Acabamos de tomar conhecimento das várias formas em que os teólogos responderam ao fato de Jesus não ter pretendido ser Deus encarnado. E vimos que nenhuma dessas formas pode eximir os defensores da deificação de Jesus da tarefa de justificar um passo tão importante. Uma tal justificação implica demonstrar duas coisas: que o processo pelo qual se produziu a deificação é um processo que podemos considerar válido; e que a doutrina daí resultante é coerente e crível em si mesma.

Mas, antes de examinar a coerência da doutrina tradicional, vamos considerar, no próximo capítulo, a maneira pela qual ela parece ter surgido enquanto um objeto da história.

A afirmação eclesial da divindade de Jesus

Nossa próxima tarefa, então, será considerar o desenvolvimento histórico desde o Jesus de Nazaré terreno ao Cristo divino da fé, da teologia, da pregação e dos sacramentos cristãos ortodoxos. Como foi que ocorreu essa transição imensamente significativa? Ao fazer esta pergunta, temos de avaliar a diferença entre o ambiente intelectual do primeiro século da era cristã e o ambiente de nosso Ocidente moderno industrializado, dominado pela ciência e secularizado. Eis aqui algumas palavras de James Dunn que recomendam cautela: “Quando os primeiros cristãos chamaram Jesus de ‘filho de Deus’, que significado teria isso para os seus ouvintes? (...) precisamos fazer o esforço de sintonizar nossa maneira de escutar a fim de ouvir com os ouvidos dos contemporâneos dos primeiros cristãos. Devemos tentar cumprir a tarefa extremamente difícil de banir de nossas mentes as vozes dos antigos Padres da Igreja, dos concílios e dos teólogos dogmáticos ao longo dos séculos; e isso se no caso de terem afogado as vozes mais antigas, e de as vozes mais antigas tiverem dito algo diferente, e estas pretendessem que suas palavras falavam a seus ouvintes com uma força diferente” (Dunn 1980, 13-14). De nosso ponto de vista hodierno, seriam necessários milagres de fazer tremer a terra, que revirassem toda a concepção de mundo secular já estabelecida, para que um indivíduo histórico fosse considerado também Deus. Isso porque, sob a influência de séculos de pensamento cristão, passamos a significar com a palavra “Deus” o eterno, o onipotente e onisciente criador do universo. No mundo antigo, porém, o conceito de divindade era definido de maneira muito menos clara, e as condições para seu uso eram marcadas por exigências muito menores. Aquele era um mundo em que havia, na expressão de São Paulo, “muitos deuses e muitos senhores” (1Cor 8,5). Assim, para citar novamente o Arcebispo Michael Ramsey: “O título ‘Filho de Deus’ não precisa por si mesmo possuir grande significado, pois em círculos judeus ele poderia significar o mesmo que o Messias ou inclusive a nação israelita como um todo, e no helenismo popular havia muitos filhos de Deus, entendendo-se, sob isso, homens santos e inspirados” (Ramsey 1980, 43). Explicando ainda mais o tema, Dunn destaca que, no mundo romano do período do Novo Testamento, as palavras “divino” e “filho de Deus”, e mesmo “Deus”, eram usadas de modo mais ou menos intercambiável. Heróis “eram freqüentemente chamados de ‘divinos’ em Homero e, de Augusto em diante, ‘divino’ tornou-se um termo fixo no culto imperial, ‘o César divino’. Na outra ponta do mesmo espectro, o termo poderia simplesmente significar ‘pio’, ‘piedoso’. (...) Mais uma vez descobrimos que os heróis eram às vezes chamados de ‘deuses’; e que ‘deus’ era um título comum de imperadores e reis a partir dos tempos h será saudado como o Filho de Deus, e o chamarão Filho do Altíssimo” Esse uso flexível e permissivo continuou , 16-17).

Referindo-se especificamente ao conceito “filho de Deus”, Dunn diz que alguns dos heróis legendários do mito grego eram chamados filhos de Deus – em particular Dioniso e Hércules eram filhos de Zeus com mães mortais. Governantes orientais, especialmente egípcios, eram chamados filhos de Deus. Sobretudo os ptolomeus do Egito reivindicaram o título de “filho de Hélio” a partir do século IV aC, e no tempo de Jesus a expressão “filho de Deus” (huios theou) era muito utilizada com referência a Augusto. Também de filósofos famosos, como Pitágoras e Platão, dizia-se às vezes que foram gerados por um Deus (Apolo). E na filosofia estóica pensava-se que Zeus, o ser supremo, era o pai de todos os homens (...) (Dunn 1980, 17).

Dunn conclui: “A linguagem da filiação divina e da divindade possuía uso difundido e variado no mundo antigo e teria sido familiar aos contemporâneos de Jesus, de Paulo e de João num amplo leque de aplicações” (Dunn 1980, 17). Evidência adicional disso é que os manuscritos do Mar Morto se referem a alguém que “será chamado filho do Grande Deus. Ele será saudado como o Filho de Deus, e o chamarão Filho do Altíssimo”. Esse uso flexível e permissivo continuou a existir por um bom período de nossa era cristã. Escrevendo em torno do ano 200, Clemente de Alexandria, por exemplo, afirmou: “Também alguns dos indianos obedecem aos preceitos de Buda que, por causa de sua extraordinária santidade, eles elevaram às honras divinas” (Clemente 1956, 316; Livro I, cap. 15). Deter honras divinas, ser divino, ser um deus ou um filho de Deus eram todos itens pertencentes ao mesmo amplo espectro do divino.

Em vista desta elasticidade da idéia de divindade no mundo antigo, inclusive no judaísmo do primeiro século, não é de modo algum surpreendente ou notável que Jesus viesse a ser tido como alguém pertencente à classe das pessoas divinas. Mesmo durante sua vida, a sua qualidade especial de santo profeta e impressionante pregador e curandeiro bem pode ter sido reconhecida dessa forma. Como diz o especialista em Novo Testamento Maurice Casey: “Jesus podia ter sido chamado filho de Deus por qualquer um que pensasse ser ele uma pessoa particularmente justa: dada a sua habilidade como exorcista, pessoas que acreditavam estar possuídas pelo mal bem poderiam ter usado aquele termo com referência a uma figura tão obviamente santa e eficaz” (Casey 1991, 46). E após a sua morte e os eventos da ressurreição, quando ele veio a ser identificado por seus seguidores como o Messias, da linhagem real de Davi, o título “filho de Deus” de novo seria natural e apropriado. De fato, podemos até mesmo dizer que teria sido surpreendente se Jesus não tivesse compartilhado da difundida divinização honorífica de figuras religiosas destacadas, e se a metáfora hebraica de “filho de Deus” não tivesse sido aplicada a ele.

Digo “metáfora”, muito embora no mundo antigo não se traçasse com nitidez a nossa distinção moderna entre o uso literal da linguagem e seus vários usos metafóricos e não-literais de outra espécie. Na tradição hebraica, o significado de um acontecimento lembrado pessoal ou comunitariamente, ou então de uma pessoa encontrada nessas mesmas formas, era prontamente expresso em termos metafóricos e míticos. Aquela era “uma cultura acostumada à expansão, ao estilo do Midrash” (Casey 1991, 52). Com efeito, toda a linguagem bíblica a respeito de Deus e de suas manifestações no mundo é, em bem grande parte, metafórica. Deus é descrito nas Escrituras hebraicas como rei, pastor, pai e rocha. No Novo Testamento, a imagem-chave é a do pai, de sorte que esta imagem e sua imagem correlativa de um filho tornaram-se centrais no discurso cristão. Em seu uso escriturístico original, todas estas são – em termos de nossa distinção moderna –, de modo manifesto, metáforas. Literalmente, um pai é um ascendente masculino imediato. Deus, porém, é espírito, para além da distinção biológica entre masculino e feminino, e não gera filhos de modo literal – se bem que a idéia do “nascimento virginal” de Jesus (ou mais precisamente: da concepção virginal) chegue perigosamente próxima disso. Mas, quando falamos de Deus como nosso Pai celeste, estamos fazendo uso de uma metáfora poderosa que retrata a atitude divina com a humanidade como sendo, de uma maneira importante, análoga à de um pai ou mãe ideais.

Assim sendo, no caso da linguagem do “filho de Deus”, temos aquilo que era, no mundo antigo, uma metáfora amplamente utilizada e prontamente compreendida, ainda que a teologia cristã subseqüente viesse a tratá-la como uma linguagem dotada de sentido literal. Citarei aqui o erudito judeu Geza Vermes: “A expressão ‘filho de Deus’ sempre foi entendida metaforicamente em círculos judeus. Nas fontes judaicas, seu uso jamais implica a participação da pessoa assim denominada na natureza divina. Em conseqüência, pode-se seguramente presumir que, se o meio no qual a teologia cristã se desenvolveu tivesse sido hebraico e não grego, ela não teria produzido uma doutrina da encarnação assim como esta é tradicionalmente compreendida” (Vermes 1983, 72).

No entanto, pareceu a alguns, e pode ser o caso, que Paulo constitui uma exceção ou uma exceção parcial pelo fato de ter sido alguém cujo modo de pensar era distintamente judeu, mas que, não obstante isso, chegou até a idéia de Jesus como o único Filho de Deus encarnado. Paulo pode ser compreendido, e de fato o foi, de várias maneiras; isto porque (em suas cartas) ele é geralmente exortativo e retórico e não preciso em termos conceituais. Ao invés de escrever teologia sistemática, ele prega a grupos cristãos com suas particularidades. Fala de Jesus como o Senhor Jesus Cristo e como o Filho de Deus; e em sua última carta, aos colossenses – se é que esta é de Paulo (muitos especialistas duvidam disso) –, sua linguagem se move na direção da deificação. Naturalmente, porém, a pergunta é: o que esta linguagem significou para o escritor e seus leitores no primeiro século? A imagem central utilizada por Paulo, a de pai e filho, sugere inevitavelmente (e sugeriu com ênfase ainda maior no mundo antigo) a subordinação do filho ao pai. E nos escritos de Paulo não é possível dizer que Deus e o Filho de Deus sejam co-iguais, como mais tarde se declarou serem as pessoas da Santíssima Trindade. A noção de Jesus como Filho de Deus é, na verdade, pré-trinitária. A posição teológica de Paulo, cuidadosamente enunciada na Epístola aos Romanos, parece – segundo o sermão petrino de Pentecostes narrado por Lucas em Atos – afirmar que Jesus foi um homem elevado por Deus, em sua ressurreição, a um status especial e importante de maneira única. A respeito de Jesus, Paulo diz que, “segundo a carne, ele veio da descendência de Davi, e foi poderosamente demonstrado Filho de Deus, segundo o espírito de santidade, pela sua ressurreição dos mortos” (Rm 1,3-4). O papel subordinado do Filho é deixado claro de modo ainda mais inequívoco em 1Cor, onde, ao falar da futura ressurreição geral, Paulo diz que Cristo irá aparecer primeiro, “depois os que são de Cristo, na sua vinda. E então virá o fim, quando ele entregar o reino ao Deus e Pai, quando houver destruído todo principado, bem como toda potestade e poder. Porque convém que ele reine até que haja posto todos os inimigos debaixo dos seus pés. (...) Quando, porém, todas as coisas lhe estiverem sujeitas, então o próprio Filho também se sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou, para que Deus seja tudo em todos” (1Cor 15,23-28).

Contudo, tem-se argumentado, com base no tema da quenose do hino em Fl 2,5-11 (“a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tendo nascido em semelhança de homens [...]”), e em passagens como Gl 4,4 (“Deus enviou seu Filho, nascido de mulher [...]”), que para Paulo Jesus era um ser preexistente que Deus enviou ao mundo – uma idéia que poderia estar ligada a concepções judaicas de entidades intermediárias (Sabedoria, Palavra, anjos) entre Deus e a humanidade. Nesse caso, Paulo está mais próximo da idéia desenvolvida da encarnação divina do que sugere o conteúdo geral de seus escritos. Mas a questão demonstrou ser altamente discutível, e na verdade pertence ao tipo de questões objetivamente sem solução na exegese do Novo Testamento, e provavelmente continuarão a alimentar pontos de vista conflitantes. James Dunn conclui, após um exame cabal de todos os textos relevantes: “É possível que nas duas passagens, ao falar do Deus que envia seu Filho (Rm 8,3 e Gl 4,4), ele pretenda supor que o Filho de Deus era preexistente e se encarnou como Jesus; mas é igualmente verossímil, de fato provavelmente mais verossímil, que o sentido pretendido por Paulo não se estenda tão longe, e que nestes momentos ele e seus leitores simplesmente pensavam, em relação a Jesus, que ele era a pessoa encarregada por Deus de participar totalmente da fragilidade, do cativeiro e do pecado humano, e cuja morte realizou o propósito libertador e transformador de Deus para com o ser humano” (Dunn 1980, 46). Mas uma vez que, a esta altura, faz pouca diferença se Paulo estava mais próximo das interpretações mais antigas ou mais tardias acerca de Jesus, nesta questão, não irei além deste ponto. De modo provisório, considero que seu pensamento está mais ou menos na altura de um terço do caminho histórico que conduz da designação honorífica do Jesus humano como “filho de Deus” – e a seguir mais especificamente como “o filho de Deus” (com o F maiúsculo suplantando, no devido momento, o f minúsculo) –, até se chegar, finalmente, após vários séculos de debates, a designá-lo como o Deus Filho, segunda pessoa de uma Trindade divina.
A Igreja que crescia e se desenvolvia tinha de explicar as suas crenças em termos filosóficos aceitáveis, tanto para a cultura de fala grega do mundo mediterrâneo como para si mesma; e, depois da conversão do imperador Constantino ao cristianismo, a paz do Império passou a exigir um conjunto unitário de crenças cristãs. Por isso, Constantino convocou em 325 o Concílio de Nicéia, “com o propósito de restaurar a concórdia na Igreja e no império” (Pelikan 1985, 52); e foi nele que pela primeira vez a Igreja adotou oficialmente, da cultura grega, o conceito não-bíblico de ousia, declarando que Jesus, como o Deus Filho encarnado, era homoousios toi patri, da mesma substância que o Pai. As metáforas bíblicas originais foram daí por diante relegadas, para propósitos teológicos, ao nível da linguagem popular que aguardava interpretação, ao passo que uma definição filosófica tomou o seu lugar para objetivos oficiais. Um filho de Deus metafórico se transformara no Deus Filho metafísico, segunda pessoa da Trindade. O significado político disso foi que o imperador cristão possuía agora o status de vice-rei de Deus na terra. Assim, ao escrever sobre a vitória de Constantino diante de seu rival Licínio, o historiador contemporâneo Eusébio diz que Constantino e seu filho, “sob a proteção de Deus, o Rei universal, tendo o Filho de Deus, Salvador de todos, como seu líder e aliado, juntaram suas forças de todos os lados contra os inimigos da Divindade, chegando a uma fácil vitória” (Eusébio 1952, 386; Livro X, cap. 9, par. 4).

A formulação nicena foi aumentada, com o uso da mesma conceptualidade filosófica, no Concílio de Calcedônia em 451, afirmando que Cristo era “homoousios com o Pai quanto à sua divindade, e ao mesmo tempo homoousios conosco quanto à nossa humanidade (...), dado a conhecer em duas naturezas [que existem] sem confusão, sem modificação, sem divisão, sem separação (...)”. E é esta formulação de Calcedônia que, desde então, constituiu a linguagem cristã oficial a respeito de Cristo.

A linguagem metafórica da Bíblia cria de modo natural comunicação com todos que habitam ou possam adentrar imaginativamente em seu universo de discurso. Ainda temos pais e filhos, e, menos universalmente, reis e pastores como parte de nosso mundo conceitual; e, fazendo valer apenas um pouco de esforço imaginativo, podemos apreciar o hábito antigo de conceber uma pessoa espiritualmente próxima de Deus, como um servo fiel de Deus, tal como um Filho de Deus. Metáforas como esta estabelecem comunicação com sucesso, porque foram formadas dentro do discurso ordinário da época. Mas a fórmula de Calcedônia é um artefato filosófico, que contém todo o sentido fixado por ela, nada mais nada menos. Fórmulas como esta impressionam precisamente porque seu único sentido é técnico e conhecido apenas dos eruditos. Contudo, um minucioso exame crítico e de cunho filosófico dessas construções conceptuais sempre deve estar na ordem do dia. E nesse caso, precisa-se considerar a possibilidade de que a fórmula, que à primeira vista parece tão firme e definitiva, seja incapaz de ser explicada de qualquer maneira religiosamente aceitável. A intenção por trás dela era excluir qualquer compreensão de Jesus que negasse, quer sua divindade plena e autêntica, quer sua humanidade plena e autêntica. Mas talvez isso não possa ser feito! Se a fórmula é constituída de tal maneira que qualquer explicação pormenorizada de seu significado venha a ter implicações que entram em conflito com um ou outro daqueles desideratos, então a fórmula representa um fracasso. Se todas as tentativas de explicá-la revelam-se inaceitáveis, ela somente pode funcionar como um pronunciamento ritual, cujo sentido não deve ser examinado muito de perto e que somente pode servir para inibir e ensandecer o pensamento.

Esta é a lição, creio eu, dos debates cristológicos iniciados já antes da época de Nicéia e conduzidos até os dias de hoje. Naturalmente é impossível provar que ninguém conseguirá, no futuro, tornar inteligível a fórmula das duas naturezas de modo válido em termos religiosos. Segundo penso, porém, é possível mostrar que isso ainda não foi feito, a despeito de tantos entre os melhores cérebros cristãos terem tentado fazê-lo, ou apesar de terem recuado diante da tarefa como algo irrealizável, geração após geração.