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terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Hume,Kant, Feuerbach, Karl Marx, e a experiência religiosa

1. O fenômeno da religiosidade

Uma manifestação tipicamente humana é a religião. Ela não está presente nos outros seres vivos, mas somente no homem. E é uma manifestação que, se abarcarmos a humanidade inteira seja com relação ao espaço quanto ao tempo e não somente este ou aquele outro grupo de uma época histórica particular, assume proporções notabilíssimas. Os antropólogos informam-nos que o homem desenvolveu uma atividade religiosa desde a sua primeira aparição na cena da história e que todas as tribos e todas as populações de qualquer nível cultural cultivaram alguma forma de religião. Ademais, é coisa mais que sabida que todas as culturas são profundamente marcadas pela religião e que as melhores produções artísticas e literárias, não só das civilizações antigas, mas também das modernas, se inspiram em motivos religiosos.

É, portanto, razoável afirmar que o homem além de sapiens, volens, socialis, faber, loquens, ludens é também religiosus.

Nem o fato de que, hoje, a religião esteja atravessando uma crise profunda e se encontra muitos indivíduos que se afirmam ateus constitui um argumento plausível contra a relevância do fenômeno religioso. Com efeito, nós consideramos o homem Iudens, loquens, faber, sapiens, volens, socialis, mesmo se nem todos joguem, falem, trabalhem, pensem, queiram, vivam em sociedade. Outro tanto vale para a dimensão religiosa: ela se impõe como uma constante do ser humano, mesmo se não é cultivada por todos os indivíduos da espécie.

Daí a oportunidade, ou melhor, a necessidade de incluir o estudo do fenômeno da religiosidade num tratado de antropologia: também ele pode fornecer dados interessantes, sugestões úteis, indícios preciosos e eloqüentes para a determinação do sentido último da vida e da natureza essencial do ser do homem.

Nesse breve estudo do Homo religiosus, procedo segundo a ordem seguinte: primeiramente traçaremos uma breve história das interpretações do fenômeno religioso assim como foi visto pelos filósofos, pelos teólogos, pelos historiadores, peles sociólogos e pelos fenomenólogos; depois procuraremos efetuar um aprofundamento teórico do problema, elaborando uma definição e examinando as relações que ela mantém com as outras atividades do homem. Por fim, exploraremos as implicações da religião no que concerne à natureza própria do ser do homem.

2. História do problema religioso

Precisemos, antes de mais nada, que com a expressão “história do problema religioso” não pretendemos nos referir à história das religiões, ao nascimento e ao desenvolvimento das várias instituições religiosas, mas à religião como objeto de reflexão crítica, e portanto, à história da análise crítica do fator religioso. É dessa historia que pretendemos oferecer um quadro sintético. Tratar-se-á necessariamente de um quadro muito imperfeito, porque a história do problema religioso é vastíssima e para ser narrada adequadamente exigiria muitos volumes.

O problema religioso no passado, mas sobretudo durante o nosso século, esteve no centro da atenção dos cultores das seguintes disciplinas:
- filosofia;
- teologia;
- crítica histórica;
- fenomenologia;
- sociologia.

Para sermos mais claros, na nossa exposição examinaremos separadamente o pensamento dos filósofos, dos teólogos, dos historiadores das religiões, dos sociólogos e dos fenomenólogos. Iniciaremos com o dos filósofos.

a) A crítica filosófica

A questão religiosa esteve sempre presente nas fases mais importantes da história da filosofia. No período antigo, por ela se interessaram Xenófanes, Protágoras, Platão, Aristóteles, Lucrécio e Plotino na idade Média, Avicenas, Averróes, Maimônides, S. Tomás, Occan; nos primórdios da época moderna, Giordano Bruno, Campanella, Spinoza, Hobbes, Locke. Mas foi sobretudo a partir de Hume e de Kant que a questão religiosa se tornou um dos pontos centrais da reflexão filosófica.

Defronte a tal questão, os filósofos modernos perfilaram-se em duas fileiras opostas. De uma parte, alguns procuraram mostrar que a religião é privada de qualquer fundamento objetivo: ela seria uma astuta invenção do homem, devida ao medo (Feuerbach), à prepotência (Marx), à ignorância (Comte), ao ressentimento (Nietzsche), à sublimação dos instintos (Freud) aos abusos lingüísticos (Carnap), etc.... De outra parte, outros defendem o valor objetivo da religião, porquanto ela se fundaria em uma relação conatural do homem com a “realidade última” (Hegel, Croce, James, Bergson, Scheler, Jaspers, etc.). Os primeiros desenvolvem uma crítica negativa e desmistificadora, enquanto es segundos elaboram uma crítica positiva e construtiva do fenômeno religioso.

Hume e Kant, embora indicassem bases diferentes para o fenômeno religioso (Hume a havia fundado no instinto e Kant na razão prática), não tinham posto em dúvida o seu valor essencialmente objetivo. Tal valor foi, mais tarde, confirmado por idealistas, em particular por Hegel.

Mas as teses paradoxais do corifeu do idealismo fizeram com que a situação se precipitasse e conduziram Feuerbach à negação da realidade religiosa e à afirmação do ateísmo. Contra o postulado hegeliano segundo o qual tudo provém do Absoluto e cada coisa, inclusive o homem, não é senão um momento do seu automanifestar-se, Feuerbach sustenta que as coisas ocorrem exatamente do modo inverso: Deus é só uma idéia excogitada pelo homem com o escopo de conseguir a plena realização de si mesmo; portanto, a realidade suprema não é Deus, mas o homem. No famoso ensaio sobre a Essência do Cristianismo, Feuerbach argumenta que a religião tem origem em um processo hipostático das necessidades e dos ideais do homem: o homem projeta todas as qualidades positivas que tem em si em uma pessoa (hipostasis) divina e faz dela uma realidade subsistente, capaz de suprir as suas próprias necessidades e as suas próprias lacunas. Assim, por exemplo, a idéia de Deus como pai, segundo o autor de Essência do Cristianismo, nasce da exigência de segurança exigida pelo homem; a idéia de Deus feito carne exprime a excelência do amor pelos outros; a idéia de um ser perfeitíssimo nasce para representar ao homem o que o homem gostaria de ser mas não consegue tornar-se; a idéia de uma existência ultraterrena não é senão a fé na vida terrestre não como ela é atualmente, mas como deveria ser; a Trindade obscurece as três faculdades supremas do homem (vontade, razão e amor), tomadas na sua unidade e projetadas sobre o homem, e daí por diante. Concluindo, a tese revolucionária de Feuerbach é que “o fundamento da verdadeira filosofia não é pôr o finito no Infinito, mas o Infinito no finito”.

Para não falsear o pensamento de Feuerbach, é necessário ter presente que com o desmantelamento dos conceitos religiosos tradicionais ele não pretende suprimir a religião, que, aliás, ele considera necessária porquanto torna presentes ao homem os seus ideais, mas sim que ele se propõe colocá-lo em estado de alerta contra as ilusões causadas pela religião, em particular contra a ilusão do conceber o Ser no qual se hipostatizam os ideais do homem como se fosse estranho ao homem, como se fosse algo de existente em si mesmo. Essa é, de fato, para Feuerbach, a grande fraqueza da religião e a causa de todos os erros e fanatismos.

Karl Marx foi, como Feuerbach, discípulo de Hegel e as críticas ao pensamento do mestre elaboradas por Feuerbach, sem dúvida, contribuíram para encaminhá-lo em direção à negação de Deus e da religião. Mas os motivos que fizeram Karl Marx abraçar a causa do ateísmo, mais que argumentos de natureza filosófica e metafísica, foram de ordem histórica e social. A sua identificação da sociedade ideal com a sociedade sem classes e a busca da instauração de tal sociedade mediante a demolição das estruturas sociais vigentes nos seus tempos levaram-no necessariamente a confrontar-se com a religião. Ora, toda uma série de circunstâncias infaustas o fizeram crer que a religião fosse um dos maiores obstáculos à realização da nova sociedade e, portanto, o induziram a concluir que a religião não pode ser senão uma invenção da sociedade capitalista. Para Marx, a religião é um produto imaginado por esta sociedade para realizar a exploração de classes: a religião é um instrumento de evasão para os oprimidos e de justificação para os opressores. Ela é o ópio dos povos: “A miséria religiosa é, de um lado, expressão da miséria real e, de outro, protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida pela desventura, a alma de uma época sem espírito. É ópio para o povo.. . o fundamento da crítica religiosa é este: o homem cria a religião e não é a religião que cria o homem”. Nela o homem alienado busca uma felicidade ilusória, um paraíso artificial: a conseqüência desse processo é uma postura de desconfiança e de remissão, que induz o homem a aceitar as injustiças presentes, mistificadas como “provas” e “punições”, sem modificar a realidade histórico-social que delas é causa. A religião não é só um produto da alienação, mas e ela mesma a causa, alienação, porquanto instrumento de evasão e de renúncia: “A religião é, na realidade, a consciência e o sentimento próprios do homem que ainda não se achou ou que já se perdeu de novo . “A religião não é senão o sol ilusório que se move em torno do homem, até que ele não se mova em torno de si mesmo... Uma vez desaparecida a vida futura da verdade, a história tem a missão de estabelecer a verdade na vida presente”.

Os ecos da crítica marxista da religião no século passado foram um tanto fracos. Será necessário esperar o século vinte para que eles comecem a ressoar vigorosamente em toda parte. No século dezenove, a defensor do ateísmo que teve maior sucesso não foi Marx nem Feuerbach, mas Comte, o pai do positivismo. Segundo esse filósofo, todo o universo procede da matéria por meio da evolução. Também o homem é um produto da evolução. Com o seu aparecimento sobre a cena do mundo tem início a história, cujas fases principais, segundo a célebre classificação de Comte, são três: religiosa, metafísica e científica. As três fases correspondem a três modos diferentes de conceber e de explicar as coisas. Na época religiosa, o homem concebe uma explicação mítica dos fenômenos naturais excogitando causas sobrenaturais; na época metafísica, ele obtém uma explicação dos fenômenos recorrendo a princípios recônditos, tais quais substância, acidentes, ser, etc.; na época positiva, enfim, ele elabora uma explicação racional, científica das coisas por meio das leis naturais, as quais bastam sozinhas (sem que haja necessidade de recorrer a Deus ou a princípios metafísicos) para explicar todos os fenômenos que nós constatamos. Todas as atividades e todos os ramos do conhecimento passam por esses três estados. Essa, segundo Comte, é uma lei imediatamente evidente: “Quem de nós, pergunta-se o fundador do positivismo, não recorda, contemplando a sua própria história, que foi sucessivamente, com relação às noções mais importantes, teólogo na sua infância, metafísico na sua juventude, e físico na sua virilidade?”

Com o desenvolvimento do método científico e das várias disciplinas científicas, a humanidade finalmente atingiu a idade adulta e pode deixar para trás tanto a religião quanto a metafísica. Agora a humanidade é o único Deus que merece o seu culto. A humanidade é o grande Ser, porquanto “conjunto dos seres passados, futuros e presentes que concorrem livremente para aperfeiçoar a ordem universal”. A esse grande Ser se deve dirigir a religião de todos es membros da sociedade. O próprio Comte delineou com minuciosos detalhes o culto Positivista da humanidade, estabelecendo um “Calendário positivista” no qual o lugar dos santos é tomado pelas maiores figuras da arte, da política e da ciência e inventando até mesmo um sinal da cruz, no qual no lugar da Trindade recorda-se o “Grande Ser” que é a humanidade, o “Grande Ídolo” que é a terra e o “Grande Meio” que é o espaço.

O quarto máximo expoente da crítica negativa do fenômeno religioso no século passado é Frederico Nietzsche. Dele todos conhecemos a famosa proclamação: “Deus morreu”. Essa sentença que representa o leitmotiv da predicação de Zaratustra é também o motivo dominante da reflexão filosófica de Nietzsche. Ele, na sua autobiografia, gostaria de nos fazer pensar diversamente. No primeiro capítulo de Ecce homo diz que a questão religiosa para ele nunca teve nenhuma importância e que as noções de “Deus”, “imortalidade da alma” e “além” não merecem nenhuma atenção. E, no entanto, o próprio fato que ele fale explícita e difusamente desses temas logo no primeiro capítulo de sua autobiografia é extremamente eloqüente e demonstra o contrário. Com efeito, a questão religiosa figura constantemente no centro de todas as suas obras.

Também para o autor de Assim falou Zaratustra a religião é uma engenhosa invenção dos homens, porém não dos fortes para manter sob o seu jugo os fracos como queria Marx, mas dos fracos para pôr um freio na potência dos fortes, dos super-homens. De tal origem da religião, Nietzsche acha confirmação no cristianismo. Aqui os fracos, os humilhados, os oprimidos elevam o seu ideal de fraqueza, de velhacaria, de resignação a ideais e fazem de tudo para constringir também os homens fortes, os potentes, os super-homens a aceitá-lo. “Só o miserável é bom, proclama o cristianismo, o pobre, o fraco, o humilde somente são bons; somente o doente, o necessitado, aquele que produz repulsa é pio. Só a eles é prometida a felicidade e a salvação eterna. Enquanto a vós potentes, aristocratas, a vós é dito que sois para toda a eternidade maus, perversos, vorazes, insaciáveis inimigos de Deus e que, por isso, sois eternamente infelizes, condenados, malditos.

Outra importante forma de crítica da religião foi introduzida neste século por Sigmund Freud mediante a psicanálise. A falta de fundamentos da religião é dada como certa por Freud porquanto, a seu juízo, é coisa óbvia que fora do mundo e do homem não existe nenhum outro ser. Ao estudioso fica, por isso, apenas o problema de explicar como nasceu a “ilusão religiosa”. Para o fundador da psicanálise, ela não nasceu de uma luta de classe entre burguesia e proletariado, como queria Marx, e nem mesmo em conseqüência de uma luta entre fracos e potentes, como sustentava Nietzsche, mas através de um processo de sublimação de uma luta primordial entre os membros do clã doméstico.

No homem, segundo Freud, existiu uma tendência natural para o incesto: relações edipianas primordiais estabeleceram-se entre filhos e mãe. Ora, o pai proibiu tais relações e assim nasceu a proibição, o tabu: proibido é, justamente, o incesto. Mas ao tabu os filhos responderam com um delito primordial: devoraram o pai e lhe roubaram as mulheres. A recordação desse delito no totemismo (que, segundo Freud, é a forma religiosa mais primitiva) é celebrada com um banquete ritual, no qual é devorado o animal sagrado, símbolo da tribo (o totem). Trata-se de um sacrifício rememorativo vicário: através de um ato de culto se repõe aquela tragédia acontecida nos primórdios da humanidade. Nele, a relação com o pai é sempre ambivalente: é, juntamente, uma relação de deferência e de temor. O sacrifício totêmico exerce a dupla função de sopitar o sentido de remorso pela culpa cometida e de reforçar o sentido de potência pela vitória obtida sobre o pai. Ora, o objeto da religião -Deus - é o resultado de tal projeção, fora da psique, da idéia de pai; a idéia deste Ser supremo reflete, sobre o plano cósmico, a polaridade afetiva amor-ódio que os filhos sentem nos confrontos com o pai.

A análise conduzida por Freud conclui fazendo derivar a religião do “complexo de Édipo”, ou seja, da tendência natural do filho homem para possuir a mãe e eliminar o pai. A religião - como a arte, a moral, a política - entra no processo geral de sublimação do instinto da libido por obra do Super-ego. “No complexo de Édipo, escreve Freud na conclusão de Totem e tabú, acham-se juntos os princípios da religião, da moral, da sociedade e da arte e isso em plena conformidade com os dados da psicanálise que vê neste complexo o núcleo de qualquer neurose”. Nada mais do que isso é a religião, senão a “neurose obsessiva universal da humanidade”, um “delito coletivo”.
Outras formas de crítica negativa do fenômeno religioso foram desenvolvidas durante o nosso século pelos existencialistas (em particular por Heidegger e por Sartre) e pelos neopositivistas.

Não se pode estabelecer com segurança quais sejam os pontos de vista de Heidegger com relação à religião. Com efeito, as suas obras mais recentes contêm traços inconfundíveis de misticismo. Uma coisa, porém, está fora de dúvida: segundo o autor de Sein und Zeit, a filosofia não pode dar senão um juízo negativo no que concerne à idéia de Deus. De fato, tal idéia é aberrante tanto nos confrontos da metafísica, porquanto faz decair o problema do Ser no problema de um ente, como também nos confrontos do problema de existência humana, porque a desvia das suas possibilidades autênticas.

Inequívoca é, por seu lado, a posição de Sartre. Ele vê na idéia de Deus uma impossível tentativa de hipostatização da identificação da consciência com o ser do pour-soi com l’en-soi. O seu juízo, o sujeito (o pour-soi) tende ao ideal de uma coisa que seja, com a pura consciência de si mesmo, também fundamento do seu próprio ser em si. Ora, esse ideal é o que se pode chamar Deus. “Pode-se dizer, assim, que o que torna melhor concebível o projeto fundamental da realidade humana é que o homem é o ser que projeta ser Deus. Sejam quais forem os mitos e os ritos da religião, Deus é em primeiro lugar sensível ao coração do homem como o que anuncia e define no seu projeto último e fundamental”. “Toda a realidade humana, diz Sartre no final de L’être et le néant, é uma paixão, porquanto ela (a realidade humana) aponta para perder-se, para fundar o ser e para constituir de uma vez o Ser em-si que foge à contingência para ser o seu próprio fundamento, o Ens causa sui que as religiões chamam Deus. Assim, a paixão do homem é oposta à de Cristo, porque o homem se perde enquanto homem para fazer nascer Deus. Mas a idéia de Deus é contraditória e nós nos perdemos em vão: o homem é uma paixão inútil”.

A última importante tentativa do nosso tempo para dar uma base teórica ao ateísmo é a realizada pelo neopositivismo. Para esse movimento, como é sabido, a filosofia consiste essencialmente na análise da linguagem: só desse modo ela pode determinar a verdade ou a falsidade de uma doutrina. Mas para efetuar a análise da linguagem é necessário antes de mais nada um critério para distinguir as proposições que têm significado das que dele são privadas. Ora, segundo os neopositivistas, os critérios possíveis são somente dois: a análise lógica e a verificação experimental. O primeiro vale para as proposições tautológicas (e serve para estabelecer a verdade lógica; o segundo vale para as proposições de fato (e serve para estabelecer a verdade factual). Portanto, todo o material lingüístico que não seja verificável mediante um desses dois critérios não pode ser conhecido como significativo, ou seja, não se lhe pode assinalar um valor teorético, cognitivo, mesmo se pode explicar uma função importante na ordem da prática (porém não se pode tratar senão de uma função emotiva).

No que concerne ao critério da verificação experimental, Rudolf Carnap, que é o teórico mais brilhante do neopositivismo, define-o assim: “Uma afirmação que não é traduzível em proposições de caráter empírico não é de fato uma afirmação, não diz nada; não é senão uma série de palavras vazias; é simplesmente sem sentido”.

Dessas premissas os neopositivístas tiraram a conclusão, lógica e necessária, de que as linguagens ética, estética e religiosa são privadas de sentido (non-sensical), não dizem nada: são carentes de qualquer valor objetivo. Portanto “dizer que ‘Deus existe’ é uma expressão metafísica que não pode ser nem verdadeira nem falsa. E, pelo mesmo motivo, nenhuma proposição que se intente descrever a natureza de um Deus transcendente pode ter significado literal... Todas as expressões concernentes à natureza de Deus são carentes de sentido (non-sensical)”.

Porém, como ficou dito, nem todos os filósofos modernos se pronunciaram a favor de uma crítica negativa do fenômeno religioso. Antes, muitos expressaram a seu respeito uma apreciação positiva, considerando-o uma das manifestações mais próprias, autênticas e genuínas do espírito humano. Aqui não podemos citar os pontos de vista de todos aqueles que se expressaram nesse sentido. Limitar-nos-emos a referir o pensamento de alguns mais representativos, começando por Kierkegaard.

Contra a concepção hegeliana da religião, a qual vê nela puramente um momento lógico, natural da evolução do Espírito Absoluto e contra a sua subordinação à reflexão filosófica, Kierkegaard proclama que a religião não pode ser reduzida a um momento lógico de um sistema geral de pensamento, porque ela pertence à esfera da existência, da vida. Ao estágio religioso não se alcança através da intuição, como pretendia Hegel, mas mediante a fé. O encontro com Deus não se dá na imediação da visão, mas nas trevas da fé. E essa não é a conseqüência, a conclusão de um arrazoamento, mas é um ato de decisão, que comporta um salto para além de tudo o que se apóia na segurança das leis científicas e dos códigos morais. Sendo carente de qualquer garantia objetiva, a fé é um risco. Para Kierkegaard o risco é um elemento inseparável da verdadeira experiência religiosa: “Sem risco não há fé e quanto maior o risco tanto maior a fé”.

Se bem que a fé é um risco, a sua aceitação não é irracional: “O crente não só possui, mas usa a razão, respeita as crenças comuns, não atribui à falta de razão se alguém não é cristão; mas, no que diz respeito à religião cristã, ele crê contra a razão e, nesse caso, ele adota a razão para ter certeza de que crê contra a razão. . . O cristão não pede aceitar o absurdo contra a razão porque ela perceberia que é absurdo e como tal o afastaria. Ele adota, portanto, a razão para tornar-se consciente do incompreensível e depois se agarra a ele e crê mesmo contra a razão”.

Quando o homem crê em Deus e observa a infinita diferença que separa a natureza divina da sua, então se prostra diante de Deus e o adora. “A adoração é a máxima expressão da relação com Deus de um ser humano. .. O significado da adoração é que Deus é absolutamente tudo para quem o adora”. “O crente que se abandona a Deus deve renunciar a tudo e essa completa renúncia implica sofrimento, sofrimento não só por motivo do despego, mas também porque é consciente de que sozinho não pode fazer nada. O sofrimento é inseparável da fé: ele é a característica da fé”.

Essas singulares e importantes considerações de Sören Kierkegaard acerca do fenômeno religioso no século dezenove despertaram escasso interesse e não conseguiram debicar as teorias dos desmistificadores da religião: Feuerbach, Marx, Comte, Nietzsche.

Maior sucesso conseguiram os expoentes do espiritualismo do começo do século vinte (Bergson, Blondel, James, Scheler), os quais, por um lado, denunciaram os limites do cientificismo, do positivismo e do materialismo, e, por outro lado, propuseram uma visão da realidade tendo a religião como a sua componente fundamental.

Bergson, em As duas fontes da moral e da religião, examina o misticismo grego, o misticismo oriental, o profetismo hebraico e o misticismo cristão. Através da experiência dos místicos ele chega à existência de Deus: essa, já pressentida na especulação filosófica do ímpeto vital (élan vital), se impõe agora de maneira incondicionada. De que modo? Com base no testemunho daqueles que têm a experiência das coisas divinas. É preciso crer nos místicos sobre essas coisas assim como se crê nos médicos e nos engenheiros quando se trata de problemas relacionados com as suas especialidades: uns e outros são peritos; sabem o que dizem.

Para Bergson, alma e corpo, espírito e matéria, razão e intuição são inseparáveis, sendo aspectos complementares de uma mesma e única realidade. Essa doutrina é retomada nas últimas páginas de As duas fontes, onde Bergson sustenta que mecânica (conhecimento técnico das coisas) e mística (experiência religiosa do universo), longe de serem contrastantes entre si, se pedem para completar-se entre si. “O homem, escreve Bergson, não se erguerá sobre a terra se um equipamento potente não lhe fornecer uma base de lançamento. Deve--se especar contra a matéria se quer destacar-se da terra. Em outras palavras, a mística pede a mecânica. Esqueceu-se de notá-lo porque a mecânica acidentalmente se lançou sobre uma outra estrada em cujo término está um bem-estar exagerado, o luxo para poucos privilegiados antes que a libertação para todos... Não só a mística exige a mecânica. É necessário, também, adicionar que o corpo desenvolvido exige a alma e a mecânica exige a mística. As origens da mecânica são provavelmente mais místicas do que se crê; ela não achará a sua verdadeira direção, não prestará serviços proporcionais à sua potência senão quando a humanidade, que foi até agora por ela desviada em direção à terra, conseguir por meio dela endireitar-se e olhar o céu”.

Enquanto Bergson evidencia a função positiva da religião nos confrontos da ciência, Blondel põe em relevo a sua importância capital com relação à filosofia. Para ele, não se dá autêntica filosofia prescindindo da religião, antes, mais exatamente, prescindindo do cristianismo: verdadeira filosofia é somente a filosofia cristã, porque sem o auxílio do cristianismo nenhuma filosofia está em condições de fornecer uma solução satisfatória para os três problemas que mais preocupam o filósofo: o ser, o conhecer e o agir. É próprio da razão discutir esses três problemas, mas é também seu dever reconhecer que somente na revelação de Deus e na sua comunicação da graça se dá a eles uma resposta válida, adequada, segura.

Segundo Blondel, um exame atento e aprofundado da ação conduz logicamente ao reconhecimento da existência de Deus. Com efeito, “a ação está em perpétuo devir, como atormentada pela aspiração de um crescimento infinito. . . Nós somos constrangidos a querer tornarmo-nos o que por nós mesmos não podemos nem atingir nem possuir ( . . . ). É porque tenho a ambição de ser infinitamente que sinto a minha impotência: eu não me fiz, não posso o que quero, sou constrangido a superar-me. . . Ora, esse empurrão para o infinito, que dilata continuamente a minha ação é Deus. Ele não tem outra razão de ser para nós senão porque é o que não podemos ser nem fazer com as nossas forças unicamente”. Nós somos a desproporção entre o ideal e o real, mas tendemos para a sua identidade: tal identidade é o próprio Deus.

Para provar a possibilidade da graça e mostrar que ela constitui a solução mais adequada do problema do nosso ser, Blondel parte para o estudo das características de que ele se reveste tanto em nós quanto nas outras criaturas, que é a de ser finito. Ora, defronte à finitude nasce na criatura um sentimento de insatisfação e um desejo de superar os próprios limites, um desejo de atingir o infinito: a constatação da finitude faz nascer a exigência do infinito, “porque a idéia do limite nasce e não pode nascer em nós senão pelo testemunho de que o infinito se entrega a si mesmo na nossa finitude”. Mas o desejo da criatura permanece ineficaz, porque entre criatura e criador há incomensurabilidade e a criatura é consciente disso: a criatura é consciente de que o absoluto tem um modo de ser e de conhecer que transcende o seu ser e o seu conhecer, é consciente da sua total dependência com relação a ele e que, portanto, o abismo que os separa pode ser ultrapassado somente por Deus, gratuitamente. Em outras palavras, a insatisfação que vibra no coração do homem postula não só a existência de um Ser absoluto, mas também a existência da ordem sobrenatural da graça.

Uma hábil defesa do valor e do significado da experiência religiosa foi conduzida pelo filósofo americano Willian James, em particular na obra As várias formas da experiência religiosa. A sua defesa é baseada em motivações de ordem mística como em Bergson, mais do que em especulações de ordem teórica como em Blondel. James não crê que seja possível transformar a religião em um sistema de proposições científicas demonstráveis apoditicamente: “A pretensão da filosofia é que a religião possa ser transformada em uma ciência apta a convencer universalmente. O fato é que nenhuma filosofia religiosa convenceu efetivamente a massa dos pensadores. (...) Sinceramente, creio que se deva concluir que a tentativa de demonstrar através de processos puramente intelectuais a verdade das posições da experiência religiosa imediata seja absolutamente sem esperança. ( . . . ) Nós devemos, por isso, parece-me, dar adeus definitivo à teologia dogmática. Sinceramente, a nossa fé deve passar sem aquela garantia”.

Para James, o fundamento da religião não é a religião, mas a fé, o sentimento e outras experiências particulares como a oração, conversações com o invisível, visões, etc. “O que sustenta a religião é algo de diferente das abstratas definições e dos sistemas de fórmulas logicamente concatenadas, e algo de diferente das faculdades de teologia e dos seus professores. Todas essas coisas são efeitos posteriores, adjunções secundárias a uma massa de experiências religiosas concretas, que se reúnem ao sentimento e à conduta e que se renovam in saecula saeculorum na vida dos particulares, humildes homens. Se me perguntais o que são essas experiências, direi que elas são conversações com o invisível, vozes e visões, respostas à oração, mudanças afetivas, libertações do medo, concessões de ajuda”.

Tudo isso, porém, não significa que a religião seja carente de conceitos e de doutrinas. Pelo contrário, James reconhece que uma religião que seja verdadeiramente autêntica deve logicamente olhar para um certo tipo de metafísica ou de cosmologia teística e que, por isso, a fé em um Deus cujos atributos são essencialmente “morais” ou relacionados com a experiência humana pode ser defendida como um elemento necessário da experiência religiosa, se bem que não possa servir como base de uma teologia racional.

Max Scheler, um dos mais conhecidos estudiosos da religião, pôs este fenômeno no centro da sua pesquisa filosófica.

Em polêmica com o positivismo, que reduzia a religião a um momento transitório do desenvolvimento progressivo da história humana, Scheler não só critica o principal erro do positivismo, que consiste em desconhecer a constitutiva e originária tendência religiosa do homem, mas critica também a teoria positivista do nascimento da religião por um processo evolutivo que vai do fetichismo ao animismo, à magia, etc., e do politeísmo ao monoteísmo. Reportando-se pela parte histórico-positiva aos estudos de W. Schmidt, em particular à sua tese do monoteísmo primitivo, Scheler realça, por sua conta, como, fenomenologicamente, “também o ‘ídolo’ mais primitivo apresenta, ainda que rudemente, a essência indedutível do divino, qual esfera global do ser absoluto fortalecido com todas as características do santo”. Nele e através dele, a intenção religiosa entende, sente, vê a totalidade do ser absoluto e santo e não um simples objeto natural no qual, por entropatia, introduz uma vida psíquica.

Mas, se por uma parte Scheler repele os pontos de vista dos desmistificadores da religião, por outra não está nem mesmo disposto a subscrever os argumentos com que geralmente se quer justificá-la. Em particular ele critica as tentativas de fundar a verdade da religião recorrendo a critérios extra-religiosos, como a metafísica, a moral, a cultura e conclui com uma proclamação para procurar o fundamento da verdade da religião no próprio fenômeno religioso. “Eu sustento - escreve Scheler - que todas essas tentativas de achar fora da própria religião um critério com que se possa medir a verdade da religião são por princípio erradas. Até mesmo tudo que a religião pode significar para os valores extra-religiosos (como as ciências, a moral, o estado, o direito, a arte) tem efetivamente um significado só se a religião é reconhecida e vivida não em função daquele significado, mas sim para a evidência e a certeza de que nela própria se demoram.
Os critérios para a verdade e para todo outro valor gnosiológico da religião pedem, portanto, ser achados partindo da própria essência da religião e não podem ser tirados de nenhuma esfera extra-religiosa”.

Como acontece para cada outra esfera do ser, também para o que concerne à esfera religiosa Scheler sustenta que o fundamento último da sua aceitação seja a evidência imediata do objeto que se dá como tal em atos de conhecimento específico, no caso, nos atos religiosos. Portanto, o fundamento último da religião não pode ser outro que não a automanifestação de Deus. Tal automanifestação da realidade pessoal de Deus, segundo Scheler, pode acontecer só através dos homens religiosos, que culminam no “santo originário”, que ele individualiza na figura de Cristo.

b) A crítica teológica

Defronte à religião, também os teólogos se enfileiraram em duas alas. Como os filósofos, os teólogos católicos assumiram uma postura positiva, vendo na religião um vínculo natural, legítimo e obrigatório do homem para com o seu Criador. Ao contrário, os teólogos protestantes assumiram uma postura crítica, de refutação e de condenação, considerando a religião como a aberração mais grave e perniciosa da mente e do coração do homem, a expressão mais clara da sua soberba.

A posição dos teólogos católicos recebeu uma formulação oficial no Concílio Vaticano I. Ele condenou o ateísmo como um dos mais “perniciosos erros do tempo”, antes o pôs na frente de toda a série de todos os erros, acrescentando ser ele fonte de muitíssimos efeitos desastrosos, em todos os setores do pensamento, da vida e da ação. Declarou, além disso, sem hesitação, que o ateísmo é sempre reprovável e que, portanto, não pode ser aceito sem culpa pelo indivíduo. E como razão de tal culpa aduzia a soberba do homem, a sua mania de autonomia afirmada especialmente na Idade Moderna, não menos que o desdenhoso subjetivismo que a permeia inteira. E, assim, contra quem não reconhece Deus, lançou a seguinte excomunhão: “Si quis dixerit, Deum unum et verum, creatorem et dominum nostrum per ea quae facta sunt, naturali rationis humanae lumine certo cognosci non posse, anathema sit”.

No que concerne à postura negativa e crítica dos teólogos protestantes, merecem ser referidos os pontos de vista de Barth, Bultmann e Bonhoeffer, por causa da sua originalidade e da sua grande influência no pensamento contemporâneo.

A tese do valor negativo da religião e da teologia natural, que é também uma das teses centrais dos Reformadores (Lutero e Calvino), foi reproposta com vigor por Karl Barth. Para esse teólogo, diante de Deus não só o mundo, a história e a filosofia, mas também a religião e a especulação religiosa que se desenvolve são problemáticas, inautênticas, perversas, porque Deus não é e não pode ser nunca objeto das faculdades humanas cognitivas e da experiência humana, da intuição e do sentimento, mas é o sujeito soberanamente livre de cada desenvolvimento humano, livre na sua própria ação auto-reveladora e sustentadora da fé. O teólogo suíço não nega que a religião natural possa chegar a um certo conhecimento de Deus, mas ele condena esse conhecimento como falso e danoso, porque constitui um obstáculo ao verdadeiro conhecimento de Deus fornecido pela revelação. O conhecimento natural da existência de Deus é de impedimento, antes que de ajuda, ao conhecimento cristão da Trindade. O conhecimento natural de Deus como causa suprema obscurece o conhecimento cristão de Deus como criador. Por esse motivo, Barth rejeita “qualquer ligação entre Deus e o homem, isto é, qualquer conhecimento da palavra de Deus por parte do homem, e, portanto, de qualquer capacidade de conhecer a palavra de Deus, no sentido de que tal capacidade estaria em condições de estabelecer uma ligação com Deus, mesmo sem a Palavra de Deus”.

Em uma seção de Kirchliche Dogmatik (I/2), intitulada “A revelação de Deus, eliminação (Aufhebung) da religião”, Barth distingue a fé cristã fundada exclusivamente no que Deus revelou de si mesmo por meio de Jesus Cristo, da religião natural, busca inútil da verdade e do sentido último da vida, condenada à falência porque Deus é o “totalmente outro” e os homens não teriam podido saber nada dele se ele, na sua suprema condescendência, não tivesse ido ao seu encontro e não se tivesse manifestado. A religião é o esforço vão que fazem os hipócritas para se criar uma verdade sem ajuda da graça. Trata-se evidentemente de uma falta de fé pecaminosa. A religião cristã não é de fato uma religião e não é de nenhum modo comparável às religiões pagãs: não se pode fazer outra coisa senão contrapô-la a elas. A fé é fundada na revelação que Deus fez de si mesmo, não na angústia do homem ou nas suas experiências dos fenômenos deste mundo. Tudo vem da fé e a fé vem de Deus; nada vem do homem, porque o homem caiu: é pecador, é cego. Todas as práticas de piedade com que quem se diz cristão transforma a fé em religião são abominações aos olhos de Deus.

Na sua crítica da religião, Rudolf Bultmann, mais que a razões de caráter teológico, como Barth, faz apelo a razões de ordem filosófica. Como Comte, ele considera a religião um resultado da mentalidade ingênua, imatura da humanidade antiga, a qual, ignorando a causa verdadeira, autêntica das coisas, excogitou toda uma série de seres sobrenaturais: acima de nós, um céu povoado por uma hierarquia de anjos sob o domínio direto de Deus e sob nós um inferno repleto de espíritos malignos. “Tais potências inserem-se nos acontecimentos naturais não menos que no pensamento, na vontade e na ação do homem; o milagre, por isso, não é uma coisa rara. O homem não é senhor de si; os demônios podem possuí-lo; Satanás pode sugerir-lhes pensamentos maus; e Deus pode também infundir-lhes os próprios pensamentos e a sua vontade, fazer-lhes conhecer figuras celestes e ouvir a sua palavra de comando e de conforto, dar-lhes a potência sobrenatural do seu espírito. A história, portanto, não segue um curso constante e regular, mas recebe movimento e direção das forças sobrenaturais”.

Mas, a partir do momento em que a ciência forneceu a explicação verdadeira, efetiva dos fenômenos deste mundo, a hipótese religiosa tornou-se inútil, supérflua. Dessas premissas, Bultmann elaborou a sua teoria da demitização do cristianismo: ela quer libertar o Evangelho da componente religiosa de que o cobriram os autores neotestamentários, qualificando-a como elemento mítico e metafísico.

Tarefa da demitização é justamente separar o elemento mítico-metafísico do conteúdo salvífico do Evangelho. Essa tarefa, para Bultmann, é muito urgente, porquanto da sua atuação depende a salvação do próprio cristianismo. Com efeito, o cristianismo moderno, não tendo mais uma mentalidade mítico-metafísica, mas a científica, não pode acolher a forma original do cristianismo, porque inatual e superada. Tal forma é superada com uma outra que reflita a autocompreensão e a visão do mundo que tem o homem de hoje. Essas, segundo Bultmann, acharam a expressão perspícua na filosofia de Heidegger e ele a escolheu, portanto, para interpretar a mensagem cristã para a nossa geração.

Dietrich Bonhoeffer fez seus os pontos de vista de Barth e Bultmann a respeito da religião e, por razões tanto teológicas (o abismo em que naufragou a razão depois da queda original) quanto culturais (a maturidade do homem moderno), desenvolveu uma crítica inexorável do fenômeno religioso. Numa conhecidíssima página de Resistência e entrega, Bonhoeffer descreve de modo extremamente incisivo a superação da religião no momento histórico atual: “O tempo em que se podia dizer tudo com palavras teológicas ou pias passou, assim como passou o tempo da interioridade e da consciência, isto é, o tempo da religião em geral. Vamos ao encontro de uma época completamente não religiosa; os homens, assim como são, não podem mais ser religiosos. Mesmo aqueles que se definem sinceramente ‘religiosos’ não o praticam absolutamente; por ‘religioso’ eles entendem provavelmente algo de completamente diferente. Toda a nossa predicação e teologia cristã do século vinte é construída no a priori religioso do homem. O ‘cristianismo’ foi sempre uma forma (talvez a verdadeira forma) da ‘religião’. Mas quando um dia será evidente que esse ‘a priori’ não existe de fato, mas que foi uma forma expressiva do homem, historicamente determinada e transitória, quando, isto é, os homens se tornarão realmente não religiosos de maneira radical - e eu acho que já, mais ou menos, é o nosso caso - o que significará então isso para o cristianismo? E subtraído o terreno sobre o qual se apoiava até agora todo o nosso ‘cristianismo’”.

Portanto o teólogo e o pastor de almas que querem continuar a ação do Cristo e querem levar a sua Nova de salvação aos homens do nosso tempo devem procurar propor tal Nova e a própria figura do Cristo nas categorias não religiosas e atéias na cultura moderna.

Movido por essas convicções, Bonhoeffer tentou essa difícil empresa. Ele, assim, realizou uma nova figura do Cristo, uma figura não mais enquadrada dentro de uma moldura teológica, mas simplesmente humanística e secular. Para Bonhoeffer, o que caracteriza o Cristo de modo inequívoco e que pode garantir um seguro fundamento para a nossa fé não é a divindade, mas a caridade, a submissão total, o seu completo “ser-para-os-outros”. “O existir-para-os-outros de Jesus - afirma o mártir dos nazistas - é a tomada de consciência da transcendência. Da liberdade de si mesmo, da existência para os outros até a morte brotam a onisciência, a onipotência e a onipresença. Fé é participação neste ser de Jesus (Encarnação, Cruz, Ressurreição). A nossa relação com Deus não é uma relação ‘religiosa’ com o Ser mais alto, mais potente, melhor: essa não é verdadeira, autêntica transcendência; a nossa relação com Deus é uma nova vida no existir para os outros, na participação no ser de Cristo. O transcendente não tem deveres infinitos, inatingíveis, mas os dados, um de cada vez, atingíveis. Deus em forma humana, não como nas religiões orientais em forma ferina, o Monstruoso, Caótico, Longínquo, Espantoso: mas nem mesmo nas formas conceituais do Absoluto, do Metafísico, do Infinito, etc., e nem mesmo a figura grega do deus-homem que é o homem em e para si, mas o homem para os outros, portanto, o Crucifixo”.

As críticas à religião elaboradas pelos maiores expoentes da teologia protestante contemporânea (Barth, Bultmann, Bonhoeffer) foram retomadas e levadas às extremas conseqüências pelos seus discípulos, em particular pelos teólogos da “Morte de Deus” (Hamilton, Altizer, van Buren): aplicando com lógica férrea os princípios da absoluta alteridade de Deus, da maturidade do homem moderno e da demitização, eles concluíram que somente uma proclamação a-religiosa e atéia do cristianismo pode ser acolhida pelo homem do século XX.

De tal modo, os teólogos protestantes na sua crítica negativa do fenômeno religioso não evitaram fazer seus os argumentos que os filósofos da desmistificação da religião haviam posto à sua disposição.

c) A crítica histórica, a análise fenomenológica e a pesquisa sociológica

De um século para cá, os fenômenos religiosos foram tomados em consideração além de pelos filósofos e pelos teólogos, também pelos historiadores, pelos fenomenólogos e pelos sociólogos: valendo-se cada um do próprio método (os historiadores da crítica histórica, os fenomenólogos da análise eidética e os sociólogos da pesquisa das relações sociais), eles buscaram esclarecer a origem e a natureza desse fenômeno singular: a religião. A nós, não nos é consentido traçar aqui um quadro completo das suas teorias; limitar-nos-emos a assinalar algumas entre as mais importantes e influentes. O grande esquadrão dos historiadores da religião abre-se com o nome de Edward B. Tylor (1832-1917). Ele, vivendo numa época em que triunfavam as teorias evolucionistas de Darwin e Spencer, sustenta que pode aplicar o princípio da evolução também às religiões e explicar com ele as suas origens e desenvolvimentos. Para ele, no campo religioso, as coisas caminharam do mesmo modo que no campo biológico, ou seja, primeiro se apresentaram as formas mais simples e imperfeitas e depois as mais complexas e perfeitas. Portanto, a primeira forma religiosa praticada pela humanidade foi o animismo, que é justamente a forma mais rude, elementar de todas. Tylor sustenta que a concepção de alguns fenômenos (sono, morte) levaram o homem primitivo a formular o conceito de algo diverso do corpo humano, isto é, a alma. O conceito de alma, adquirido pelo homem através dessa observação, refere-se só à alma humana. Mas bem rápido começou a tomar corpo a crença da migração das almas, à qual seguiu-se o cuidado para com os defuntos, como o culto dos antepassados. Mais tarde, desenvolveu-se o conceito de uma retribuição na outra vida. Uma fase sucessiva foi caracterizada pela crença de que todos os elementos da natureza fossem causados ou controlados pelos espíritos; daí a veneração da natureza, isto é, da água, das plantas, dos bosques, dos rios, das várias espécies de animais. Assim se chegou a venerar as divindades da espécie, atribuindo a natureza divina não a um único indivíduo concreto, mas à espécie inteira. Foi sobre essas premissas que se desenvolveu o politeísmo, como culto das divindades que governam os vários fenômenos naturais (como a chuva, os raios, os trovões, o vento, etc.) ou que representam a natureza (terra, lua, sol) ou que são antepostas às várias fases e funções da vida humana (guerra, trabalho, divertimento) ou enquanto culto dos antepassados divinizados. Pouco a pouco, porém, entre as várias divindades emerge uma superior, mais perfeita, mais potente que todas as outras. Assim, gradualmente, teve origem o monoteísmo.

A tese de Tylor, depois de uma primeira fase em que encontrou vastíssimos consensos, foi criticada e rejeitada por vários estudiosos, em particular por Lang, Schmidt e Pettazzoni e, mais recentemente, por Griaulle e Eliade.

Andrew Lang, para refutar a opinião de Tylor segundo a qual a origem da religião é procurada no animismo, aduzia o argumento da presença de uma fé em um Deus supremo existente junto a povos muito primitivos, como os Australianos e os Andamaneses. Tylor sustentava que semelhante crença não podia absolutamente ser original e que a idéia de Deus provinha da crença nos espíritos da natureza e do culto das almas dos antepassados. Mas entre os Australianos e os Andamaneses, Andrew Lang não achou nem o culto dos antepassados nem o da natureza.

Muito impressionado com as descobertas de Lang, Wilhelm Schmidt buscou corroborá-las fazendo uso de um método histórico-crítico mais rigoroso e seguro do que o do estudioso anglo-saxão. O seu método consistia em distinguir e esclarecer as estratificações históricas nas assim chamadas culturas primitivas. Na sua obra monumental Ursprung der Gottesidee (Origem da idéia de Deus), ele procurou provar como a crença em um Deus supremo estava presente nos estratos mais antigos das populações da Austrália, enquanto o totemismo caracteriza só a tribos culturalmente mais jovens. Segundo Schmidt, a Urreligion consistia na crença num eterno, onisciente e benéfico Deus supremo, criador de todas as coisas, que se supunha vivesse no céu. Ele conclui que no princípio existia por toda parte uma espécie de rmonotheismus, mas o ulterior desenvolvimento das sociedades humanas fez com que se degenerasse e, em muitos casos, quase se extinguissem as crenças originais.

Formado sob a influência do historicismo de Croce, Raffaele Pettazzoni considera a religião como um fenômeno puramente histórico, mas ao invés de procurar as suas origens e naturezas em alguma tribo primitiva como haviam feito Lang e Schmidt, ele busca a sua explicação no estudo das religiões em geral. Pettazzoní considera erradas algumas conclusões de Schmidt acerca da origem (por revelação) e da natureza (monoteística) da religião porquanto tornam o presente indevidamente antigo; em outras palavras, atribuem aos primitivos atuais a permanência de formas culturais próprias dos primeiros homens. Quanto à origem da religião, a seu juízo não teve lugar através de uma revelação primitiva, mas através da observação dos fenômenos da natureza: o nascimento do sol, a chuva, a aparição das estrelas, a mutação do céu, etc. . . Quanto, pois, à natureza da religião da humanidade primitiva, ele não está disposto a aceitar nem a tese animística de Tylor nem a monoteística de Schmidt. Da análise dos atributos de celestialidade e de supremacia que as populações primitivas atribuem à divindade, ele sustenta que se pode concluir a favor de uma espécie de concepção monoteística, mas de forma ainda pesadamente antropomórfica (porque celestialidade é referida imediatamente ao céu e supremacia aos cimos das montanhas) e por isso polemiza com Schmidt sustentando ser indevidamente atribuída aos primitivos a qualificação de monoteístas.

Entre os autores que enfrentaram o fenômeno religioso com os instrumentos da crítica histórica, recordamos também Rudolf Otto, porquanto uma parte considerável de seus estudos é, efetivamente, de índole histórica (neles ele explica entre outras coisas em que sentido a história das religiões poderia ter uma tarefa importante na renovação da cultura ocidental contemporânea). Mas o seu nome está ligado sobretudo a uma obra, Das Heilige (o sagrado), que é essencialmente de natureza filosófica e psicológica. Nessa obra, ele descreve com agudeza extraordinária as diferentes modalidades da experiência religiosa. Ela se configura sobretudo como sentimento do numinoso. O numinoso é uma categoria que faz parte da categoria mais complexa do “sagrado”. É uma categoria totalmente sui generis, que é completamente inacessível à compreensão conceptual e, enquanto tal, constitui um arreton, algo de indefinível, inefável, exatamente como o “belo” num outro plano. Nesse sentido, ela pertence ao domínio do “irracional” e representa o elemento mais íntimo que pertence a todas as religiões. O numinoso, por sua vez, assume dois aspectos que o caracterizam de modo inequívoco:

a) o aspecto de mysterium tremendum;
b) o aspecto de mysterium fascinans.

O primeiro constitui o aspecto repulsivo do numinoso, enquanto o segundo dele representa o aspecto atrativo ou “fascinante”.

Porém, o sagrado, além de um aspecto “irracional”, representado pela categoria do numinoso, reveste-se também de um aspecto “racional”: ele acha expressão sobretudo nos “símbolos” e nos “dogmas”. Graças a essas categorias, através de “sinais” estabelecidos e universalmente válidos, o sagrado adquire uma estrutura sólida que lhe confere o caráter de “doutrina” rigorosa, objetivamente válida, e o opõe por isso mesmo as extravagâncias do “irracionalismo” fantástico e sonhador.

Até a primeira guerra mundial, os autores se serviram para o estudo da religião, como se viu, dos instrumentos da filosofia, da teologia e da crítica histórica. Mas depois que Husserl formulou as regras de um novo método, o fenomenológico, alguns começaram a servir-se de tal método também para o estudo da religião. O primeiro a fazê-lo com sucesso foi Max Scheler, cujo pensamento já expusemos mais acima.

O exemplo de Scheler foi seguido por muitos outros estudiosos, mas dois se destacaram sobre todos: Gerardos van der Leeuw e Mircea Eliade.

Van der Leeuw levou a fenomenologia a método exclusivo para o estudo da natureza e da essência da religião, de que procurou aprender a “intencionalidade” mediante uma descrição pormenorizada e penetrante dos dados religiosos. Ele demonstrou a irredutibilidade das representações religiosas a funções sociais, psicológicas ou racionais e refutou os preconceitos racionalistas que procuram explicar a religião através de algo de diferente. Para van der Leeuw, a tarefa principal da fenomenclogia da religião é o de explicar as estruturas internas dos fenômenos religiosos. Ele considerou erroneamente poder reduzir a totalidade dos fenômenos religiosos a três Grundstrukturen (estruturas de bases), isto é, dinamismo, animismo e deísmo.
Mircea Eliade é um dos mais autorizados estudiosos do fenômeno religioso em todos os seus múltiplos aspectos. Na base da sua investigação de tal fenômeno, ele põe o princípio: a ordenação cria o fenômeno. Isso significa que, para ser entendido e interpretado corretamente, um fenômeno deve ser colocado e examinado segundo a escala que lhe é própria. A esse respeito ele evoca o exemplo de um grande estudioso francês, Poincaré, o qual se perguntava: “Um naturalista que houvesse estudado o elefante somente no microscópio poderia acreditar que o conhece suficientemente?” O microscópio revela a estrutura e o mecanismo das células, que são idênticas em todos os órgãos pluricelulares e o elefante é, certamente, um organismo pluricelular, mas isso não basta para conhecer o elefante! Assim, um fenômeno religioso resultará tal somente com a condição de ser entendido no próprio modo de ser, quer dizer, somente com a condição de que venha a ser estudado numa escala religiosa. Girar em volta do fenômeno por meio da fisiologia, da psicologia, da sociologia, da lingüística significa fugir ao elemento único e irredutível que contém: o seu caráter sagrado; e isso embora considerando que não existem fenômenos religiosos absolutamente “Puros”, porque, sendo um fato humano, a religião é também um fato social, lingüístico, etc. Seria, portanto, inútil e ineficaz apelar para certos princípios reducionísticos e desmistificar o comportamento e as concepções do Homo religiosus, demonstrando, por exemplo, que se trata de produções do inconsciente ou de esquemas surgidos por razões sociais, econômicas, políticas, etc. Baste um exemplo: “Em certas culturas arcaicas ou tradicionais, o templo, a casa, a vila são considerados como situados no ‘centro do mundo’. Não há sentido em buscar ‘desmistificar’ semelhante crença tentando chamar a atenção do leitor para o fato de que não existe um centro do mundo e que, desse modo, a multiplicidade de tais centros é uma noção absurda porque contraditória. Ao contrário, só tomando em consideração esta crença e buscando esclarecer todas as suas implicações cosmológicas, rituais e sociais pode-se atingir a compreensão da condição existencial de um homem que crê estar no centro do mundo”.

De tal modo Mircea Eliade chega à conclusão também científica de que o sagrado é um elemento estrutural da consciência e não um estágio da história e, por isso, não poderá nunca ser esquecido. “O homem total não é nunca totalmente dessacralizado e é duvidoso que isso seja de alguma forma possível. Ao nível da vida consciente, a secularização tem muito sucesso: as velhas idéias teológicas, os dogmas, as crenças, os rituais, as instituições, etc, são progressivamente privadas de significado. Mas nenhum homem normal e dotado de vitalidade pode ser reduzido à sua atividade consciente e racional. . .

E, com efeito, também na sociedade moderna, tão saturada de secularização, afloram em toda parte fenômenos de redescoberta dos sagrados: esses não compreendem só os fenômenos que têm claramente um caráter religioso, mas também outros fenômenos que pretendem a recuperação das dimensões religiosas de uma autêntica e significativa existência humana no universo.

Uma das ciências humanas que neste século fez maiores progressos é a sociologia. Era, pois, natural que as suas técnicas fossem aplicadas também ao estudo da religião. De fato, assim agiram ultimamente muitos autores: Berger, Luckmann, Acquaviva, Herberg, Spiro, Horton, etc.
Para dizer a verdade, um importante estudo sociológico da religião fora já realizado no início do século por Emile Durkheim. Tendo por base pesquisas sociológicas, ele havia concluído que a religião é uma projeção da experiência social. Estudando os australianos, notara que o totem simbolizava contemporaneamente a sacralidade ou o sagrado e o clã. Disso argumentara que o sagrado ou “Deus” e o grupo social são uma única coisa. A explicação da natureza e da origem da religião por parte de Durkheim foi duramente criticada por alguns eminentes etnólogos. Goldenweiser salientou que as tribos mais simples não têm clã nem totem.

Aqueles que enfrentam hoje o fenômeno religioso com o método sociológico se valem de técnicas mais avançadas e rigorosas do que as de Durkheim e conseguem, portanto, resultados menos discutíveis do que es do célebre estudioso francês.

Muito interesse suscitaram e continuam a suscitar os estudos do sociólogo alemão Thomas Luckmann, cujo pensamento buscaremos resumir brevemente aqui. Quatro são as conclusões principais das suas pesquisas:

I. A religião não é algo de secundário, periférico e nem mesmo algo de setorial com relação a uma estrutura social. Pelo contrário, ela constitui o núcleo primário e fundamental da interpretação que tal estrutura dá à realidade. A religião “é a forma interior da concepção do mundo de uma sociedade”.

II. Existem duas formas principais de religião, a religião “elementar” e a religião “especializada”. A religião elementar (ou originária) é “a ordem significativa”, “o complexo significativo” (Sinnzusammenhang) que regula a existência social humana, antes que a função de indicar o sentido último das coisas seja reservada a uma instituição particular. “Tudo somado, a característica socialmente determinante da religião deve ser procurada na sua função de dar um sentido à conduta da existência humana, que com isso se transcende. A tal função corresponde, estruturalmente, a forma interior da concepção do mundo de uma sociedade. Essa última é a forma social primária e fundamental da religião. Ela é universal”. A religião especializada consiste nas cristalizações históricas da forma absoluta da religião. Na religião especializada, “o simbolismo que representa o conteúdo central da concepção da existência obtém uma estrutura própria”, torna-se um mundo distinto dos outros mundos, dos outros aspectos e das outras estruturas da sociedade. A passagem da religião elementar para a religião especializada acontece quando a ordem sagrada é nitidamente separada dos outros níveis da sociedade. Então, “à função religiosa elementar da visão do mundo vem a suceder-se a função especial e exclusiva das representações religiosas”. Os reflexos concretos de tal passagem da religião elementar para as religiões especializadas são ilustrados por Luckmann nos termos seguintes: “Separação das representações religiosas significa que, dentro da visão que se tem do mundo, se determina uma polaridade entre duas esferas principais e que os modelos culturalmente determinantes da experiência subjetiva vêm a ser marcados por uma análoga polaridade. A relação entre a vida quotidiana e o sagrado torna-se indireta e apenas o significado ‘último’ das experiências habituais, ordinárias, além naturalmente das experiências ‘extraordinárias’, que quebram a routine da vida quotidiana, são consideradas referíveis ao nível sagrado da realidade, ao qual é freqüentemente conferido um status de sobrenaturalidade. O significado ordinário da conduta quotidiana, vice-versa, é determinado menos rigidamente com relação à lógica da ordem sagrada. O mundo da vida quotidiana dá, pois, origem a sistemas de referência mais imediatamente práticos”.

III. Nas sociedades arcaicas ou “tradicionais”, “as representações religiosas penetram em instituições como o parentesco, a divisão do trabalho e a regulamentação e exercício do poder. Em tais sociedades, a ordem sagrada legitima a conduta em toda sorte de situações sociais e confere significado ao curso inteiro da existência individual. Por isso, nelas não há nada - inclusive a ecologia, a economia e os sistemas de conhecimento - que se possa entender plenamente sem se referir à religião”. Enquanto nas sociedades evoluídas e nas modernas o sagrado assume uma colocação distinta e, por assim dizer, visível em um restrito segmento da estrutura social. É interiorizado em processos de socialização específicos que variam em função de uma estrutura social complexa e de um sistema de estratificação diferenciado, em que as instituições religiosas adquirem diferentes graus de especialização. Pode-se, então, dar que na própria sociedade moderna se formem simultaneamente numerosas instituições especializadas. Quando isso ocorre, a relação da consciência individual com o sagrado torna-se complicada e difícil, porque “a ordem sagrada não simboliza mais de modo unívoco a função religiosa elementar da visão do mundo”. “Os sistemas subjetivos dos conceitos e dos valores com significado ‘último’ não são mais transmitidos através de um processo que também só se assemelhe a um processo homogêneo de socialização, que permaneça estável por várias gerações, mas são sempre mais construídos subjetivamente, em processos quase autônomos de socialização secundária”. O resultado dessa situação é “a decomposição do nexo significativo religioso institucionalmente estabelecido”.

IV. A crise das religiões especializadas tradicionais deu origem a novas interpretações religiosas da realidade. Segundo Luckmann, o conteúdo fundamental de todas as novas interpretações é a “autonomia do indivíduo”. Essas interpretações nascem na esfera privada e são “dramatizações do indivíduo subjetivamente autônomo em busca da realização e afirmação de si mesmo”. “A temática da concepção moderna do mundo simboliza o fenômeno histórico-social e estruturalmente fundamentado do individualismo”. Mas, para Luckmann, essa aspiração ao individualismo é ilusória e é continuamente frustrada. Ele é do parecer de que o homem da sociedade moderna “torne-se pessoa somente em mínima parte”. “O indivíduo na sociedade moderna tem muita liberdade (irrelevante) e pouca forma interior durável... Que esse fato tenha conseqüências para com a ordem social e para com a objetivação do espírito na sociedade humana é evidente, mesmo se não se podem prever todas as suas possibilidades e todos os seus perigos”.

3. Definição da religião

“Todos os que se ocupam da ciência da religião - nota A. Lang

Uma boa definição, a meu ver, poderia ser a seguinte: “A religião é o conjunto de conhecimentos, de ações e de estruturas com que o homem exprime reconhecimento, dependência, veneração com relação ao Sagrado”.

A definição, como se vê, compreende dois elementos, um a respeito do sujeito e outro a respeito do objeto. Quanto ao sujeito, ela indica a postura que o homem assume quando se exprime religiosamente. Com efeito, nem todas as relações com o Sagrado são atividade “religiosa”. Se, por exemplo, se toma por objeto de pesquisa o processo de transformação e de desenvolvimento, as manifestações e as influências das religiões, não se pode prescindir do objeto da experiência religiosa, embora nos movamos no plano da história e não da religião. “Pode-se falar de um ato religioso, sobretudo de um ato religioso fundamental, apenas quando o homem assume de frente ao Sagrado e ao Divino uma postura subjetiva totalmente particular, isto é, quando é emotivamente atingido e atraído pelo objeto e entra em contato pessoal com ele. Esse é o lado psíquico ou interior da religião”. Como ficou dito, o aspecto subjetivo do fenômeno religioso é constituído pelo reconhecimento da realidade do sagrado, pelo sentimento de total dependência a seu respeito e na atitude de veneração para com ele.

Essa definição indica aquilo que caracteriza o objeto, de forma exclusiva, isto é, de ser Sagrado. Sagrado é um conceito primário, fundamental, como os conceitos de ser, de verdade, de bem e de belo e, portanto, não pode ser explicado ulteriormente, reportando-nos a categorias estranhas à esfera religiosa. Sobre esse ponto, parece-me que Scheler, van der Leeuw, Eliade, Otto, Luckmann tenham razão. Mas nem por isso deve ser considerado um conceito não suscetível de alguma elucidação. De fato, no interior da esfera religiosa o Sagrado assume características próprias, inconfundíveis, que permitem descrevê-lo de modo inequívoco. Entre as suas características mais perspícuas recordamos sobretudo as que foram tão bem evidenciadas por Otto: a numinosidade, a misteriosidade, a majestade e o fascínio. Mas uma sua característica importante é também esta: a objetividade.

O Sagrado, enquanto permanece Sagrado e, portanto, objeto da religião, não é nunca considerado um achado da fantasia humana, uma projeção e hipostatização das necessidades, dos desejos e dos ideais do homem. O ato religioso está apontado para uma realidade efetivamente existente: “sempre os conteúdos religiosos se apresentam com a pretensão de ter consistência e validez também fora da consciência e da experiência religiosa”. A transcendência: também se não é colocado fora do mundo, o Sagrado é sempre considerado algo que supera infinitamente o próprio mundo e tudo o que no mundo está compreendido, particularmente o homem. A axiologia assume também o papel de característica importante: o Sagrado representa o valor supremo ao qual se subordinam todos os outros valores. Enfim, a personalidade, que assume o mesmo caráter importante das supracitadas características: o homem religioso não trata com um objeto, mas com um Tu, com uma pessoa. “Há alguém em frente a ele. Eu experimento um Tu. E eu o imagino para mim sob a forma de um demônio e de um deus”.

Determinada desse modo a essência da religião, torna-se evidente que ela se distingue da filosofia, da arte e da moral. O que a distingue da filosofia é sobretudo o elemento subjetivo; de fato, tanto a religião quanto a filosofia se ocupam do Sagrado, do Divino, da “realidade última”, para adotar uma expressão cara a Tillich, mas o fazem de um modo totalmente diferente. A filosofia procede abstratamente e com finalidades puramente especulativas, enquanto a religião “é uma tomada de posição pessoal que vai além do simples conhecimento da verdade: é a postura na qual todo o eu se recolhe na sua singularidade”; com um “empenho supremo” (ultimate concern). O que distingue a religião da arte é, por sua vez, sobretudo o elemento objetivo: a religião tem por objeto o real; a arte, o ideal. Enfim, também religião e moral, não obstante estejam ligadas entre si de modo bastante estreito, são essencialmente distintas. “A primeira é encontro com Deus, contato pessoal com ele, reconhecimento humilde e devoto do seu valor absoluto e da sua santidade. À segunda cabe o cuidado e a realização dos valores humanos; ela aspira a dar vida e forma a um sentir e a um fazer que correspondam à essência do homem”.

4. Religião e antropologia filosófica

Nesse ponto, se a nossa intenção fosse a de realizar um tratado de filosofia da religião, deveríamos enfrentar o problema da verdade do objeto da religião, um problema de capital importância, mas também extremamente árduo para as forças da razão. Para resolvê-lo seria necessário apelar para todos os recursos da metafísica. Mas o nosso objetivo neste escrito é muito mais modesto: nós pretendemos efetuar apenas uma análise fenomenológica do Homo religiosus, sem empenharmo-nos no momento em escabrosas investigações metafísicas. Por isso, neste ponto, nós nos propomos a elucidar o significado que tem a dimensão religiosa para a compreensão do ser do homem e não a resolver o problema da verdade da religião. Quanto a esse último problema apontamos brevemente as quatro principais soluções que foram propostas:

1) Hipostatização das necessidades e dos ideais dos homens (é a solução do humanismo ateu);
2) Expressão da soberba e da vanidade da mente humana contagiada pelo pecado original (solução da teologia protestante);
3) Expressão de uma mentalidade pré-científica, própria de uma humanidade não ainda suficientemente adulta (é a solução aventada por numerosos partidários da secularização);
4) Exigência fundamental do homem (solução apoiada por muitos autores espiritualistas).

Querendo passar agora à questão que nos interessa, buscamos aprender as sugestões que nos são fornecidas pelo fenômeno religioso para uma compreensão maior da realidade humana. Algumas sugestões podemos tirar diretamente da resenha das teorias relativas à origem e à natureza da religião que apresentamos mais acima. De tal resenha resulta sobretudo que, não obstante a disparidade de valoração do fenômeno religioso e a discórdia das explicações relativas à sua origem, todos os autores estão concordes em reconhecer que o homem se apresenta constantemente e em toda a parte como Homo religiosus. Em segundo lugar, para muitos autores a religião é um coeficiente fundamental e essencial da hominização. Para esses autores, o homem é naturalmente religioso não só de fato mas também de direito: como ele não é homem se é carente de inteligência, de vontade, de cultura, de linguagem, assim também ele não é homem se é carente de religião. Já Feuerbach escrevia: “A religião tem a sua base na diferença essencial entre o homem e o animal - os animais não têm religião”. Essa tese foi confirmada por Scheler, James, Bergson, Blondel, Schmidt, van der Leeuw, Otto, Eliade, Luckmann e por muitos outros estudiosos. Para todos recordamos a opinião de van der Leeuw. Em O homem primitivo e a religião ele escreve: “Somente quem não é ainda homem, quem não é ainda ‘Consciente’ não é Homo religiosus. E quanto mais violentamente se apresenta o ateísmo, tanto mais claro vemos nele os traços de antigas experiências religiosas, como as da escatologia e da religião da comunidade humana no ateísmo comunista. O homem que não quer ser religioso o é justamente por essa sua vontade. Pode evitar a Deus, mas não pode fugir-lhe”.

Mas por qual motivo o homem é religioso de direito, além de ser de fato?

Para nós, a razão fundamental é a finitude, a contingência, a dependência (em particular a que ele observa com relação à lei moral): Tomando consciência dessas suas características, o homem abre-se espontânea e naturalmente a um Ser superior. Da sua existência, em seguida, ele pode adquirir um conhecimento seguro através de muitos outros indícios, em particular o da ordem espetacular do universo. Uma vez reconhecida a existência de tal Ser, é lógico que eles entrem em contato com ele: relações de oração, de adoração, de sacrifício, etc. Então, a dimensão religiosa assume uma estrutura precisa, regulada, ordenada.

Sobre essa plataforma religiosa natural, a nosso ver, instauram-se e desenvolvem-se as religiões históricas, tanto as primitivas quanto as mais evoluídas.

Do ponto de vista da razão pura, todas as religiões históricas são concretizações contingentes, fruto de um determinado ambiente e de uma certa cultura, da mesma plataforma religiosa natural.

Ora, se o homem é religioso tanto de fato quanto de direito, se ele é naturalmente religioso, quais são as implicações que tal fenômeno sugere no que concerne à realidade humana?

As implicações mais importantes são as seguintes:

- O homem é dotado de inteligência, de reflexão: é na reflexão que ele toma consciência da existência do Sagrado.

- É dotado de liberdade: ante ao Sagrado pode responder Sim ou Não, pode aceitá-lo ou refutá-lo, pode submeter-se a ele ou então revoltar-se, pode amá-lo ou odiá-lo.

- Na religião, mais ainda que em qualquer outra atividade do homem, vem à luz o seu aspecto de autotranscendência: o encontro com o Sagrado é o ato de autotranscendência por excelência; ele ocorre quando o homem transcende o seu ser atual e toda a esfera do real que o circunda.

Algum autor a partir do fenômeno religioso extrai também uma outra verdade fundamental do ser do homem: ele não poderia colocar-se em relação com o Sagrado se não devesse a ele a sua origem e não fosse para ele voltado como para o fim último. Trata-se de uma opinião muito simpática, mas que nós, neste ponto, tendo deixado em suspenso a questão da verdade do fenômeno religioso, não podemos propor como verdadeira.

Mas o que já adquirimos acerca da realidade do ser do homem é altamente significativo e de importância capital para o nosso próximo discurso metafísico sobre a realidade humana.