Mostrando postagens com marcador Dilúvio. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Dilúvio. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Dilúvio: Povos e culturas diferentes.

DILÚVIO UNIVERSAL? OU DIVERSOS DILÚVIOS LOCAIS?

"O termo dilúvio refere-se a uma grande quantidade de chuvas, capazes de inundar e devastar toda uma região. Em sentido estrito, Dilúvio, segundo diversas mitologias, foi uma terrível inundação que teria coberto todo o mundo, ou ao menos terras ancestrais de determinados povos. Porém não há evidências científicas que comprove o caráter universal de tal acontecimento. O máximo de credibilidade que se pode atribuir a estes mitos são acontecimentos isolados que realmente aconteceram em algum momento da história de cada povo.

Um acontecimento como o dilúvio deixaria suas marcas no planeta, todavia nada hoje foi encontrado que comprove que tal catástrofe literalmente aconteceu. Quanto aos sedimentos e fósseis marinhos em todas as grandes montanhas do mundo, são sedimentos de superfícies marinhas ou terrestres que foram deslocadas pelo choque das placas tectônicas ocorridas no fundo do oceano, projetando para cima o que se encontrava na superfície ou no fundo do mar. A formação das cordilheiras: Andes, Himalaia, Alpes, foi resultado de colisões ou da placa marinha próxima (Andes) ou, no caso dos Alpes e do Himalaia, o choque da península italiana com o continente europeu(Alpes) e da Índia com o continente da Ásia. Os registros históricos mais antigos que se conhecem têm cerca de quatro mil e quinhentos (4500) anos. São dessa época as civilizações mais antigas. Igualmente, digno de nota é o fato de nas mais variadas culturas, em todos os continentes, existirem tradições que aludem à ocorrência de um dilúvio global, com paralelismos espantosos entre si, tendo sido documentadas mais de 250, em contextos culturais diferentes. Há evidências crescentes de que algo de "excepcionalmente catastrófico" aconteceu há alguns milênios atrás.

Os "antropologistas" dizem que há mais de 270 narrativas do dilúvio em povos e culturas diferentes do mundo, e todas elas, coincidentemente, são no início destas civilizações. Para a civilização ocidental, a história mais conhecida a respeito do dilúvio é a da Arca de Noé, segundo a tradição judaico-cristã. O Dilúvio também é descrito em fontes americanas, asiáticas, sumérias, assírias, armênias, egípcias e persas, entre outras, de forma basicamente semelhante ao episódio bíblico, porém em algumas civilizações se relata sobre inundações em vez de chuvas torrenciais: uma divindade decide limpar a Terra de uma humanidade corrupta, ou imperfeita, e escolhe um homem bom aos seus olhos para construir uma arca para abrigar sua criação enquanto durasse a inundação. Na mitologia judaica, Javé estava disposto a acabar com toda a humanidade, porém Noé foi agraciado por Ele, pois era um varão temente a seu Deus e não se deixou corromper. Após um certo período, a água baixa, a arca fica encalhada numa montanha, os animais repovoam o planeta e os descendentes de tal homem geram todos os povos do mundo.

Dilúvio judaico

Segundo a Bíblia, Noé, seguindo as instruções divinas, constrói uma arca para a preservação da vida na Terra, na qual abriga um casal de cada espécie animal, bem como a ele e sua família, enquanto Deus, exercendo julgamento sobre os ante-diluvianos (povo de ações perversas), inundava toda a Terra com uma chuva que durararia quarenta dias e quarenta noites. Após alguns meses, quando as águas começaram a baixar, Noé enviou uma pomba, que lhe trouxe uma folha de oliveira. A partir daí, os descendentes de Noé teriam repovoado a Terra, dando origem a todos os povos conhecidos.

Na esfera cultural hebraica primitiva, o evento do Dilúvio contribuiu para o estabelecimento de uma identidade étnica entre os diferentes povos semíticos (todos descendentes de Sem, filho de Noé), bem como sua distinção dos outros povos ao seu redor (cananeus, descendentes de Canaã, neto de Noé, núbios ou cuxitas, descendentes de Cuxe, outro neto de Noé, etc.). No Antigo Testamento, Noé amaldiçoa Canaã e abençoa Sem, o que serviria mais tarde como uma das justificativas para a invasão e conquista da terra dos cananeus pelas Tribos de Israel.

Outros textos judaico-cristãos

Esta versão é considerada real por Criacionistas. Ainda na Bíblia, Jesus faz referência ao evento, no Livro de Mateus [2]

Igualmente, outros textos judaico-cristãos considerados apócrifos, tais como o Livro de Enoque, dizem que a história do dilúvio não somente foi um castigo aos homens que fizeram o mal, mas principalmente contra um grupo de anjos chamados vigilantes, e seus filhos gigantes, chamados nephillim. Estes seres, segundo estes textos haviam sido os causadores de um grande desequilíbrio entre os homens. Desta forma se uniriam as histórias destes seres nomeados en Gênesis. Esta versão do dilúvio bíblico se veria apoiada por uma passagem no Livro da Sabedoria[3]

Criacionismo

Os defensores de algumas vertentes do criacionismo da Terra jovem - um dos movimentos fundamentalistas que visam defender a literalidade de diversas narrativas religiosas - crêem num dilúvio literalmente universal, que teria provocado a extinção de 90% de todas as espécies que já viveram, cujos fósseis se encontram distribuídos por diversas camadas geológicas de acordo com um padrão que os cientistas atribuem às eras geológicas.

Essas eras geológicas, segundo algumas interpretações fundamentalistas, seriam uma ilusão, pois todos os seres preservados no registro fóssil teriam sido contemporâneos, tendo sido distribuídos em estratos geológicos durante a inundação universal, coincidentemente sendo enterrados subitamente no padrão exato que se esperaria de uma longa história evolutiva ao longo de várias eras.

Esses criacionistas defendem com evidências que as colunas geológicas nem sempre se apresentam na ordem esperada, mas ocorrem inversões que julgam ser inexplicáveis, negando as explicações dadas pelos cientistas.[1]. Outra alegação de alguns criacionistas é a de que a idéia de coluna geológica assume a evolução como fato e a toma como base, no entanto cientistas pioneiros da Geologia, que não aceitavam a teoria da evolução em seus primórdios, defendiam os mesmos estratos geológicos, e o pioneiro da geologia, William Smith, foi o primeiro a reconhecer os estratos geológicos e a sucessão de faunas, anos antes da publicação das idéias de Charles Darwin sobre evolução biológica. Outra defesa dos estratos geológicos se dá por meio da datação radiométrica, que não se baseia em qualquer conceito de evolução biológica, mas apenas na física.[2] Os criacionistas da Terra jovem, no entanto, negam também a validade dos métodos de datação radiométrica.[3]

Como evidência da contemporaneidade de seres que os cientistas defendem ser de eras distintas, alguns deles apontam por exemplo, trilhas de dinossauros em leitos de rios como o rio Paluxy em Glen Rose, Texas, EUA, ao lado de pegadas que parecem ser de humanos gigantes. Os cientistas, no entanto, atribuem todas essas pegadas a dinossauros, e que a forma aparentemente humana de algumas se deve à erosão, em alguns casos natural, em outros por adulteração.[4][5]

Outros criacionistas, negam a existência passada de formas de vida não contemporâneas, como os dinossauros, acreditando que sejam todas falsificações dos cientistas que defendem a teoria da evolução.[6]. Outros ainda, sustentam que não apenas os dinossauros foram contemporâneos do homem, mas que possam ainda existir como "fósseis vivos", e apontam como evidência casos de criptozoologia como o do Mokele-mbembe e o monstro do lago Ness.[7]. De modo geral, a maioria acredita que todos ou a maioria dos seres hoje extintos não couberam ou foram impedidos de entrar na arca de Noé.

Dilúvio Sumério

O mito sumério de Gilgamesh conta os feitos do rei da cidade de Uruk, Gilgamesh, que parte em uma jornada de aventuras em busca da imortalidade, nesta busca encontra as duas únicas pessoas imortais: Utanapistim e sua esposa, estes contam à Gilgamesh como conquistaram tal sorte, esta é a história do dilúvio. O casal recebeu o dom da imortalidade ao sobreviver ao dilúvio que consumiu a raça humana. Na tradição suméria, o homem foi dizimado por encomodar aos deuses. Segundo este mito, o deus Ea, por meio de um sonho, apareceu a Utanapistim e lhe revelou as pretensões dos deuses de exterminar os humanos através de um dilúvio. Ea pede a Utanapistim que renuncie aos bens materiais e conserve o coração puro. Utanapistim, então, reúne sua família e constrói a embarcação que lhe foi ordenada por Ea, estes ficam por sete dias debaixo do dilúvio que consome com os humanos. Aqui um techo de tal história:

"Eu percebi que havia grande silêncio, não havia um só ser humano vivo além de nós, no barco. Ao barro, ao lodo haviam retornado. A água se estendia plana como um telhado, então eu da janela chorei, pois as águas haviam encoberto o mundo todo. Em vão procurei por terra, somente consegui descobrir uma montanha, o Monte Nisir, onde encalhamos e ali ficamos por sete dias, retidos. Resolvi soltar uma pomba, que voou para longe, não encontrando local para pouso retornou (...) Então soltei um corvo, este voou para longe encontrou alimento e não retornou." (TAMEN, Pedro. Gilgamesh, Rei de Uruk. São Paulo: ed. Ars Poetica, 1992.)

Dilúvio hindu

Nas escrituras védicas da Índia encontramos um rei chamado Svayambhuva Manu, que foi avisado sobre o dilúvio por uma encarnação de Vishnu (Matsya Avatar). Matsya arrastou o barco de Manu e lhe salvou da destruição.

Dilúvio grego

A mitologia grega relata a história de um grande dilúvio produzido por Poseidon, que por ordem de Zeus havia decidido pôr fim à existência humana, uma vez que estes haviam aceitado o fogo roubado por Prometeu do Monte Olimpo. Deucalião e sua esposa Pirra foram os únicos sobreviventes. Prometeu disse a seu filho Deucalião que construísse uma arca e nela introduzisse uma casal de cada animal, de forma análoga à Arca de Noé. Assim estes sobreviveram.

Ao terminar o dilúvio, a arca de Deucalião pousou sobre o Monte Parnaso, onde estava o Oráculo de Temis. Deucalião e Pirra entraram no templo, para que o oráculo lhes dissesse o que deviam fazer para voltar a povoar a Terra, e a deusa somente lhes disse: "Voltem aos ossos de suas mães" Deucalião e sua mulher adivinharam que o oráculo se referia às rochas. Destas formas, as pedras tocadas por Deucalião se converteram em homens, e as tocadas por Pirra em ninfas ou deusas menores, por que ainda não se havia criado a mulher.

Dilúvio mapuche

Nas tradições do povo Mapuche igualmente existe uma lenda sobre uma inundação do lugar deste povo (ou do planeta). A lenda se refere à história das serpentes, chamadas Tentem Vilu e Caicai Vilu.

Dilúvio pascuenses

A tradição do povo da Ilha de Páscoa diz que seus ancestrais chegaram à ilha escapando da inundação de um mítico continente, ou ilha, chamado Hiva.

Dilúvio maia

A mitologia do povo maia relata a existência de um dilúvio enviado pelo deus Huracán.

Segundo o Popol Vuh, livro que reúne relatos históricos e mitológicos do grupo étnico maia-quiché, os deuses, após terminarem a criação do mundo, da natureza e dos seres vivos, decidiram criar seres capazes de lhes exaltar e servir. São criados então os primeiros seres humanos, moldados em barro. Porém, esses seres de barro não eram resistentes ao clima e à chuva e logo se desfizeram em lama.

Então, os deuses criaram o segundo tipo de seres humanos, à partir de madeira. Essa segunda humanidade, ao contrário da primeira, prosperou e rapidamente se multiplicou em muitos povos e cidades (tudo indica que é nessa época da segunda humanidade que se passam as aventuras dos gêmeos heróis Hunahpú e Ixbalanqué contra os senhores de Xibalba). Mas esses seres feitos de madeira não agradaram aos deuses. Eles eram secos, não temiam aos deuses e não tinham sangue. Se tornaram arrogantes e não praticavam sacrifícios aos seus criadores. Então, os deuses decidem exterminar essa segunda humanidade através de um dilúvio. Ao contrário da maioria dos outros relatos conhecidos sobre dilúvios, nenhum indivíduo foi poupado.

Após a catástrofe, a matéria prima utilizada para moldar os novos seres humanos foi o milho. Foram criados quatro casais, que são considerados os oito primeiros índios quiché. Eles deram origem às três famílias fundadoras da Guatemala, pois um dos casais não deixou descendência.

Dilúvio asteca

No manuscrito asteca denominado como Código borgia, há a história do mundo dividido em idades, das quais a última terminou com um grande dilúvio produzido pela deusa Chalchitlicue.

Dilúvio inca

Na mitologia dos incas, Viracocha destruiu os gigantes com uma grande inundação, e duas pessoas repovoaram a Terra (Manco Capac e Mama Ocllo mais dois irmãos que sobreviveram. A religião é um forte elo de ligação entre as várias culturas andinas, sejam elas pré-incaicas ou incas. A imposição do Deus Sol é um forte elemento da crença e dominação através do mental, ou seja daquilo que permanece impregnado por gerações nas concepções e mentalidades destas culturas, adorando o Deus imposto e entendendo ser ele o mais importante. Pedro Sarmiento de Gamboa, cronista espanhol do século XVI, relata como os Incas narravam sua criação e as lendas que eram passadas através da oralidade de geração em geração, desde o surgimento de Viracocha e seus ensinamentos, procurando definir um homem que o venerasse e fosse pregador de seus conhecimentos. Em algumas tentativas de criar este homem, Viracocha acaba punindo-o com um grande dilúvio pela não obediência.

A narração do dilúvio está presente entre muitos povos e culturas por todo o mundo. O início de tudo, ou seja, a criação, é um fator muito importante para estabelecer relações e explicações sobre o que não se conhece e o que não foi vivido. Assim, os mitos e lendas buscam criar uma ancestralidade, um ponto em comum que defina a origem e o começo do cosmos e tudo existente nele, ou seja, o conhecer de si mesmo, do próprio homem inserido na natureza, buscando sua sobrevivência e continuidade de sua existência e a harmonia com os elementos naturais e sobrenaturais.

Dilúvio Uro

O povo uro (ou uru), que habita próximo ao Lago Titicaca, crê numa lenda que diz que depois do dilúvio universal, foi neste lago onde se viram os primeiros raios do Sol.

Hipótese histórica

A consistência de tais histórias e sua extensa distribuição ao redor do globo fez com que alguns pesquisadores procurassem vestígios que a comprovassem, de acordo com métodos de pesquisa científicos.[4].

Em 1998, os geólogos da Universidade de Columbia William Ryan e Walter Pittman elaboraram a teoria de que o Dilúvio na verdade seria um mito derivado de uma fantástica catástrofe natural, ocorrida por volta do ano 5600 a.C., nas margens do atual Mar Negro.

Segundo as proposições dos dois pesquisadores, o evento regional teria provocado a migração de diversos grupos sobreviventes – o que explicaria o caráter dito universal (que se encontra em várias culturas) do Dilúvio.

Para os geólogos, o evento foi provocado pelo degelo ocorrido ao final da última glaciação. Em suas pesquisas, analisaram as formações geológicas e imagens submarinas, concluindo que uma grande quantidade de água marinha rompeu o atual estreito de Bósforo, com a elevação paulatina e excessiva do Mar Egeu e dali para o Mar de Mármara, ocasionando a abrupta inundação do Mar Negro.

Aditaram, com muitos contraditores, que a agricultura, então incipiente na vida humana, também se propagara a partir dessa migração pela Europa, Ásia e Oriente Médio. O meio científico considera plausível o cataclismo, mas não as conclusões de que esta tenha sido a origem do mito do dilúvio.

Há a hipótese de que uma grande inundação tenha ocorrido na Mesopotâmia, causada pelos rios Tigre e Eufrates, por uma elevação anormal do nível d'água (estipula-se que as enchentes naturais da agricultura sazional daquela região seriam em torno de nove metros, e nessa época os rios encheram-se cinco metros a mais, isto é, catorze metros), causando devastação por toda a região em algum momento. Essa alternativa, no entanto, não transmite corretamente a vívida descrição de caos que os relatos parecem mostrar, pela escala monumental que a lenda assume. O relato bíblico do Dilúvio chega a dizer: "Assim foram exterminadas todas as criaturas que havia sobre a face da Terra, tanto o homem como o gado, o réptil, e as aves do céu; todos foram exterminados da terra; ficou somente Noé, e os que com ele estavam na arca" (Gênesis 7:21-23).

Alguns acreditam ainda que a própria arca poderia ser encontrada em algum ponto do Cáucaso, possivelmente no Monte Ararat, onde diversos relatos de pilotos que sobrevoaram a região durante a Segunda Guerra Mundial afirmavam ter visto um imenso barco no meio dessa cadeia de montanhas.

O próprio National Geographic já fez pesquisas a respeito[5].

Ainda segundo o cientista brasileiro Arysio Nunes dos Santos[6], o dilúvio estaria relacionado à lenda de Atlantis, cidade mítica grega, que ainda segundo ele, também teria suas equivalentes em inúmeras outras culturas.
-------------------------------------------------------------------------------------------------
Ligações externas
[estratos] Talk Origins, Index to Creationist Claims, "entire geological column existence", por Mark Isaac [estratos2] Talk Origins, Index to Creationist Claims, "geologic column assumption", por Mark Isaac [radio] Talk Origins, Index to Creationist Claims, "Geochronology", por Mark Isaac [paluxy] The Talk Origins, Texas Dinosaur/"Man Track" Controversy, por Glen J. Kuban [paluxy2] Talk Origins, Index to Creationist Claims, "Paluxy river footprints", por Mark Isaac [negamdinos] Dinosaurs: Science Or Science Fiction, por David P. Wozney [fosseisvivos] Mokele-mbembe: a living dinosaur?, por David Catchpoole [8] [9] [10] [11]
-------------------------------------------------------------------------------------------------
Referências
↑(Mateus 24:37-39)
↑ ver capítulo 6:1-4
↑capítulo 4, versículo 6
↑http://galileu.globo.com/edic/115/rep_diluvio.htm
↑http://www.terra.com.br/planetanaweb/flash/reconectando/civilizacoesetribos/atlantis.htm (Fonte: Wikipédia)

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Israel Finkelstein e a Epopéia de Gilgamesh sobre o Dilúvio

O passado das civilizações nada mais é que
a história dos empréstimos que elas fizeram
umas às outras ao longo dos séculos ...”

1. Da “corrida ao ouro bíblico” à nova historicidade das sagradas escrituras.

Em meados do século XIX, após a descoberta na antiga cidade de Nínive da biblioteca do imperador assírio Assurbanípal (668-627 a.C.), o mundo redescobriu as antigas grandes civilizações da Mesopotâmia em tábuas de argila contendo escritos em sinais mais tarde denominados cuneiformes. Civilizações estas de que até então, o pouco que se conhecia estava contido nos livros da Bíblia, em informações “escassas e pouco reveladoras, uma vez que estavam diretamente relacionadas com a história do povo hebreu”.(CORREA, 200-, p. 2).

Tais descobertas deram início a uma espécie de “corrida ao ouro bíblico” que propunha evidenciar arqueológicamente as sagradas escrituras. Outras ruínas então, como as de Uruk, Ur e Nipur, começaram ser escavadas e revelaram mais inscrições sobre o passado do Oriente Próximo.

O trabalho de decifração destas tábuas foi realizado por vários pesquisadores, mas coube ao arqueólogo britânico George Smith, a primeira tradução contendo um trecho da Epopéia de Gilgamesh: o relato do dilúvio. Em 1872, Smith anuncia sua descoberta1 em um encontro da Sociedade de Arqueologia Bíblica causando um “forte impacto na Europa (...) por apresentar um texto pagão aparentemente antecipando a Arca de Noé”.(CORREA, 200-, p. 2).

Estas descobertas abalaram toda a comunidade científica e religiosa do século XIX, laicizando muitos dos objetivos iniciais, modificando métodos dos pesquisadores, e abrindo precedentes para o questionamento da veracidade dos textos bíblicos.

Nas últimas quatro décadas, diferentes estudos estão sendo realizados sobre os temas levantados no século XIX, tanto pela comunidade científica como em grande parte pela comunidade religiosa, fazendo com que sejam discutidos os elementos mitológicos presentes na confecção dos livros que compõe o Pentateuco2, que vão desde a formação do mundo à existência histórica dos seus patriarcas.

Há uma tentativa, nos dias atuais, por parte de arqueólogos e historiadores de remontar a bíblia separando o que é história do que são mitos e lendas.

"Apesar das paixões suscitadas por este tema, nós acreditamos que uma reavaliação dos achados das escavações mais antigas e as contínuas descobertas feitas pelas novas escavações deixaram claro que os estudiosos devem agora abordar os problemas das origens bíblicas e da antiga sociedade israelita de uma nova perspectiva, completamente diferente da anterior. (…) A história do antigo Israel e o nascimento de suas escrituras sagradas a partir de uma nova perspectiva, uma perspectiva arqueológica.” (FINKELSTEIN; SILBERMAN, 2001, pp. V-VI, p. 1).

2. Da teogonia à teofania.

Paralelamente às discussões bíblicas, as descobertas feitas pelas escavações remontam os três milênios que antecedem à Cristo, onde a região entre os rio Tigre e Eufrates viu a ascensão e queda de grandes civilizações como os sumérios, acádios, assírios e babilônicos.

Dos textos traduzidos, vários deles incompletos devido ao estado de conservação dos mesmos, pôde-se extrair muito da filosofia e da mitologia mesopotâmicas, onde podemos observar que “o Oriente antigo, antes da Bíblia, e mesmo abstraindo-se dela, não desconhecia a reflexão sobre o homem. (...) As questões fundamentais da existência, da felicidade e da infelicidade, da relação com as potências cósmicas e com o domínio misterioso dos deuses, do sentido da vida e das incertezas do destino, já tinham neles um lugar de grande importância”.(GRELOT, 1980, p. 13).

Neste universo de descobertas, os sumérios e os acadianos revelam-se fornecedores de costumes, rituais e modelos literários a todos os povos do Oriente Médio3. Suas lendas, se consideradas como o primeiro repositório das recordações históricas dos povos do oriente antigo, “se transformaram, se esquematizaram, se reagruparam, mudaram eventualmente de país, se ampliaram, às vezes, desmedidamente” (GRELOT, 1980, p. 13), onde cada cultura apropriou-se de um mito conforme a sua ótica4.

Não diferente desta regra, os israelitas inovaram ao excluir todo um panteão, centralizando sua fé num deus único, propondo uma desmitização do universo transformando as forças cósmicas ao que de fato são. A situação do homem diante de Deus modifica-se totalmente, “embora, na prática, a adaptação da mentalidade corrente dos israelitas a essa mudança radical se tenha processado lentamente e com dificuldade” (GRELOT, 1980, p. 15), mantendo grande parte do antigo modo de expressar religioso herdado dos sumérios e acádios.

Desta forma, Israel começa a escrever sua própria história, ora compilando fatos de seu próprio povo em grandiosas lendas, ora adaptando mitos antigos à sua realidade e aos seus propósitos. As histórias contidas na parte hebraica da bíblia, embora difíceis de serem datadas pelos anacronismos que ali apresentam5, foram compiladas e ordenadas “principalmente, no tempo do rei Josias (640-609 a.C.), para oferecer uma legitimação ideológica para ambições políticas e reformas religiosas específicas”.(FINKELSTEIN; SILBERMAN, 2001, p. 14).

3. A Epopéia de Gilgamesh e sua influência sobre demais literaturas do mundo antigo.

Considerada a mais antiga obra literária da humanidade, a Epopéia de Gilgamesh na sua forma “tardia” (século VII a.C.) como é difundida no Ocidente (TIGAY6 citado por ZILBERMAN (1998, p. 58)), não foge à regra das obras de origens mesopotâmicas: um compilado de lendas e poemas, cuja origem e veracidade perdem-se na difusão oral, adaptação cultural e textos fragmentados.

As narrativas contidas na epopéia deviam ser muito populares em sua época, pois são encontradas em várias versões escritas por vários povos e línguas diferentes, sendo que as primeiras versões da mesma, datam do Período Babilônico Antigo (2000-1600 a.C.), podendo ter surgido muito antes7, pois o herói desta epopéia é o lendário rei sumério Gilgamesh, quinto rei da primeira dinastia pós-diluviana de Uruk, que teria vivido no período protodinástico II (2750-2600 a.C.)8.

Devido à sua antiguidade e originalidade, muito se especula sobre a influência desta sobre textos mais difundidos e conhecidos pela humanidade, como os poemas épicos gregos Ilíada e Odisséia de Homero, escritos entre VIII e VII a.C.. Mas a polêmica é maior quando se comparados às narrativas do Pentateuco, a parte mais antiga do Velho Testamento, datadas do Primeiro Milênio a.C.. No caso desta última, o que legitima-nos a observar as influências, além de semelhanças impressionantes, o próprio contexto histórico e geográfico. Contexto este em que a origem dos hebreus e das grandes civilizações semitas são mescladas com a própria história do povo sumério. Históricos períodos de cativeiro, onde a aculturação era, além de inevitável pelas circunstâncias de sobrevivência, uma forma de dominação ideológica:

“O povo dominado era absorvido pelos nativos ao serem levados, havia a destruição total da nacionalidade, do culto, das instituições, nada ficando que pudesse ser lembrado a fim de que jamais alguém se encorajasse a agir em favor de uma reconstrução. Todo o elemento que representasse qualquer valor moral ou intelectual era desterrado e em seu lugar era posto outro povo trazido de outras regiões.” (LOPES, 200-, p. 2).

4. A semelhança entre as narrações.

As semelhanças narrativas encontradas entre Epopéia de Gilgamesh e o Livro do Gênesis iniciam-se logo nos primeiros versículos da bíblia, ou seja, na criação do homem. O povo de Uruk, descontente com a arrogância e luxúria do rei Gilgamesh, exige dos seus deuses a criação de um homem que fosse o reflexo do rei, e tão poderoso quanto ele para que pudesse enfrentá-lo e redimi-lo. O deus Anu, ouvindo o lamento da população, ordenou a Aruru, deusa da criação, que fizesse Enkidu:

“A deusa então concebeu em sua mente uma imagem cuja essência era a mesma de Anu, o deus do firmamento. Ela mergulhou as mãos na água e tomou um pedaço de barro; ela o deixou cair na selva, e assim foi criado o nobre Enkidu”.(SANDARS, 1992, p. 94).

“Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança”.(GENESIS, cap. 1, ver. 26).

“Então formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra, e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente”.(GENESIS, cap. 2, ver. 7).

Enkidu foi criado inocente, longe da malícia da civilização, vivendo entre as criaturas selvagens e compartilhando a natureza com elas:

“Ele era inocente a respeito do homem e nada conhecia do cultivo da terra. Enkidu comia grama nas colinas junto com as gazelas e rondava os poços de água com os animais da floresta; junto com os rebanhos de animais de caça, ele se alegrava com a água”.(SANDARS, 1992, p. 94).

“Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra, e todas as árvores em que há fruto que dê semente; isso vos será para mantimento. E a todos os animais da terra e a todas as aves dos céus e a todos os répteis da terra, em que há fôlego de vida, toda erva verde lhes será para mantimento”. (GENESIS, cap. 1, ver. 29-30).

O rei Gilgamesh, sabendo da existência de Enkidu, incube uma missão a uma das prostitutas sagradas do templo da deusa Ishtar (deusa do amor e da fertilidade): seduzir Enkidu e trazê-lo para dentro das muralhas de Uruk. Enkidu deixou-se seduzir pela rameira e perdeu sua inocência, além de seu poder selvagem, tornando-se conhecedor da malícia do homem. Arrependido, lamenta-se, mas a rameira consola-o enfatizando as vantagens desta nova vida que está por vir:

“Enkidu perdera sua força pois agora tinha o conhecimento dentro de si, e os pensamentos do homem ocupavam seu coração”.(SANDARS, 1992, p. 96).

“Olho para ti e vejo que agora és como um deus. Por que anseias por voltar a correr pelos campos como as feras do mato?” (SANDARS, 1992, p. 99).

“Porque Deus sabe que no dia em que comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal.” (GENESIS, cap. 2, ver. 5).

Nesta comparação com a tentação no Éden, não identificamos diretamente os fatos, mas sim, as idéias. A prostituta sagrada, condenada também em outros livros da bíblia, pode ser compilada como o fruto proibido, a serpente e a própria Eva, com o poder de seduzir o homem e tirar sua inocência com falsas promessas.

Enkidu, já na cidade de Uruk, enfrenta o rei Gilgamesh em combate. Vencendo-o, é reconhecido pelo rei como irmão, pois este jamais havia enfrentado alguém com tamanha força. Formando-se então uma grande amizade que protagoniza grandes aventuras e tragédias ao longo da epopéia.

Gilgamesh e Enkidu partiram então para a floresta de cedros (provavelmente, o atual Líbano), onde enfrentaram o monstro Humbaba, a sentinela da floresta.

Este se irrita com Enkidu, por profanar a floresta sagrada dos cedros inferiorizando-o e humilhando-o com palavras semelhantes às palavras de Deus, ao condenar o homem por comer do fruto proibido. Novamente não vemos relação direta entre os fatos, mas uma linha comum de pensamento é verificada entre os textos onde, a profanação e a desobediência são punidas com a servidão:

“… tu, um mercenário, que depende do trabalho para obter teu pão!” (SANDARS, 1992, p. 119).

“… maldita é a terra por tua causa: em fadigas obterás dela o sustento durante os dias da tua vida”.(GENESIS, cap. 3, ver. 16).

“No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado”.(GENESIS, cap. 3, ver. 19).

Os heróis, com a ajuda de Shamash (deus sol, protetor de Gilgamesh), matam o monstro Humbaba cortando-lhe a cabeça. Fato que irritou o poderoso Enlil (deus da terra, do vento e do ar universal), que exigiu a vida de um dos heróis pelo insulto.

A deusa Ishtar, vendo a força e beleza do herói, apaixona-se por Gilgamesh que a despreza, provocando a cólera da deusa. Então, Ishtar enviou a terra, um monstro com a missão de destruir o herói: o Touro Celeste. Mas a dupla de heróis novamente é vitoriosa. Então, Enkidu zomba da deusa derrotada atirando-lhe pedaços do touro mutilado. Enlil enfurecido com a atitude do mortal decide enfim qual dos dois heróis deverá morrer. Enkidu então adoece e, sucumbindo à doença, impulsiona o rei Gilgamesh a sua missão final: a busca da imortalidade.

A primeira semelhança encontrada pelos tradutores das tábuas em escrita cuneiforme é a mais impressionante. Foi a mola propulsora de toda a discussão sobre a veracidade dos textos bíblicos, pois a descrição do dilúvio não só é a mais bem conservada tábua de toda a epopéia, mas a mais rica em detalhes e semelhanças com a descrição no Gênesis. Além de que, outras narrativas do dilúvio foram encontradas em forma de poemas isolados e com outros personagens, como as tábuas de Atra-Hasis, a Epopéia de Erra, e os textos do rei Ziusudra9.

Na epopéia, Gilgamesh parte em busca da imortalidade, e para isso, precisa obter este segredo dos deuses com o imortal Utnapishtim (Noé do Gênesis). Para encontrar o imortal, Gilgamesh enfrentou uma longa jornada, cheia de perigos e provações. Ao encontrar Utnapishtim, ouve que este não poderá lhe tornar imortal, mas poderá revelar ao herói como se tornara um e conta do dia em que os deuses, desgostosos com a sua criação (a humanidade), resolveram eliminá-la da terra:

“Naqueles dias a terra fervilhava, os homens multiplicavam-se e o mundo bramia como um touro selvagem. Este tumulto despertou o grande deus. Enlil ouviu o alvoroço e disse aos deuses reunidos em conselho: ‘O alvoroço dos humanos é intolerável, e o sono já não é mais possível por causa da balbúrdia.’ Os deuses então concordaram em exterminar a raça humana”.(SANDARS, 1992, p. 149).

“Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na terra, e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração”.(GENESIS, cap. 6, ver. 5).

“A terra estava corrompida à vista de Deus, e cheia de violência”.(GENESIS, cap. 6, ver 11).

“Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, o homem e o animal, os répteis, e as aves do céu; porque me arrependo de os haver feito”.(GENESIS, cap. 6, ver 7).

Ea (deus da água doce e da sabedoria, patrono das artes e protetor da humanidade), avisa Utnapishtim em um sonho das intenções de Enlil e orienta-o de como sobreviver à catástrofe que estaria por vir:

“... põe abaixo tua casa e constrói um barco. Abandona tuas posses e busca tua vida preservar; despreza os bens materiais e busca tua alma salvar. Põe abaixo tua casa, eu te digo, e constrói um barco. Eis as medidas da embarcação que deverás construir: que a boca extrema da nave tenha o mesmo tamanho que seu comprimento, que seu convés seja coberto, tal como a abóbada celeste cobre o abismo; leva então para o barco a semente de todas as criaturas vivas. (...) Eu carreguei o interior da nave com tudo o que eu tinha de ouro e de coisas vivas: minha família, meus parentes, os animais do campo – os domesticados e os selvagens – e todos os artesãos”.(SANDARS, 1992, p. 149-151).

“Faze uma arca de tábuas de cipreste; nela farás compartimentos, e a calafetarás com betume por dentro e por fora. Deste modo a farás: de trezentos côvados será o comprimento, de cinqüenta a largura, e a altura de trinta. Farás ao seu redor uma abertura de um côvado de alto; a porta da arca colocarás lateralmente; farás pavimentos na arca: um em baixo, um segundo e um terceiro”. (GENESIS, cap. 6, ver 14-16).

“… entrarás na arca, tu e teus filhos, e tua mulher, e as mulheres de teus filhos. De tudo o que vive, de toda carne, dois de cada espécie, macho e fêmea, farás entrar na arca, para os conservares contigo”.(GENESIS, cap. 6, ver. 18).

Enlil então envia uma tempestade de grandiosas proporções, fazendo com que toda a terra desaparecesse sobre as águas:

“Caiu a noite e o cavaleiro da tempestade mandou a chuva.(...) Por seis dias e seis noites os ventos sopraram; enxurradas, inundações e torrentes assolaram o mundo; a tempestade e o dilúvio explodiam em fúria como dois exércitos em guerra.” (SANDARS, 1992, p. 151-153).

“… nesse dia romperam-se todas as fontes do grande abismo, e as portas do céu se abriram, e houve copiosa chuva sobre a terra durante quarenta dias e quarenta noites”.(GENESIS, cap. 7, ver. 11-12).

E toda a humanidade foi exterminada:

“… agora eles (humanos) flutuam no oceano como ovas de peixe”. (SANDARS, 1992, p. 152).

“Assim foram exterminados todos os serem que havia sobre a face da terra …” (GENESIS, cap. 7, ver. 23).

Com o passar dos dias, a tempestade ameniza-se e o dilúvio começa a serenar:

“Na alvorada do sétimo dia o temporal vindo do sul amainou; os mares se acalmaram, o dilúvio serenou”.(SANDARS, 1992, p. 153).

“Deus fez soprar um vento sobre a terra e baixaram as águas. Fecharam-se as fontes do abismo e também as comportas dos céus, e a copiosa chuva do céu se deteve”. (GENESIS, cap. 8, ver. 1-2).

Após a calmaria do grande oceano que se formara, Utnapishtim solta uma pomba para ver se há terra firme para que então possa desembarcar:

“Na alvorada do sétimo dia eu soltei uma pomba e deixei que se fosse. Ela voou para longe; mas, não encontrando lugar para pousar, retornou. Então soltei uma andorinha, que voou para longe; mas, não encontrando lugar para pousar, retornou. Então soltei um corvo. A ave viu que as águas haviam abaixado; ela comeu, voou de uma lado para outro, grasnou e não mais voltou para o barco”.(SANDARS, 1992, p. 153).

“Ao cabo de quarenta dias, abriu Noé a janela que fizera na arca, e soltou um corvo, o qual, tendo saído, ia e voltava, até que se secaram as águas sobre a terra. Depois soltou uma pomba para ver se as águas teriam já minguado da superfície da terra; mas a pomba, não achando onde pousar o pé, tornou a ele para a arca; porque as águas cobriam ainda a terra. Noé, estendendo a mão, tomou-a e a recolheu consigo na arca. Esperou ainda outros sete dias, e de novo soltou a pomba for a da arca. A tarde ela voltou a ele; trazia no bico uma folha nova de oliveira; assim entendeu Noé que as águas tinham minguado de sobre a terra. Então esperou ainda mais sete dias, e soltou a pomba; ela, porém, já não tornou a ele”.(GENESIS, cap. 8, ver. 6-12).

Após a bonança, já em terra firme e grato ao deus Ea por ter lhe salvo a vida, Utnapishtim prepara um sacrifício aos deuses:

“Eu então abri todas as portas e janelas, expondo a nave aos quatro ventos. Preparei um sacrifício e derramei vinho sobre o topo da montanha em oferenda aos deuses”.(SANDARS, 1992, p. 153).

“Então Noé removeu a cobertura da arca, e olhou, e eis que o solo estava enxuto”.(GENESIS, cap. 8, ver 13).

“Levantou Noé um altar ao Senhor, e, tomando de animais limpos e de aves limpas, ofereceu holocaustos sobre o altar”.(GENESIS, cap 9, ver 20).

Enlil, furioso com Ea por ter permitido que um humano sobrevivesse e conhecendo o segredo dos deuses, viu-se sem alternativa que não a de transformar Utnapishtim em um imortal, para que sua maldição de que nenhum mortal sobrevivesse se completasse.

Gilgamesh desapontado por não ter tido sucesso em busca da imortalidade, prepara seu retorno para Uruk, mas é abordado pela esposa de Utnapishtim que, compadecida com o fracasso do herói, revela-lhe o segredo da imortalidade em que, nas profundezas do mar, havia uma planta maravilhosa, e quem a comesse, seria eternamente jovem. O herói então mergulha no mar profundo, ferindo-se, mas obtendo a tão desejado segredo.

Tomado de rara compaixão, Gilgamesh decide não comer sozinho o maravilhoso fruto, mas sim dividi-lo com os anciãos da cidade de Uruk. No retorno para casa, Gilgamesh é surpreendido por uma serpente marinha que lhe rouba a flor, perdendo para sempre o segredo da imortalidade:

“Se conseguires pegá-la (a planta sagrada), terás então em teu poder aquilo que restaura ao homem sua juventude perdida. (…) Vem ver esta maravilhosa planta. Suas virtudes podem devolver ao homem toda a sua força perdida. (...) mas nas profundezas do poço havia uma serpente, e a serpente sentiu o doce cheiro que emanava da flor. Ela saiu da água e a arrebatou”.(SANDARS, 1992, p. 160).

Apesar dos fins da ação de comer o fruto sejam diferentes (a morte e a imortalidade), podemos fazer uma analogia da função da serpente em roubar a imortalidade do homem: sendo tirando-lhe a oportunidade da vida eterna pela sua obtenção, como na Epopéia de Gilgamesh; sendo condenando-lhe a morte pela cessão do fruto ao homem, como no livro do Gênesis. Gilgamesh então ficou desolado e abatido, pois além de fracassar em sua missão, perdera para sempre o irmão Enkidu, restando-lhe apenas, melancolicamente esperar o dia de sua morte chegar.

No livro do Gênesis, não encontramos somente semelhanças com a Epopéia de Gilgamesh, mas com outros textos antigos, como o sumeriano Mito de Dilmum onde o deus Enki, o senhor das águas profundas e do abismo que suporta a terra; e Nintu, a virgem pura, deusa que presidia aos partos; habitavam sozinhos num mundo cheio de delícias sem que nada existisse além do par divino, caracterizando uma descrição muito semelhante do que seria e onde seria o jardim Éden:

“E plantou o Senhor Deus um jardim no Éden, da banda do Oriente, e pôs nele o homem que havia formado. (...) E saía um rio do Éden para regar o jardim, e dali se dividia, repartindo-se em quatro braços. (...) O nome do terceiro rio é Tigre; é o que corre pelo oriente da Assíria. E o quarto é o Eufrates”. (GENESIS, cap. 2, ver. 8-14).

5. Considerações finais.

É impossível afirmar a influência direta da Epopéia de Gilgamesh sobre a escrita do livro do Gênesis, pois tanto um como o outro poderiam ter sido influenciados por histórias ainda mais antigas e difundidas no Oriente, ao mesmo tempo em que é inegável que o mundo situado entre o Mediterrâneo e os Montes Zargos, onde havia intensa circulação de mercadores de diferentes etnias e religiões variadas, era pequeno demais para descartar qualquer influência cultural entre eles.
Os hebreus, possivelmente muito antes de seus períodos de cativeiro na Babilônia e Assíria, já tiveram contato com as lendas e mitos sumério-acadianos e que por várias razões, os utilizaram na formulação de suas próprias lendas, o que sugere que seu deus, Jeová, toma por empréstimo características de deuses como Anu, Enlil e Ea, seja criando a terra e o homem, seja julgando-os por seus atos, seja compadecendo-se de seu povo e os protegendo.


Acreditamos ser impossível obter conclusões definitivas sobre as influências de um texto sobre o outro, ou principalmente, da formação de um pensamento religioso sem a existência do pensamento antecessor, sem que se faça juízo de valores como é recomendado a um historiador, mas ao se estudar o contexto em que o Gênesis é idealizado e escrito, tomando aqui, palavras de Finkelstein e Silberman, observa-se que "a saga histórica contida na Bíblia (...) não foi uma revelação miraculosa, mas um brilhante produto da imaginação humana”.10
------------------------------------
Notas:

1SANDARS, N. K. A epopéia de Gilgamesh. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 11-12.
2Os 5 primeiros livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.
3GRELOT, P. Homem quem és? São Paulo: Edições Paulinas, 1980, p. 14.
4CHARTIER, Roger. Textos, impressão, leituras. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 211-238.
5FINKELSTEIN, Israel; SILBERMAN, Neil Asher. The Bible Unearthed. Archaeology's New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. New York: The Free Press, 2001, p. 38.
6TIGAY, Jeffrey. On the evolution of the Gilgamesh epic. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1982, p. 11.
7ZILBERMAN, Regina. Nos princípios da epopéia: Gilgamesh. In: BAKOS, Margaret Marchiori; POZZER, Katia Maria Paim. JORNADA DE ESTUDOS DO ORIENTE ANTIGO: LÍNGUAS ESCRITAS E IMAGINÁRIAS, 3., 1997, Porto Alegre. Anais ... trabalho 4. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998, p. 58.
8BOUZON, Emanuel. Ensaios babilônicos: sociedade, economia e cultura na Babilônia pré-cristã. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998, p. 126.
9CHARPIN, Dominique. El mundo de la biblia: Mesopotamia y la biblia. Valencia: EDICEP, 1984, p. 9.
10FINKELSTEIN; SILBERMAN. The Bible ... 2001. p. 13.
-------------------------------------------
Referências Bibliográficas
BÍBLIA, V. T. Gênesis. Português. A bíblia sagrada. Tradução João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969. Cap. 1-9.

BÍBLIA, V. T. Gênesis. Português. A bíblia de Jerusalém. Tradução Theodoro Henrique Maurer Jr.. São Paulo: Edições Paulinas, 1985. Cap. 1-9.

BOUZON, Emanuel. Ensaios babilônicos: sociedade, economia e cultura na Babilônia pré-cristã. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.

CHARPIN, Dominique. El mundo de la biblia: Mesopotamia y la biblia. Valencia: EDICEP, 1984.

CHARTIER, Roger. Textos, impressão, leituras. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

FINKELSTEIN, Israel; SILBERMAN, Neil Asher. The Bible Unearthed. Archaeology's New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. New York: The Free Press, 2001.

GRELOT, P. Homem quem és? São Paulo: Edições Paulinas, 1980.

SANDARS, N. K. A epopéia de Gilgamesh. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

ZILBERMAN, Regina. Nos princípios da epopéia: Gilgamesh. In: BAKOS, Margaret Marchiori; POZZER, Katia Maria Paim. JORNADA DE ESTUDOS DO ORIENTE ANTIGO: LÍNGUAS ESCRITAS E IMAGINÁRIAS, 3., 1997, Porto Alegre. Anais ... trabalho 4. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.
--------------------------
Referências Eletrônicas

http://iraqipages.com/

CLOUGH, Brenda W. A short discussion of the influence of the Gilgamesh Epic on the bible. Disponível em http://www.sff.net/people/Brenda/gilgam.htm, 1999. Acesso em: 27 jul. 2003.

CORREA, Maria Isabelle Palma Gomes. Mitos Cosmogônicos: Suméria e Babilônia. Disponível em http://www.galeon.com/projetochronos/chronosantiga/isabelle/Sum_indx.html, 200-. Acesso em: 18 ago. 2003.

LOPES, Fabiano Luis Bueno. Exílio e retorno dos judeus na Babilônia. Disponível em http://www.galeon.com/projetochronos/chronosantiga/fabiano/fab_ind.htm, 200-. Acesso em: 18 ago. 2003.

SUBLETT, Kenneth. Epic of Gilgamesh. Disponível em http://www.piney.com, 2003. Acesso em: 27 jul. 2003.