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quinta-feira, 24 de junho de 2010

Em Busca do Jesus Histórico


"Em Busca do Jesus Histórico"
por Albert Schweitzer

Em síntese: Trata-se de um livro publicado em 1906 pelo famoso médico A. Schweitzer (1875-1965), que abandonou sua carreira na Europa a fim de se dedicar às populações carentes da África como médico e missionário.

Albert Schweitzer (1875-1965) nasceu na Alsácia (na época, província alemã) e dedicou-se à Música, à Medicina e às populações pobres da África Equatorial Francesa (atual Gabão), para onde embarcou em 1913. Em 1906, quando ainda estudava Medicina, publicou sua mais famosa obra, que tem o título português “A Busca do Jesus Histórico”¹; percorre os autores racionalistas que instituíram a crítica dos Evangelhos nos séculos XVIII e XIX. A obra vale por ser um marco da historiografia, pois relata um passado ultrapassado pela crítica contemporânea; esta procura ser mais madura e fundamentada, cultivando o chamado “Método da História das Formas”; cf. PR 318/1988, pp. 195 ss.

A seguir, serão apresentados alguns dos autores considerados por A. Schweitzer, enriquecendo assim os conhecimentos históricos do leitor.

1. Hermann Samuel A. Reimarus (1694-1768): rapto do cadável

Até o século XVIII os Evangelhos eram tranqüilamente aceitos sem que alguém pudesse em dúvida a sua fidelidade histórica. O iluminismo ou racionalismo do século XVIII deu início e à suspeita de não historicidade do texto sagrado. Seguiram-se teorias várias tendentes a desfazer o Transcendental nos Evangelhos de maneira, porém, preconceituosa e gratuita.

Hermann Samuel Reimarus encabeça a lista. Nasceu em Hamburgo aos 22/12/1694 e nessa cidade lecionou línguas orientais até o fim da vida (1768). Em 1906 observava Schweitzer:

“Quando nosso período de civilização estiver completo, a teologia alemã se destacará como um fenômeno único na vida mental e espiritual do nosso tempo. Pois em parte alguma a não ser no temperamento alemão se pode encontrar com a mesma perfeição o complexo vivo de condições e fatores de pensamento filosófico, agudeza crítica, visão histórica e sentimento religioso – sem os quais nenhuma teologia profunda é possível” (p. 5).

Estaria assim explicado o pioneirismo de Reimarus.

Este autor professava a religião natural, filosófica ou o deísmo, propalado na sua obra “Apologia dos Cultores Racionais de Deus” (1774-1778). Segundo tal obra Jesus seria mero homem, agitador político; em nome de um messianismo nacionalista pretendia libertar do jugo romano o povo de Israel. Cativou adeptos, realizando feitos que na época eram tidos como milagrosos. Todavia o povo recusou empunhar armas contra os romanos, de modo que Jesus se viu abandonado; morreu desesperado sobre uma cruz. Após a sua morte os discípulos resolveram restaurar o ideal messiânico que os havia agitado, apregoando um messianismo religioso e espiritual: “Roubaram o corpo de Jesus e o esconderam, e proclamaram para todo o mundo que ele em breve voltaria. Eles no entanto esperaram prudentemente cinqüenta dias antes de fazer o anúncio da segunda vinda de Jesus, a fim de que o corpo, caso fosse encontrado, não pudesse ser reconhecido” (Schweitzer, p. 30). – Os Evangelhos seriam o relato oficial dessa aventura.

A teoria de Reimarus, preconceituosa e arbitrária como é, não fez escola. A própria crítica racionalista encarregou-se de refutá-la, destacando-se, entre os adversários, Johann Salomo Semler.

2. Heinrich Eberhard Gottlob Paulus (1761-1851): fenômenos naturais

Era filho de um pai que julgava ter comunicação com os mortos; para garantir a paz no lar, sentia-se obrigado a fingir que tinha comunicação com o espírito de sua falecida mãe. Em conseqüência Gottlob Paulus concebeu profunda aversão a todas as experiências que ultrapassem o alcance da razão. Ao ler os Evangelhos, não negava a historicidade dos relatos de milagres, mas procurava dar-lhes interpretação meramente natural; os evangelistas, em sua mentalidade simplória e ignorante, teriam dado a aparência de fenômenos extraordinários a tais feitos, Paulus pretende desembaraçar o texto sagrado da carga “mística” imposta pelos evangelistas.

Eis como o Pe. Pedro Cerruti refere as interpretações dadas por Paulus, em sua obra “O Cristianismo em sua origem histórica e divina”, p. 157:

“O espetáculo de um pai doente, nevropata, vítima de contínuas visões e alucinações, despertara em Paulus, desde a sua infância, uma aversão profunda contra tudo o que é sobrenatural, não vendo nas suas manifestações senão sintomas patológicas de visionários desequilibrados. Assim interpretou os acontecimentos maravilhosos dos Evangelhos. Algumas amostras:

Achava-se Jesus, de madrugada, no alto do Tabor com três de seus apóstolos, quando passaram casualmente dois conhecidos vestidos de branco. Neste momento despontou o sol no horizonte e envolveu o Salvador nas rutilâncias de ouro dos seus esplendores nascentes. Pedro, precipitado, exclama: “Moisés! Elias!”. Eis a Transfiguração do Senhor, explicada... psicologicamente e “naturalizada”!

Cristo cura um cego de nascença. É um fato real e histórico, diz o Dr. Paulus. O erro está em atribui-lo a causas transcendentes. Jesus empregou apenas um colírio conhecido e usado pelos oculistas... que assim todos os dias restituem a vista aos nati-cegos! E o espanto de toda Jerusalém? E o processo desta cura instaurado pelos Fariseus? Foram motivados pela aplicação corriqueira de um colírio conhecido?

A multiplicação dos pães? Nada de mais: a exemplo daquela criança, de Jesus e dos Apóstolos, cada um dos presentes se serviu da matalotagem que trouxera consigo. - E é por isso que tanto se admirou toda aquela multidão e queria proclamar rei o Salvador?

O caminhar sobre as águas foi um simples passear na margem com as ondas, ao morrer, lambendo os pés de Jesus. – E é em tão pouca água que ia afundando Pedro?

As ressurreições? Simples despertar de letargias. Lázaro, por exemplo, não morrera, mas caíra em letargia quatro dias antes e fora deposto atrás de uma porta. Por simples coincidência venturosa, voltou a si quando Cristo o chamou. Que há de mais óbvio e mais natural? – Mas ninguém seguira a doença de Lázaro? Ninguém presenciara a sua morte e seu sepultamento? E o espanto geral, quando Lázaro, ainda envolvido nos planos mortuários, saiu vivo detrás daquela “porta”, que era uma pedra sepulcra? (cf. L. Franca, A crise do mundo moderno, 1941, pp. 97-98)”.

Também as interpretações de Paulus foram criticadas pela crítica racionalista, que preferiu negar a historicidade dos milagres, como se dirá logo a seguir.

3. Friedrich Strauss (1808-1874): mito

Strauss opõe-se às explicações dadas por Paulus, porque vê nos Evangelhos um conjunto de mitos ou histórias fictícias; só poderiam ser tidos como históricos alguns poucos episódios e a morte de Jesus na cruz. Com efeito; para Strauss; tudo o que escapa ao controle da razão é mito. Assim os discípulos atribuíram a Jesus feitos portentosos que o assemelhavam ao Messias predito no Antigo Testamento. Eis alguns espécimens do procedimento de Strauss, como o vê Schweitzer:

“Se o arrependimento de João era um batismo de arrependimento com vistas a “aquele que há de vir”, Jesus não poderia considerar-se sem pecado quando se submeteu a ele. De outra forma, teríamos que supor que Ele o fez meramente pelas aparências. Se foi no momento do batismo que a consciência de sua messianidade despertou, não saberíamos dizer. Apenas isto é certo, que a concepção de Jesus como tendo recebido o Espírito em Seu batismo era independente e anterior à outra concepção que o tomava como tendo nascido de forma sobrenatural do Espírito. Nós temos, portanto, nos Sinópticos diversas camadas de lenda e narrativa, que em alguns casos se cruzam e em alguns sobrepõem-se uma às outras.

A história da tentação é igualmente insatisfatória, seja interpretada como sobrenatural, ou como simbólica, seja de uma luta interior ou de eventos externos (como por exemplo na interpretação de Venturini, onde a parte do Tentador é interpretada por um fariseu); é simplesmente lenda cristã primitiva, construída de sugestões do Antigo Testamento.

O chamado dos primeiros discípulos não pode ter acontecido como é narrado, sem que antes eles não soubessem nada sobre Jesus; a forma do chamado é modelada sobre o chamado de Eliseu por Elias. A lenda seguinte que foi adicionada – a pesca milagrosa de Pedro – surgiu do dito sobre “pescadores de homens”, e a mesma idéia é refletida, num outro ângulo de refração, em João 21. A missão dos setenta não é histórica.

Se a purificação do templo é histórica, ou se ela surgiu da aplicação messiânica do texto, não pode ser determinado” (p. 104).
As hipóteses levantadas por Strauss suscitaram polêmica e oposição; no decorrer de cinco anos foram publicados cerca de cinqüenta ensaios sobre o assunto, diante dos quais Strauss se revelou um péssimo polemista. Na verdade, o embelezamento ou a idealização de uma figura do passado requer tempo; faz-se aos poucos; por isto Strauss postulava uma data tardia (século II) para a redação dos Evangelhos. Ora a peleografia mais e mais demonstra que os Evangelhos datam da segunda metade do século I, tendo começado a respectiva redação por volta do ano 50. Ver a propósito PR 398/1995, pp. 290ss.

4. Ferdinand Christian Baur (1792-1860): tendências

Baur aplicou à história do Cristianismo nascente o esquema dialético de Hegel, segundo o qual a história procede por tese, antítese e síntese. Ora na Igreja nascente

- a tese foi a corrente petrina, judaizante; queria subordinar à Lei de Moisés os pagãos convertidos ao Cristianismo, obrigando-os a observancias judaicas;

- a antítese terá sido a corrente paulina, aberta aos pagãos, que seriam dispensados da Lei de Moisés e introduziriam a cultura helenística para dentro do Cristianismo;

- a síntese seria a Igreja Católica, compromisso conciliatório, no qual as duas tendências se encontram parcialmente absorvidas.

Os Evangelhos Sinóticos representariam as tentativas de conciliação redigidas no século II: o de Mateus, de inspiração petrina com alguns elementos paulinos; o de Lucas, predominantemente paulino; em meados do século II terá sido redigido Marcos, de característica neutra. Quanto ao Evangelho de João, seria mera especulação teológica ainda mais tardia.

A propósito é de notar que tal teoria baseada nas premissas da filosofia de Hegel mais do que na consideração dos textos do Novo Testamento. São Pedro foi o primeiro a apregoar o universalismo da fé cristã (ver At 4,12); foi também o primeiro a receber um pagão – o centurião Cornélio com seus familiares – na Igreja sem lhe impor a Lei de Moisés (ver At 10, 1-48); no concílio de Jerusalém Pedro e Paulo distribuíram entre si harmoniosamente as tarefas do apostolado (ver Gl 2, 6-10). São Paulo reconhecia a autoridade da Igreja-mãe, que ele foi visitar ao voltar do seu retiro na Arábia, “para avistar-me com Cefas e fiquei com ele quinze dias” (cf. Gl 1, 18s).

Quanto ao incidente de Antioquia (Gl 2, 11-14), ver p. 12 deste fascículo.

5. Ernest Renan (1823-1892): estilo de romance

Foi seminarista, mas, após ler a literatura crítica alemã, perdeu a fé e tornou-se livre pensador. Escreveu uma famosa “Vida de Jesus”, que em 1867 estava na 13ª edição e foi traduzida para várias línguas. Eis como Schweitzer a avalia:

“Dificilmente haverá outra obra sobre este assunto como tão abundantes lapsos de gosto – e do tipo mais deprimente – como a Vie de Jésus de Renan. É arte cristã no pior sentido do termo – a arte da imagem de cera. O gentil Jesus, a linda Maria, os belos galileus que formavam a companhia do “simpático carpinteiro”; poderiam tornar forma num corpo de vitrine de uma loja de arte eclesiástica na Place St. Sulpice. Ainda assim, há algo de mágico sobre a obra. Ela ofende e atrai. Ela nunca será realmente esquecida, nem é provável que seja superada em sua própria linha, pois a natureza não é pródiga em mestres do estilo, e raramente um livro é tão diretamente nascido do entusiasmo quanto aquele que Renan planejou entre as colinas da Galiléia” (p. 119).

Escrita com grande habilidade literária, em estilo de romance¹, a Vie de Jésus de Renan foi acolhida com aplausos pelos incrédulos; exerceu vasta influência sobre a camada populacional de cultura média. Mas também foi severamente criticada; “há uma espécie de insinceridade no livro, do início ao fim, Renan declara representar o Cristo do quarto Evangelho, mas não acredita na autenticidade dos milagres daquele Evangelho. Ele declara escrever uma obra científica, mas está sempre pensando no grande público e na maneira de lhe interessar; “Ele fundiu assim duas obras de caráter díspar” (Schweitzer, p. 229). Escreve Cerruti (obra citada, p. 162):

“Obra de arte, na qual, com “visão de pintor, imaginação de poeta, indução de filósofo racionalista” (Weinel), o autor impõe aos textos suas próprias sugestões, a Vida de Jesus é um romance do diletantismo tão na moda durante o século XIX e de que Renan foi o perfeito modelo (Guignebert, op. cit., págs. XXVIII-XXX). Como obra de ciência, nenhum valor”.

6. Alfred Loisy (1857-1940) e os escatologistas

Foi católico e, como tal, lecionou no Institut Catholique de Paris. Wm 1893 foi destituído da cátedra por ensinar teorias não católicas: as fórmulas de fé seriam apenas metáforas e símbolos, sujeitos a diversas interpretações. No tocante a Jesus, afirmava: “Jesus apregoou o Reino de Deus, mas o que veio, foi a Igreja”. Com outras palavras: Jesus terá compartilhado a expectativa dos judeus de seu tempo, que aguardavam ansiosamente uma intervenção de Deus: mediante um cataclisma universal, o Altíssimo viria destruir o reino da iniqüidade dominante na Terra e instauraria um reino de justiça, felicidade e paz. Jesus terá esperado essa catástrofe; por isto quis preparar os discípulos para esse grande evento, apregoando uma “Ética do provisório”: não resistir aos assaltantes, dar a túnica a quem quer levar o manto, apresentar a face esquerda a quem esbofeteia a direita (cf. Mt 5, 38-42). Consequentemente, segundo Loisy e sua escola, tudo o que nos Evangelhos insinua a Igreja como sociedade estável e duradoura, só pode ser acréscimo tardio devido aos discípulos que, frustrados, fundaram a Igreja (pois Jesus mesmo não a fundou, enganado como estava no tocante à escatologia).

Tais idéias foram professadas outrossim por Charles Guignebert, C. Burkitt, Johannes Weiss, constituindo a escola escatologista.

A propósito convém notar: se nos Evangelhos se encontram alusões ao juízo final e à glória celeste, existem também (indícios presentes em todos os manuscritos antigos) de que Jesus contava com a longa duração de sua obra; assim a parábola do joio e do trigo refere ao paulatino crescimento das sementes até que chegue o dia da messe (cf. Mt 13, 24-30); o mesmo se depreende da parábola do grão de mostarda que cresce a ponto de tornar-se uma grande árvore; os Apóstolos são enviados a todos os povos (cf. Mt 28, 18-20).

A crítica assumiu ainda outro aspecto

7. História das Religiões comparadas: Gunkel, Eichhorn, Wrede

No fim do século XIX os estudos da história haviam progredido tanto que os pesquisadores procuraram descobrir a origem do Cristianismo no ambiente religioso pagão que cercava o povo de Israel. Especialmente importante, no caso, parecia ser o culto das religiões de mistérios. Estas constavam de ritos dos quais participavam apenas os iniciados, a quem eram transmitidas doutrinas religiosas secretas... doutrinas que deviam levar o iniciado à felicidade e à salvação; os ritos aplicados compreendiam loções purificadoras, entrega de símbolos e de fórmulas dentro de uma atmosfera de dramaticidade. Em conseqüência fundavam-se confrarias religiosas como as de Mitra, Dionísio, Zagreu, Osíris, Adônis, Átis..., onde o “mista” devia chegar à união com a Divindade. Eis algumas das semelhanças que fundamentariam a pretensa dependência do Cristianismo:

Trindades babilônicas e Trimurti da Índia Trindade cristã (Pai, Filho e Espírito Santo);
Avatares (homens divinos) da Índia Encarnação do Verbo;

Deus salvador nos mistérios de Átis, Osíris, DionísioJesus Salvador;

ressurreição nos mesmos mistérios ressurreição de Cristo;

loções purificadoras Batismo;

banquetes sagrados Eucaristia;

Ascese budista ascese cristã.

Afirmando a dependência do Cristianismo em relação aos cultos pagãos, os historiadores classificavam como lendária a mensagem histórica que acompanha a Boa-Nova de Cristo. O Apóstolo Paulo terá sido o responsável pela distorção paganizante da pregação semita de Jesus; Paulo terá helenizado o Cristianismo nascente.

Alguns críticos chegaram mesmo a negar a existência de Jesus, visto que a noção de Deus feito homem é, para a razão, totalmente inconcebível. Tão radical posição hoje em dia não conta com sérios adeptos.

A propósito seja observado:
1) há manifestações religiosas espontâneas a todo homem que: por ser espontâneas, podem aparecer em regiões (e religiões) diversas sem que haja dependência. Assim o levantar as mãos para o céu, o ajoelhar-se, o prostrar-se por terra...

2) Também há símbolos cujo significado é o mesmo para todos os homens e, por isto, ocorrem cá e lá sem que haja dependência. Assim a água como sinal e fator de purificação (donde a loção das mãos, dos pés, do corpo), o fogo, o sal, a luz, as trevas...

3) O conceito de ascese ou mortificação das paixões desregradas para que exista união com Deus é outro elemento que aflora por si mesmo à consciência de todo homem sincero.

4) O simbolismo de certos números é o mesmo para todos os povos; assim três é sinal de perfeição, porque lembra o triângulo eqüilátero, figura sempre igual a si mesma e, por isto, invencível: quatro, idem; donde o valor positivo de 3 + 4 e 3 x 4.

5) Nos casos em que há identidade de sinais (água, refeição sagrada entendida como partilha), é preciso investigar qual a mentalidade que inspira o uso de tal símbolo; será panteísta?... politeísta?... monoteísta? Se a mentalidade difere de um caso para o outro, torna-se improvável a dependência. A respeito veja-se quanto já foi ponderado em PR 266/1983, pp. 30-33:

a) A Trindade cristã (Pai, Filho e Espírito Santo) seria análoga às tríades de deuses da Babilônia (Anu, Bel, Ea) ou à Trimurti hindu (que professa Braama, o criador casado com Sarasvati, a deusa da beleza; Siva, o destruidor e o renovador, casado com Cali, a deusa da destruição).

Como se vê, em religiões não cristãs há tríades de deuses distintos uns dos outros e entendidos em sentido politeísta. Têm suas aventuras e lutam entre si pela hegemonia. Acontece, porém, que na mensagem cristã há um só Deus, cuja natureza é tão rica que ela se afirma em três pessoas (que não são três deuses nem repartem a natureza divina) É de notar que os cristãos passavam por “ateus” no Império Romano pelo fato de não cultuarem os deuses da mitologia greco-romana – o que bem mostra como eram infensos ao politeísmo.

b) As encarnações de Visnu, que se manifesta em avatares (Buda, Krishnamurti...) seriam paralelas à Encarnação do Verbo... Ora um exame mais detido mostra a oposição frontal entre um e outro termo. O Cristianismo professa que a segunda Pessoa da SS. Trindade quis assumir a natureza humana, sem nada perder do que é de Deus, a fim de santificar o homem e o mundo. Ao contrário, as crenças hindus professam a metamorfose de Visnu em sucessivos avatares como seriam o peixe, a tartaruga, o javali, o leão..., no fim do mundo, o cavalo. Visnu aparece também em dois heróis (Rama e Krishna), da casta dos guerreiros, que a lenda divinizou. Krishna, com suas façanhas cruéis e sua vida devassa foi a antítese do que o Cristianismo atribui a Jesus Cristo.
c) Quanto aos pretensos paralelos de ressurreição, verifica-se que as narrações pagãs estão muito distantes do evento professado pelo Cristianismo. Examinaremos os mitos mais freqüentemente aduzidos:

Dionísio Zagreu, nascido da união de Júpiter com sua filha Perséfona, foi morto, despedaçado e devorado por Titãs, instigados por Hera, esposa de Júpiter. Todavia, diz o mito, o coração de Dionísio escapara à voracidade dos Titãs. Ora Júpiter (segundo uma lenda) ou Semele (segundo outra) engoliu tal coração e em conseqüência deu à luz um outro Dionísio. – Como se vê, este episódio da mitologia se diferencia radicalmente do que se chama “a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo”. Seria despropositado querer aproximá-los entre si.

Set ou Tifon mostra a seu convivas um cofre maravilhoso e promete doá-lo a quem o achar exatamente proporcionado ao seu tamanho. Apenas o seu irmão Osíris, que não suspeitava da cilada, nele se acomodou, Set fez pregar a tampa e lançar o cofre no Nilo; pouco depois, decepou o cadáver e dispersou os pedaços! – Tal terá sido a Paixão de Osíris! – Ora, continua a lenda, Isis, irmã e esposa desse infeliz, consumada feiticeira, tornou a unir os membros espalhados. Em vão, porém, se esforçou por reanimá-los. Foi-lhe revelado contudo que, enquanto a múmia reconstituída se conservasse em Heliópolis, seu marido poderia ter uma vida nova no outro mundo; reinaria doravante sobre os mortos. Tal terá sido a “ressurreição” de Osíris!

O belo Adônis, amado simultaneamente por Vênus e Proserpina, rainha dos infermos, foi morto por um javali; as duas deusas o reclamaram então. Para dirimir o litígio, Júpiter decidiu que passaria quatro meses com uma e quatro meses com outra, ficando livre para dispor dos quatro meses restantes. – Como se vê, tal seria a paixão e a ressurreição de Adônis!

Cibele, mãe dos deuses, fez morrer a Ninfa, que Átis preferia à própria Cibele. Depois disto reteve consigo o jovem pastor Átis. Este, porém, sucumbiu à ferida que sofrera no segundo instante do seu desespero. Cibele então obteve pelo menos que o corpo de Átis permanecesse incorrupto; Júpiter concedeu ainda a Cibele que a cabeleira do seu protegido continuasse a crescer e que o seu dedinho ficasse sempre em movimento. Tal terá sido a “ressurreição” de Átis!

Como se percebesse, todos esses mitos estão muito longe de transmitir o autêntico conceito de ressurreição da Divindade; não podem ser tidos como paralelos ou analogias da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. É simplório ou anticientífico aproximar entre si termos cuja inspiração fundamental é antagônica; na verdade, o Cristianismo é essencialmente monoteísta, ao passo que a mitologia é politeísta... Aliás, sabe-se que a idéia de ressurreição era muito estranha ao pensamento helenista; ela não representava ideal algum a que os gregos aspirassem, pois para muitos destes o corpo era o cárcere ou o sepulcro da alma; não brotaria do âmago da mentalidade helenista a concepção de ressurreição como meta para os homens. Muito a propósito diz o escritor cristão Tertuliano no começo do século III: “A pregação da ressurreição, inaudita até então, abalou as nações com a sua novidade” (De resurrectione carnis 3).

d) O conceito de salvação nas religiões pagãs geralmente se refere ao plano medicinal e mágico, tendo em vista o alívio dos sofrimentos terrestres. O Cristianismo, sem negligenciar tal aspecto da salvação (tenham-se em vista os milagres realizados por Jesus), apregoa a expiação e o perdão dos pecados, a plenitude da vida em comunhão com Deus mediante a oblação de Cristo. – O paganismo não tinha a noção de pecado “ofensa a Deus”, ao passo que o Cristianismo a propõe como fundo de cena da sua mensagem; é o que reconhece o crítico liberal R. Reitzenstein: “O que há de novo no Cristianismo, é a redenção enquanto remissão do pecado. A temerosa seriedade da pregação do pecado e da expiação não se acha no helenismo” (Poimandres, Leipzig 1904, p. 180).

e) Se há semelhança de expressões entre as religiões helenistas ou orientais e o Cristianismo, devem-se ao fato de que os sentimentos religiosos são basicamente os mesmos em todos os homens; há, sim, uma religiosidade natural no pagão e no cristão, que recorre aos mesmos símbolos e gestos para se exprimir; assim o uso da água e das abluções rituais significa naturalmente a pureza interior; a ceia ou a refeição exprime a comunhão ou participação; o Sol, a Luz, as trelas exprimem o brilho da Divindade que ilumina o homem... O Cristianismo não recusou adotar expressões religiosas dos povos pré-cristãos na medida em que correspondem ao patrimônio religioso comum de todos os homens e, consequentemente, dos próprios cristãos. Tal fenômeno não implica dependência do conteúdo ou da mensagem do Cristianismo em relação às religiões não cristãs, visto que a inspiração fundamental do Cristianismo é diferente da do paganismo.

8. Conclusão

O livro de Albert Schweitzer é importante como informativo da história da crítica dos Evangelhos desde o começo do século XVIII até o início do século XX; mostra o esforço de intelectuais racionalistas para explicar o teor do Livro Sagrado sem o apoio da fé. Foram propostas teorias preconceituosas, que a própria crítica no século XX rejeitou, enveredando por trilhas mais fundamentadas, que são o Método da História das Formas, Método não necessariamente racionalista, pois pode ser cultivado também em chave católica; cf. PR 318/1988, pp. 491-201.

APÊNDICE

Seja brevemente considerado o chamado “incidente da Antioquia” (Gl 2,11-14). Este episódio ainda vem a ser um testemunho indireto da autoridade do Primaz: Paulo diz ter chamado a atenção de Pedro justamente porque o exemplo deste Apóstolo era de tal modo persuasivo que coagia moralmente os étnico-cristãos a o imitarem ou a observarem a Lei de Moisés: “Se tu, que és judeu, dizia Paulo, vives à maneira dos gentios, e não dos judeus, como forças os gentios a se fazerem judeus?” (Gl 2, 14). A falha de Pedro parece ter consistido em não estar plenamente cônscio da influência que ele exercia ou em não ter percebido que sua condescendência para com amigos, embora fosse legítima, era mal interpretada, perturbando a Igreja inteira. Note-se que, na sua atitude forte, Paulo não disse palavra contra os direitos de S. Pedro a exercer tal influência sobre os fiéis. De tudo isso conclui Loisy que o gesto de S. Paulo “atesta ter sido Simão Pedro o chefe do serviço evangélico, o homem com o qual era preciso entrar em acordo, sob pena de trabalhar em vão” (Les Évangiles synoptiques 14).

¹ Tradução de W. Fischer, Sergio Paulo de Oliveira e Cláudio Rodrigues. Ed. Novo Século, São Paulo, 160 x 230 mm, 477 pp. ¹ Eis dois espécimens desse estilo citados por Cerruti, p. 162:Os possessos do demônio eram simples loucos ou pessoas excêntricas e “uma palavra meiga basta muitas vezes nesse caso para “expulsar o demônio”. As curas são devidas ao influxo moral exercido por Jesus, porque “a presença de um homem superior que trate o doente com mansidão e com alguns sinais sensíveis, lhe garante a cura, é muitas vezes um remédio decisivo” (Vie de Jésus, c. XVI)”.