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quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Emmanuel Levinas sobre: À intolerância ao Talmud e a literatura rabínica


O judaísmo frente à intolerância: reflexões teóricas sobre a resistência na história

Tão antigo quanto a humanidade, o fenômeno da intolerância construiu inúmeras representações. Da literatura às manifestações artísticas, da propaganda política ao controle da memória social, dos mitos à religião, veremos ao longo da História, grupos sociais e minorias étnicas sendo submetidos, manipulados, segregados e exterminados a partir da proposital difusão de discursos de poder.

Podemos ainda considerar que a intolerância ao judaísmo e aos judeus, manifestada na formação de pensamentos depreciativos e atitudes sectárias e destrutivas sobre esse povo, representa um dos processos mais longos e ininterruptos da história da marginalidade social.

Com base em tal premissa, o objetivo deste ensaio é refletir acerca dos aspectos ideacionais e práticos da intolerância aos judeus, construídos com base no pensamento religioso de natureza teológica/eclesiástica. Da Idade Média à Modernidade, a intolerância religiosa será apresentada a partir das dimensões concretas que assumiu na História Mediterrânea, tomada em sua essência e perversidade, articulando processos de exclusão e eliminação do ser judaico.

Essas questões evidenciam que todo discurso intolerante possui um projeto de dominação que não indicaria, necessariamente, um golpe político, ou usurpações de poder. Tal artifício de legitimidade do pensamento intolerante baseia-se numa espécie de raciocínio de projeção. Projetam-se sobre os alvos sociais do discurso e práticas intolerantes os males construídos pela própria sociedade ou grupo dominante. No imaginário da intolerância, o oprimido torna-se sempre um opressor, que deve ser combatido.

Tanto em Estado como em sociedade, atitudes concretas são tomadas para comprovar “a razão” ou o “sentido” das violências instituídas: No mundo antigo, temos os estigmas da rebeldia judaica contra o Império Romano, que redundaram em milhares de crucificações por todo o território.

Na Idade Média, o mito do judeu deicida e errante, através da difusão de uma lógica punitiva eterna ao povo do “Antigo Israel”, acusados de haverem supostamente tramado, renegado e traído o Deus que a eles foi revelado. Segundo o pensamento eclesiástico, a verdade e a salvação universais deixaram de estar ao lado do povo judeu quando estes pecaram contra Deus.

Para Paulo de Tarso (Epístola aos Romanos), um novo Israel (Israel Espiritual) e um Novo Testamento surgiam através do cristianismo, sobrepondo-se e anulando a existência do que chamou de “antigo Israel e seu Antigo Testamento” (Israel Carnal). A expressão paulina Verus Israel – O verdadeiro Israel, em configuração cristã, ilustra a gênese do distanciamento histórico que passou a demarcar as tensas relações entre Cristianismo e Judaísmo, até os dias atuais.

Na realidade, em alguns textos dos Pais da Igreja (Patrística), localizamos a idéia de anterioridade do cristianismo em relação ao judaísmo, e de sobreposição religiosa. Em História Eclesiástica, datada de inícios do século IV d.C, o bispo Eusébio de Cesaréia reportara-se aos "testemunhos do Antigo Testamento" para que, em sua hermenêutica, ficasse comprovada a relação mística e religiosa entre Moisés e Jesus.

No livro I De História Eclesiástica, Eusébio discorre sobre a cristianização de Moisés, definindo o judaísmo como obsoleto já desde tempos bíblicos. Defendia que Abraão, Isaac e Jacob já seriam cristãos em seus atos e identidades, e Moisés, um líder que teria se colocado contra costumes a posteriori praticados pelo Judaísmo, como o descanso aos sábados (Shabat), as regras alimentares judaicas (Kashrut) e a circuncisão (Brit-Milá). Segundo Eusébio:

(...) É agora o momento adequado de mostrar que o próprio nome Jesus, como também o de Cristo, foram honrados pelos profetas consagrados de outrora. Primeiro, o próprio Moisés reconheceu como é supremamente augusto e ilustre o nome de Cristo quando transmitiu a tradição dos tipos e símbolos místicos de acordo com o oráculo (...). Assim, evidentemente, ele compreendeu que Cristo era um ser divino. O mesmo Moisés, sob o Espírito divino, antevendo também o título Jesus, igualmente dignifica com certo privilégio de distinção.(...) Mas eles obviamente conheciam o Cristo de Deus, conforme apareceu a Abraão, comungou com Isaac, falou com Jacó e conversou com Moisés e os profetas após ele, conforme já foi demonstrado. (EUSEBIUS, 1992, I; III e IV)

Além dos patriarcas e profetas bíblicos perderem sua definição hebraica, Jesus é entendido como um não judeu. Seria angustiante aos principais líderes eclesiásticos da Idade Média pensar que um Deus adorado pela cristandade pudesse ter sido guiado por princípios judaicos, em suas ações e pretensões com o próximo. O Deus cristão não poderia ser um judeu. Os Pais da Igreja erigiram uma literatura repleta de alegorias interpretativas não apenas de oposição, mas de anulação da cultura judaica, e das heranças judaicas inerentes à formação do Cristianismo.

Lembremos que o cristianismo surge historicamente como uma seita judaica, propagada no interior de sinagogas da Judéia romana. Entre aqueles que viam Jesus como Messias, não havia qualquer intenção de serem abolidos práticas e costumes judaicos cotidianos. Em sua imensa maioria, os cristãos dos primeiros séculos na Judéia eram, assim como Jesus (Yeshua ben Yossef), judeus praticantes das leis mosaicas e devotos à Tora.

Tertuliano, João Crisóstomo, Jerônimo, Eusébio de Cesaréia, Agostinho de Hipona, Gregório Magno, Ambrósio de Milão, intelectuais e autoridades eclesiásticas dos séculos III, IV e V, aprofundaram a lógica de substituição histórica das alianças divinas. Aos judeus, lhes foi rompida a aliança com Deus, uma vez merecedores de um trágico destino diaspórico, por suas crueldades. Para Agostinho de Hipona, o Israel Carnal, representado pelo povo judeu, seria historicamente substituído por um Israel Espiritual, cristão, sem máculas ou posturas traiçoeiras em relação ao próximo, e a Deus.

É importante ressaltar que as leituras alegóricas sobre a Bíblia Hebraica e os Evangelhos não se restringiram a uma doutrina anti-judaica de caráter discursivo. Constata-se que, no âmago do pensamento intolerante de setores do episcopado mediterrâneo, o discurso anti-judaico amadureceu rumo a uma práxis anti-semita, pontualmente localizada quando, em nome da “salvação das almas”, previu-se a destruição dos judeus, de suas práticas, produções textuais, e instituições.

A literatura episcopal fundamentada na Patrística clássica esteve metodologicamente ancorada em interpretações alegóricas e concepções soteriológicas sobre o homem e sua relação com o trascendental. Representou esta literatura, em nosso entendimento, um rearranjo circunstancial entre as novas significações atribuídas às múltiplas realidades mediterrâneas, e o forte legado agostiniano especialmente referente às ilações sobre os judeus e o Judaísmo.

Lembremos que com Agostinho, os judeus já desempenhavam função quase determinante no jogo mitológico-existencial da cristandade, ao terem suas existências pré-condicionadas por questões como o deicídio, a culpabilidade perene, as inextinguíveis condições carnal, errante e diaspórica, e a aproximação com a identidade herética. Agostinho apresentava ainda a necessidade de opressão, perseguição ou conversão obrigatória dos elementos sociais desviantes, práticas interpretadas como provas de um amor divino incondicional e piedoso às criaturas historicamente condenadas.

Seguindo a lógica de teóricos como Raoul Girardet, Maria Luiza Tucci Carneiro sustenta que o mito encontra-se na base das retóricas intolerantes

como a representação deturpada de fatos ou personagens reais que, repetida constantemente, induz o indivíduo a elaborar uma interpretação falsa de um momento histórico ou de um grupo. O mito induz a acreditar numa realidade que não é verdadeira e, desta situação, se valem os teóricos (...) a que interpretam os fatos reais de forma distorcida de acordo com os interesses do grupo a que servem. Tais idéias, no entanto, para se transformarem em práxis, necessitam de ter a sua disposição meios adequados de circulação: é quando a doutrina se manifesta como discurso.

Afirmamos assim que o discurso episcopal exacerbou tais pragmatismos agostinianos, repensando a questão judaica com base na mescla entre velhas e novas dicotomias, ambivalências e rótulos. Tais concepções sobre o real (Cristo-AntiCristo; bem-mal; céu-inferno; pureza-pecado; mundo sublime -mundo vil, saúde-doença, etc.) tornariam imóveis os papéis sociais então distribuídos, principalmente em relação ao problemas das conversões obrigatórias e suas prováveis resistências.

Nesse sentido, nos deparamos com um conjunto denso e complexo de alegorias, metáforas e falsos conceitos, que reforçam a hipótese do uso da linguagem como duplo instrumento de opressão, atuando em nível real e simbólico. Esse discurso de poder tornava o outro impotente perante as imagens construídas, pérfido em suas “invenções”, perdendo quaisquer possibilidades de aceitação ou de existência social / espiritual.

Sucessivos desterros, conversões forçadas, confisco de bens, punições físicas e assassinatos em massa; Aos cristãos/Cristandade, representados pelas Igrejas e Monarquias Européias, a teologia patrística articulada dos séculos IV ao VII legou a responsabilidade de expandir a verdade universal, salvando a humanidade de um mal supostamente presente e sempre ameaçador.

Nas epístolas de Agostinho redigidas aos heréticos do Norte da África (Donatistas, Pagãos e Judeus), os poderes benignos da Igreja, aliados às forças das leis imperiais, preocupados com o destino da humanidade, poderiam fazer uso da perseguição, textualmente definida como “prova de amor”.

No anseio de concretização do chamado “cristianismo militante”, converter ou exilar os elementos propagadores do mal seriam algumas das soluções vislumbradas. “Os filhos pagando eternamente pelos crimes de seus pais”: com esta expressão de Agostinho, a Igreja medieval encontrava legitimidade suficiente para desestruturar a existência judaica no mundo mediterrâneo.

Jean Delumeau, em seus estudos sobre o fenômeno do medo no Ocidente medieval, analisa também algumas das principais fontes do ódio ou da intolerância ao elemento judaico. Ao enfocarmos especificamente o mundo mediterrâneo da Alta Idade Média, esse ódio, que para o autor, seria um desdobramento do medo perante o desconhecido, manifestou-se, historicamente, em importantes componentes comportamentais.

Percebe-se a hostilidade da coletividade cristã – ou parte dela – frente a uma minoria tida como empreendedora, e considerada, acima de tudo, inassimilável. Conforme já destacara Carlo Ginzburg em alguns de seus trabalhos, o hibridismo e a diferença inerentes ao que denominamos como ethos judaico ultrapassariam, em nosso entendimento, aos limiares toleráveis de convivência cultural em sociedade.

As hostilidades supracitadas poderiam ser expressas, a exemplo, nas atitudes tomadas pelas instâncias formais e doutrinárias de poder. O medo aqui se manifestaria pela projeção da imagem do mal absoluto em sociedade sobre a figura do judeu empreendedor, resistente, e disseminador, via proselitismo, de uma fé já historicamente condenada. Esse mal, como será estudado a seguir, só poderia ser de fato extirpado caso frontalmente combatido.

Na literatura episcopal de origem hispano-visigoda, por exemplo, os recursos da invenção, da projeção e da generalização são amplamente utilizados para definir a marginalidade judaica do converso. Inseridos nas categorias de “povo deicida”, de “perfídia” e “mal absoluto”, os judeus batizados peninsulares – De Discretione Iudaeorum - tornavam-se efetivamente, uma questão a ser resolvida.

Lugares da resistência à intolerância: o Talmud e a literatura rabínica

Segundo Marc-Alain Ouaknin, “la question centrale du judaïsme est celle delínterpretation et le Talmud est le lieu du conflit des interpretation". Para todos os discursos intolerantes, encontramos expressões que se contrapõem aos esquemas de dominação instituídos. Assim, em meio aos aparentes silêncios dos sujeitos alvos da intolerância, é imperativo ao historiador contemporâneo conceder lugar para os chamados “discursos da resistência”.

A intolerância ao elemento judaico pode ser explicada, em muitos casos, como a não compreensão e oposição às visões de mundo produzidas pelo Judaísmo Rabínico (IV ao XVI), em sua expressão literária mais conhecida e difundida pelas comunidades judaicas em todo o mundo: o Talmud.

A historiografia medievalista até hoje permaneceu silenciosa quanto às inflexões da cultura rabínico-talmúdica sobre o universo social do judeus e dos conversos de origem judaica. Chegam sequer a apontar o Talmud como possibilidade para o estudo do anti-semitimo, latente entre os séculos VI e VII, ou antes, como fundamento filosófico e exegético da resistência dos judeus batizados.

Para Jacob Neusner, o Talmud marca a inserção de uma historicidade ocidental ao Judaísmo mishnaico, mais restrito ao mundo oriental da Palestina, sendo peça indispensável na análise da História do próprio Ocidente Medieval.

De difícil tipificação literária, o Talmud reúne 25 mil páginas de pensamento rabínico divididas entre 63 volumes temáticos, produzidos nos séculos IV e V d.C, por academias ao norte da Judéia e Babilônia. O Talmud pode ser compreendido como conjunto hermenêutico (Guemará), dialógico-reflexivo (Haggadah) e normativo (Halachá) de discussões sobre o real, o trascendental e o homem, enquanto código de éticas e lições de condutas judaicas em sociedade.

Sua polêmica heteroglossia, oposta a uma visão estritamente teológica de mundo, abriu espaço para uma subversão de ordens estabelecidas. Com seu teor interpretativo, podemos considerar que o Talmud ordenou e dinamizou simbolicamente as existências judaicas no medievo e na modernidade.

Podemos inclusive associar tais espaços de subversão, abertos pela literatura rabínica, à condição judaica de pária social, conforme propôs Anita Novinsky em ensaio sobre a censura e as minorias:

Durante milênios os judeus foram párias, animados por um sentimento do indeterminado, do heterodoxo. Eles formam um grupo que em potencial tinha todas as condições para se opor a uma ordem preestabelecida. Hannah Arendt reconheceu no judeu pária essa capacidade para recusar o mundo. Privados de seus direitos políticos, muitos judeus conseguiram libertar-se, mas apenas individualmente, como homens. Excluídos de toda participação política imediata, realizam essa integração por meio da arte e de sua própria criatividade, como artistas ou intelectuais rebeldes. O que é fundamental nessa tradição clandestina do judeu, sempre um ‘excluído’, é a força de sua posição crítica.” (NOVINSKY, 2002, p. 32)

A polissemia e a heteroglossia, adjetivações adequadas ao entendimento dos significados culturais do Talmud, também foram discutidas, em profundidade filosófica, por Emmanuel Levinas. O autor, em diversas leituras e interpretações de tratados do Talmud da Babilônia, buscou transmitir aos seus leitores que, longe do consenso esperado de textos ditos “moralizantes” ou “edificantes”, o Talmud constitui-se como conflito de interpretações sobre o real humano e a incomensurabilidade do transcendental, do divino.

O poder simbólico e heterodoxo inscrito nos comentários talmúdicos evidencia um sentido de “contra-revelação” ao propósito da teologia cristã, em textos que apresentavam diversas escolas filosóficas de pensamento, representadas pelos Rabis, dialogando sobre problemas de ordem ontológica, espiritual ou exegética, sem que necessariamente se alcançasse um resultado normativo.

No Talmud, como em toda a literatura rabínica circundante (Midrashim), o ato de discutir, manifestar o intelecto, suplantavam integralmente a tendência ao autoritarismo ideológico ou teológico. Esta dinâmica talmúdica veio então reforçar a autoridade dos Rabinos na diáspora judaica. As discussões enunciavam sempre a manutenção do locus central de irradiação do imaginário rabínico – a sinagoga. Contra essa instituição e suas práticas congregacionais, versaram algumas das principais homilias do bispo de Antioquia João Crisóstomo que, em 387 d.C, relacionou a Sinagoga à condição pecaminosa de promiscuidade sexual, corrupção e lascívia, estigmas sempre recorrentes no imaginário anti-semita europeu:

Muitos, eu sei, respeitam os judeus e pensam que seu atual modo de vida é digno de louvor. É por isso que desejo por ao chão tal opinião mortal. Eu disse que a sinagoga não era melhor do que um teatro (...); Lupanar e teatro, a sinagoga é também antro de salteadores e covil de bestas. (...) Vivendo para o ventre, a boca sempre escancarada, os judeus não se conduzem melhor que os porcos e os bodes, na sua lúbrica grosseria e no excesso de sua glutoneria. Só sabem fazer uma coisa: empanturrar-se e embriagar-se. (...) Porém, sob inúmeras circunstâncias, os judeus dizem que eles, da mesma maneira, respeitam a Deus. Deus proiba-me de dizer isso, nenhum judeu adora a Deus ! Quem o afirmou? O filho de Deus o afirmou! Por ter dito: ‘Se vocês quisessem conhecer meu Pai, deveriam conhecer a mim. Mas vocês não conhecem nem a mim, nem a meu Pai.’ Poderia eu citar um testemunho mais verídico do que o Filho de Deus? (MIGNE,1857, V. 48 E 49)

Emmanuel Levinas encontrou diversas alusões ao ímpeto libertário judaico tão temido por eclesiásticos medievais como João Crisóstomo. O Talmud alerta que o poder rabínico, como quaisquer outras formas de poder (políticos ou não) criadas pelos homens, poderia ser questionado, enfrentado, ou mesmo negado pela própria comunidade.

Importante textos talmúdicos abordam, em parábolas, a questão das relações sociais de produção à luz de princípios éticos que deveriam ordenar uma espécie de “convivência conciliatória” entre trabalhadores e senhores, estando esses últimos obrigados a reconhecer os direitos e a insubmissão do outro à lógica do mesmo. Em audaciosas passagens, Rabinos aconselham suas comunidades a nutrirem ódio e cautela pelo poder em sua natureza, e não se aproximarem jamais das autoridades políticas, consideradas evasivas e indiferentes aos problemas reais da população. Nos tratados Avot, Shabat e Pessachim, encontramos ainda a obrigatoriedade de contestação às ordenações de governos que por ventura, obrigassem seus súditos a cometer atos ilícitos, criminosos.

Nesse sentido, o Talmud referenda simbolicamente a possibilidade de um descontentamento social sobre uma ordem política considerada maléfica. Abre-se a possibilidade, no judaísmo rabínico, da recusa dessa ordem, ou antes, a recusa do poder do homem sobre o homem. Para o Talmud, aí residiria a raiz de todo o mal. Caso caracterizadas como opressoras ou corruptas, as autoridades poderiam ser renegadas, contestadas, ou mesmo substituídas por outras mais benéficas para a comunidade. Para a lógica talmúdica, se um líder fosse autoritariamente imposto, sem considerar o consenso da coletividade, estaria fadado ao fracasso.

O historiador Yehuda Bauer, em artigo intitulado “Anti-Semitism as an European and World Problem” entende que a consciência crítica de liberdade religiosa e política defendida pelos judeus da diáspora com base na literatura rabínica foi alvo, por séculos, de reações de incompreensão e rechaço. Para Bauer, a cultura judaica medieval erigiu três pilares éticos de base democrática, incompatíveis com as lógicas de poderes teocráticos, fundamentalistas, ou totalitários. Seriam eles:1) todos os homens são livres; 2) todos os homens são iguais, e as mesmas leis devem servir a todos; 3) todos os homens têm direito de reivindicar poder e criticar o soberano.

Para a relação entre Talmud, revolução e liberdade, Levinas, na mesma ótica de Bauer, afirma que a literatura rabínica, entre parábolas e alegorias, mostra-se intransigente em relação ao ócio e à paralisia social, tanto para aqueles que não saberiam recusar uma ordem política, ou mesmo sequer “questionar o ordem do Rei”.

Nesse sentido, por diversas vezes na História, o Talmud, foi considerado como literatura anti-cristã e diabólica. Sua leitura foi proibida, seus leitores banidos, e suas edições queimadas em praça pública, por imperadores, papas, monarcas europeus (medievais e modernos) e governos totalitários contemporâneos.

Sobre os judeus e o Talmud afirma Napoleão Bonaparte:

Os judeus são um povo vilão, poltrão e cruel. São lagartas, gafanhotos que devastam os campos. (...) O mal provém principalmente dessa compilação indigesta chamada Talmud, onde se encontra, ao lado de suas verdadeiras tradições bíblicas, a moral mais corrompida, a partir do momento em que se trata de suas relações com os cristãos. (...) Não pretendo subtrair à maldição com que foi fulminada essa raça que parece ter sido a única a ser excetuada da redenção, mas gostaria de deixá-la sem condições para propagar o mal (...). o bem é feito lentamente, e uma massa de sangue viciado só melhora com o tempo. (...) Quando entre cada três casamentos, houver um entre judeu e francês, o sangue dos judeus deixará de ter um caráter particular (...). (POLIAKOV, 1974, p. 196)

Sobre a censura à produção intelectual judaica, mesmo que religiosa, a reflexão da historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro fornece alguns esclarecimentos:

a repressão às idéias e aos intelectuais integrou projetos políticos articulados em diferentes momentos da nossa história. (...) o intelectual ativo - aquele que escrevia e divulgava suas idéias ‘revolucionárias’ – sempre foi tratado pelas instituições vigilantes como um ‘herege’, um ‘homem maldito’, um ‘bandido’. Por ultrapassar os limites do permitido, foi repreendido, julgado e punido. Os livros apreendidos como ‘armas do crime’, transformaram-se em prova material da trama articulada contra o regime e que, segundo os homens do poder, poderiam desequilibrar a ordem imposta. (CARNEIRO, 2002, p. 20-21)

A título de conclusão parcial ao tema, entendemos que a violência, originária de sectarismos religiosos, seria o similar a um estado de ódio socialmente instituído e quase incontrolável. Para pensadores como o escritor e acadêmico argelino Mohammed Arkoun, quando a intolerância é substituída pelo ódio não haveria mais volta, exatamente porque os discursos passariam a adotar três critérios que, somados, seriam fatais para o diálogo entre os homens: violência, sagrado e verdade.

Esse tripé elaborado pelo sectarismo religioso, faz a intolerância assumir o poder de um mito, e como todo mito, adquire feições perenes e deixa as sociedades que a construíram marcadas para sempre. É um quadro desalentador para todos nós, porque corrobora a hipótese de ser o anti-semitismo, um fenômeno historicamente renitente. Fenômeno que parece adquirir sempre novas roupagens, parece supostamente justificar-se com “novas causas”, mas na realidade, reacende velhos estigmas profundamente arraigados ao imaginário social, sem perspectivas de extinção.